NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 34
NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 34
Rangel Alves da Costa*
Assim que chegou ao serviço funerário municipal, um misto de depósito de cadáveres prontos para serem enterrados, ou por serem indigentes, sem que as famílias tivessem quaisquer recursos para custear o sepultamento, ou por terem sido encontrados sem identificação, Carmen procurou o responsável e pediu as informações necessárias.
Contudo, indicando apenas o nome Leontina o rapaz disse que seria impossível prestar qualquer informação, pois era muito perigoso passar um dado relativo a falecido apenas pelo prenome. Já haviam acontecido coisas de ninguém acreditar por isso mesmo, quando o corpo já encaixotado de um era liberado apenas por uma vaga indicação do nome. Assim argumentou o funcionário.
O rapaz tinha razão, constatou Carmen sem qualquer aborrecimento. Então lembrou que poderia encontrar o nome completo da falecida exatamente na consulta processual do filho, pois abaixo do nome do réu geralmente se faz constar os nomes da mãe e do pai. Voltou rapidamente até o carro dizendo que iria telefonar para a família e encontrou o que queria. Lá estava o nome completo da desvalida.
Retornou ao local e assim que ouviu o nome o funcionário fez uma cara duvidosa, balançando a cabeça. Pediu licença por um instante e entrou por uma porta, voltando uns cinco minutos depois dizendo que realmente havia ali uma mulher com essa identificação e que naquele mesmo dia seria enterrada.
Ao ser indagado se era norma prevalecente daquele órgão recolher um corpo pela manhã e já enterrá-lo à tarde, sem procurar saber da existência de parentes e sem ao menos esperar um pouco mais para o caso de algum parente aparecer para reclamar o corpo. Então ele respondeu que era exatamente assim como ela havia dito, que só sepultavam vinte e quatro horas depois, só que naquele caso o procedimento seria diferente e mais apressado por ordem superior.
Por que ordem superior especificamente nesse caso de Dona Leontina? Carmen se interrogou silenciosamente, achando muito estranho. Mas não indagou nada sobre isso porque logo em seguida o rapaz acabou perguntando o que Carmen seria dela, alguma filha ou com outro parentesco. E esta, encontrando forças nem de onde sabia, de repente irrompeu com a ideia de mentir. E mentiria não só na tentativa de liberar o corpo para proporcionar um sepultamento digno como para saber os motivos desse superior ter dado tal ordem.
Então, de súbito, respondeu: “Sou filha!”. E eis que tudo começou a complicar: “Se é filha, a sua identidade, por favor”. Com o choro que surgiu na sua face a encenação estava se completando, então começou a remexer na bolsa como se estivesse procurando o documento, mas ao invés disso foi colocando em cima do balcão outros papéis e ao lado deles um maço de dinheiro que deixou o rapaz desconcertado.
Em seguida, com a voz entrecortada pelo pranto providencial, foi dizendo: “Acho que esqueci o documento em casa, mas faria tudo para liberar logo o corpo de mamãe...”. E tocando nas muitas notas completou:
“Tá vendo isso aqui, tá vendo esse dinheiro todo aqui? Não vale nada numa hora dessas. Daria boa parte do que tenho aqui se conseguisse uma ajudinha de alguém. Por isso mesmo digo que dinheiro muitas vezes não vale nada”. Então o rapaz se aproximou do seu ouvido e disse baixinho: “Vale, e quanto vale! Se, se... eu posso ajudar na liberação sem que ninguém tenha de saber que esqueceu o documento. E com quanto é que a senhora poderia, digamos assim, reconhecer o meu favorzinho?”.
Mesmo diante de uma situação delicada como essa, Carmen já estava reconfortada por dentro, pois sabia que havia conseguido o que queria através da cultura abominável da propina, da corrupção. Mas diante daquele caso deveria revirar mundos para ser diferente, então disse no mesmo tom de voz do outro: “Dez notas dessas aqui, das maiores, está bom?”. E os olhos do rapaz chegavam a brilhar.
Porém astuta, ela se aproximou ainda mais e falou: “E mais cinco iguaiszinhas se me disser quem mandou pedir segredo sobre a morte e mandou que o corpo fosse enterrado numa cova qualquer ainda hoje”. E ele nem titubeou para repassar a informação: “Pelo que eu soube foi um deputado, mas o nome dele eu não sei. Serve a informação?”. Ao ouvir isso Carmen só confirmava o que quase não tinha mais dúvidas. Mas não só o deputado, como também o advogado e toda aquela corja que estava por trás dessa morte.
Entregou logo metade do dinheiro e disse que a outra parte só quando o corpo já estivesse realmente liberado. Então ele começou a repassar todas as coordenadas como deveria ser feito. Bastava ir a tal funerária, procurar sicrano, comprar o caixão e mandar que ele viesse no carro pelos fundos. O sicrano já sabia de tudo. E depois tudo ficaria sob responsabilidade dela. E assim foi feito. Já próximo às seis horas o caixão com a falecida ia deixando o local.
A falecida, contudo, não foi levada para sua casinha. Seria uma justa homenagem que a levasse até lá para se despedir da sua solidão, do retrato do filho Jozué e dos vizinhos. Mas as inconveniências eram muitas, principalmente porque Carmen de repente se transformaria no alvo das atenções e teria de dar todo tipo de explicações aos vizinhos e amigos dela. E se fosse falar a verdade então seria mais difícil ainda. Por isso mesmo resolveu que o corpo passaria a noite num velatório e na manhã seguinte seria levado à sepultura dignamente.
Deixou o corpo solitário numa das salas do velatório e resolveu sair por instantes. Tinha que ir tomar um banho, vestir outra roupa, providenciar outras coisas. Voltou depois das oito horas e ali permaneceu até perto da meia noite. Com a Bíblia na mão, havia reservado um Salmo especialmente para ler quando já fosse se retirar. Assim, se ajoelhou ao lado do caixão e fez pronunciar baixinho:
Das profundezas a ti clamo, ó Senhor.
Senhor, escuta a minha voz;
sejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas súplicas.
Se tu, Senhor, observares as iniqüidades, Senhor, quem subsistirá?
Mas contigo está o perdão, para que sejas temido.
Aguardo ao Senhor; a minha alma o aguarda, e espero na sua palavra.
A minha alma anseia pelo Senhor, mais do que os guardas pela manhã,
mais do que aqueles que guardam pela manhã.
Espere Israel no Senhor, porque no Senhor há misericórdia,
e nele há abundante redenção.
E ele remirá a Israel de todas as suas iniqüidades.
Das profundezas, Senhor, clamo-te das profundezas Senhor! Após Carmen se benzeu, levantou e saiu.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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