NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 29
NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 29
Rangel Alves da Costa*
Diante da alegria e do contentamento do advogado, tão esmerado no cumprimento das duas, até mesmo a desesperada da Dona Glorita achou que poderia ser verdade a observação da filha. E antes mesmo que o Dr. Auto falasse alguma coisa sobre o caso, perguntou: “Pelo jeito temos boas notícias, então saiu a sentença doutor?”.
E o causídico, se adiantando ainda mais para não permitir que elas desejassem entrar, respondeu ainda sorridente, enquanto tentava abraçar as duas ao mesmo tempo:
“Mas que bela jovem, Dona Glorita, e tenho a certeza que é sua filha. A mãe quando jovem, um verdadeiro jardim na flor da mocidade. Parabéns, Dona Glorita, parabéns por trazer tão belo girassol até nossa presença nessa manhã. Sobre o caso não haverá maiores preocupações, pois ontem mesmo falei com o juiz e ele me disse que estava com uma dúvida crucial sobre a inocência ou não do menino Paulo. Diante dessa brecha, e aproveitando minha amizade com ele, tentei a todo custo mostrar que o maior acerto de sua vida seria reconhecer a inocência do acusado. Mas acusado de que, se o menino sempre foi inocente? Pelas provas já se evidenciava que ele nunca fez aquilo pelo qual estava sendo incriminado. Verdade é que sempre teve boa índole, sempre foi honesto, nunca roubou nem se envolveu com o tráfico de drogas. Se alguns acham que não ser rico significa propensão à marginalidade, à vagabundagem, a viver fazendo o que não presta, estão muito enganados. Tudo isso eu reafirmei a ele, ao próprio magistrado, implorando ainda, até pelo amor de Deus, que revisse com cuidado e ponderação os termos da sentença...”.
“Mas a sentença não saiu ainda não? O senhor tinha dito que ia sair hoje logo cedinho. E se já saiu o meu Paulo tem chances de ter sido absolvido?”, indagou a mãe, entre o nervosismo e a aflição, querendo saber logo o fim daquela história toda.
Colocando o braço no ombro da angustiada mulher, e se encaminhando ainda mais em outra direção, o advogado começou a mentir mais uma vez. Mentia com uma facilidade espantosa, como se estivesse se divertindo. Ele mesmo já não sabia mais quando estava mentindo ou dizendo a verdade, vez que essa odienta prática havia se tornado tão comum quanto beber água ou tomar um cafezinho. E continuou mentindo:
“Não, a sentença ainda não saiu não. E até acho que o magistrado adiou o conhecimento de sua decisão exatamente para rever o caso de Paulo. Só o fato desse atraso já demonstra que ele pode ter considerado os meus piedosos pedidos. Isso é um bom sinal, Dona Glorita, é um excelente sinal. Mas para não ter dúvidas sobre o que realmente aconteceu, estou indo agora mesmo no fórum para me inteirar sobre o ocorrido. Portanto voltem amanhã. Amanhã sim, com certeza, já estaremos com a sentença em mãos e que Deus queira que ela nos chegue com a justa absolvição do rapaz...”.
“Mas minha mãe me falou que o senhor disse que ele já estava condenado, que não tinha mais jeito, que agora só restava gastar o dinheiro que tivesse ou não tivesse para entrar com os recursos. E agora o senhor diz que ele tem chances de ser absolvido. Afinal de contas, ele já está condenado ou tem chances de ser absolvido?”. Essa pergunta feita pela irmã de Paulo deixou o advogado totalmente desconcertado, sem saber realmente o que responder, mas enfim encontrou uma saída:
“Na justiça, minha jovem, tudo pode acontecer, não tenha dúvidas disso. Se sua mãe tivesse milhões ele já estaria solto a não sei quanto tempo. Com o dinheiro, as decisões mudam de lado num piscar de olhos. Aquele que ontem dormiu sendo condenado, num passe de mágica já acorda absolvido, e vice-versa. Mas sem o dinheiro tão importante na fabricação de decisões, só nos resta dois caminhos a seguir. O primeiro é rezar, implorar a Deus e todos os santos, e por falta disso tenho certeza que ele não será condenado. O segundo é ser amigo do juiz, como eu sou. Foi essa amizade que me vez alertar, de modo pessoal e amigueiro, sobre a real inocência de Paulo. Confesso a você que juro que já estava desacreditado, e por isso mesmo afirmei à sua mãe que não tinha dúvidas da condenação. Mas depois que conversei pessoalmente com o juiz tive que mudar de opinião, e agora já estou propenso a dizer que ele tem reais chances de ser absolvido. Eu mesmo acredito que sim, mas vamos esperar até amanhã, não é mesmo?”.
Diante das palavras do advogado, às duas só restou retornar imediatamente para casa, muito mais alegres e esperançosas e voltar ali novamente no dia seguinte. Conversando outras amenidades para distraí-las, ele as encaminhou até a porta e tomou outra direção. Entrou no carro e saiu sem rumo certo até encontrar uma ruazinha calma, sem movimentação alguma, tomada por grandes árvores, onde estacionou o veículo embaixo de uma delas.
Ficou dentro do carro pensando na vida. Depois de muito tempo havia encontrado coragem para refletir sobre si mesmo, enquanto ser humano, e enquanto profissional. Não recordava mais como era antes que a profissão de advogado lhe tomasse completamente, lhe envolvesse de tal forma que não se reconhecia mais como pessoa que tem sentimentos, que respeita o próximo, que procura ajudar, que age com compartilhamento e responsabilidade.
Esse homem, essa pessoa que era, certamente havia se perdido nos caminhos que havia escolhido. Não porque o caminho do direito, da advocacia, da busca da justiça, fosse um caminho ruim. Muito pelo contrário, pois a mais bela, a mais nobre das profissões, pois com o poder restaurador da justiça e do incessante combate às injustiças. Mas sim pelas veredas perigosas demais que se encontra ao longo desse caminho. E ele havia entrado por uma dessas tortuosas veredas.
Inicialmente achando rentável e lucrativo demais, próximo ao poder e aos centros de decisões, passou a esquecer completamente do seu outro lado. De repente, além da vereda espinhenta, porém ornada pelos labirintos convidativos da corrupção e das facilidades, já havia caminhado por outros percursos que o levaram aonde nunca esperou estar: na beirada do abismo moral.
Sabia que ainda havia tempo de retornar, bastando retomar seu outro lado pessoa, bastando se reconhecer nos muitos valores que possuía, bastando ser apenas o Auto Valente sempre humilde, sincero e honesto, e não esse advogado que estava lhe corrompendo e corroendo completamente. Bem que poderia ser Dr. Auto Valente, mas distante da corrupção e apenas o advogado eficiente e corajoso como sempre sonhou em ser.
De repente se viu chorando. Coisa estranha, pois nem lembrava mais que podia chorar. Será que também podia amar, perdoar, sentir os melhores sentimentos? Passou um lenço nos olhos, tomou uma dose do uísque que sempre carregava no carro e depois telefonou para o deputado. Num instante e já havia esquecido tudo que refletira sobre si mesmo, já havia esquecido do outro, e agora era somente o advogado corrupto. De novo.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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