NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 35
NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 35
Rangel Alves da Costa*
Na manhã seguinte, após o solitário sepultamento, com a mesma simplicidade que havia marcado a vida daquela sertaneja jogada aos braços ferozes da cidade grande, Carmen voltou ao centro da cidade para cumprir sua agenda. Verdade é que se já tinha muitos problemas a resolver com a proximidade da formatura, agora eles pareciam se acumular.
Não telefonou no dia anterior para avisar a Dona Glorita sobre o ocorrido porque sabia que o anúncio só iria causar mais transtornos para a aflitiva mulher. Ela já sabia que o advogado havia mentido sobre a sentença, vez que a mesma já havia sido proferida, e agora tinha de enfrentar outras situações adversas naquela manhã, principalmente retornar ao escritório e ter de olhar na cara do safado mentiroso e depois ouvir daquela boca nojenta os termos da condenação.
Somente para ouvir o que já sabia e ter o desprazer de encarar pessoa tão desprezível, talvez nem fosse tão necessário assim ir até lá. Esse era o pensamento da mãe de Paulo. O problema é que precisava dizer umas duas verdades diante daquela cara asquerosa e deixar bem claro que se a sorte do seu filho inocente tivesse que mudar, e isso mudaria com fé em Deus, seria através de outra pessoa, de outro advogado ou mesmo da defensoria pública.
Na defensoria tudo seria mais lento e mais burocrático, mas era a única saída para quem não tinha condições de pagar honorários advocatícios naquela fase do processo. E sabia também que nessa fase recursal os advogados cobram mais caro precisamente porque terão de lançar mão ao processo com sentença de primeiro grau já proferida, analisar os elementos de defesa que tornaram e sentença desfavorável e, após isso, verificar quais as medidas de segundo grau cabíveis.
Se Carmen já tivesse concluído o curso e devidamente inscrita na ordem dos advogados, não tinha dúvidas que ela abraçaria a causa com o maior prazer e interesse profissional. Ela também tinha os seus motivos para tal, a própria já havia confidenciado isso. Mas como ela ainda não estava legalmente habilitada, só restava mesmo recorrer à defensoria pública. Dinheiro não tinha o suficiente para pagar advogado particular e o seu filho não poderia ficar abandonado logo nesse momento de maior dificuldade.
Nem que tivesse rios de dinheiro ou que o próprio dissesse que continuaria na defesa sem receber honorários, ainda assim não continuaria com Dr. Auto de jeito nenhum. Nem sabia por que o maldito carregava o sobrenome Valente já que se tratava de um covarde, um fraco de marca maior. A verdade é que iria até lá somente para dizer umas duas que estavam engasgadas. E também, através dele, deixar um recado para o deputado. E bastava dizer que estava muito agradecida por tudo, mas a partir daquele instante tinha consciência que ninguém devia mais favor a ninguém.
Foi com esse pensamento que Dona Glorita, um pouco mais tarde do que o horário costumeiro saiu de sua casa em direção à igreja para suas orações habituais, e de lá seguiria, dessa vez sozinha, até o escritório do maldito. Era essa a concepção que agora tinha do advogado. Estava pronta para não ter grandes surpresas, decidida a não se deixar mais fraquejar diante do homem, pronta a enfrentar tudo com denodo e valentia. Ela sim era uma mulher valente, uma mãe carregando no esforço da vida o lado mais nobre da valentia.
Quando Carmen telefonou, Glorita já estava saindo da igreja. Ouviu da amiga apenas que ao entardecer, lá pelas cinco da tarde, iria até sua casa, pois precisavam conversar sobre assuntos muito importantes. Não falou nada sobre a morte de Dona Leontina lá mesmo no escritório e em circunstâncias ainda não devidamente esclarecidas e o seu sepultamento naquela manhã. Muito menos disse que estava se dirigindo até a penitenciária de passagem para uma visita a Jozué, filho da falecida.
A penitenciária de passagem era assim conhecida porque, mesmo com todas as características infernais de um presídio para condenados a pena em regime fechado, erroneamente chamadas de segurança máxima, se destinava a ser um tipo de alfândega, onde o prisioneiro cuja pena era de reclusão ou tendo cometido crimes hediondos aguardava apenas ser transferido para o cumprimento em definitivo da pena. Assim, era de passagem porque dali a mercadoria imprestável, segundo o próprio sistema reconhecia, era rebocada para lugar pior.
Se ali já era o próprio inferno em vida, como todos que sobreviveram reconheciam, ser transferido daquele local significava dar adeus de uma vez por todas à vida, à honra, à integridade física e moral, a qualquer esperança de um dia ainda sair parecendo gente, ao sonho de liberdade. Reconhecidamente, todos aqueles que um dia tiveram a oportunidade de sair por aqueles portões já não prestavam para nada, pois doentes, degradados, enlouquecidos, afetados moral e psicologicamente.
Carmen se lembrava de uma frase dita por um ferrenho crítico do sistema prisional que era nesse sentido: “Ora, mas não há que se falar mais em homem quando se fala em condenado, em recolhido às podridões das penitenciárias infernais e desumanas; e também não há mais que se falar em sentenciado ou apenado, como se tais designações bonitas pudessem esconder o que está por trás do morto-vivo, do fantasma que ainda rasteja e que nem mais nome tem, senão um número indicando mais um ou menos um. Mais um condenado, menos um ser humano, pois nada mais previsível nesse sistema prisional que se espalha pelos quatros cantos do que a máxima e total degradação humana”.
E o pior é que a liberdade prisional conseguida sempre implicava em ter que cumprir outra pena imaginando estar livre, pois, sem saber, também passaria a ser condenado eternamente pela sociedade. Assim, numa imagem exemplificativa, um cachorro de madame, de raça ou de pedigree, é jogado dentro daqueles muros e ao sair passa a ser visto, evitado, chicotado como um vira-lata asqueroso, um cachorro doente, imprestável e que não mais merece viver. Ora, sem que ninguém lhe estenda a mão da piedade não conseguirá mais sobreviver.
Ainda que nos arredores da cidade, a penitenciária de passagem ficava distante. Carmen sabia que naquele dia poderia visitar Jozué porque antes havia telefonado. Assim, depois de muitos caminhos e curvas chegou diante dos portões para ser submetida aos procedimentos de praxe direcionados a todo visitante. Depois de ter de ficar praticamente despida, mostrar sua documentação e dizer o nome do presidiário que iria visitar, foi encaminhada para uma pequena sala onde mandaram que aguardasse.
Cinco minutos depois ouviu a porta se abrir. Era o desconhecido Jozué que estava chegando.
continua...
Poeta e cronista
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