NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 25
NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 25
Rangel Alves da Costa*
Ouvindo aquilo tudo com aversão, tendo o magistrado entrado nesse submundo do judiciário com uma frieza terrivelmente impressionante, Carmen sentia vontade de vomitar, de lançar mão do que estivesse mais próximo e jogar na cara daquele safado corrupto. Contudo, não podia simplesmente levantar, dar as costas e sair. Tinha que ouvir o que a autoridade tinha mais a acrescentar. E este acrescentou:
“Já fui estudante de direito e advogado e tinha um pensamento muito contrário do que vislumbro agora. Ó quanta inocência a minha achar que a justiça era para se fazer realmente justiça. Tanta tolice imaginar que os julgadores, seres humanos como são, frágeis e propensos ao erro como são, seriam um poço de lealdade à letra da lei, honesto no dar a cada um o que é seu, respeitando toda uma construção jurídica e filosófica acerca do conceito de justiça. E o que é justiça, minha cara? Nada, nada, nada, apenas um conceito abstrato que não significa nada. Ora, se pensassem a justiça como reconhecimento do direito dentro da lei, bastava que aplicassem a legislação em cada caso concreto. Ora, se a lei diz que o direito à posse e manutenção da propriedade são normas fundamentais, por que então deixam que esses vagabundos dizendo-se sem-terra façam o que bem entendam na propriedade dos outros? Não sei não, e é por isso que ninguém confia mais na justiça, e tudo com sua razão de ser. E mais acerto ainda naqueles que dizem que essa miséria que se chama justiça ainda assim está dividida entre ricos e pobres. Claramente que diante do pobre o magistrado age com todos os rigores da lei, inventa lei, interpreta abusivamente pra prejudicar, pinta e borda, e tudo para anular o cachorro vagabundo. Mas se a parte que erra é rica, poderosa, traz no sobrenome uma distinção familiar, então a lei fica toda mansinha, arranja-se sempre um jeitinho para que o dito cujo fique isento de pena. Eu nem gosto mais de dizer isso, pois fato aberrante demais, mas que a sociedade ainda não se ateve para essa vergonhosa verdade, mas inegável é que cadeia, presídio, penitenciária, seja lá o inferno que for, é igual a casa popular, casa de conjunto, só serve pra pobre. Esses presídios já foram e são feitos pensando nos pobres que irão aos montes para lá como se fosse moradia. Cova rasa, melhor dizendo. Deixe-me ser mais claro, minha jovem. Conjunto construído pra pobre quando é entregue é uma maravilha, com casinhas pintadinhas, janelas, equipamentos sanitários, água e esgoto. Agora você volte lá dois meses depois para ver que nada mais funciona, está tudo uma esculhambação. Bem assim é a penitenciária, pois é feita bonitinha para mais tarde receber o pobre e quando este bota o pé lá está um verdadeiro inferno. Logicamente que rico não ia ser submeter à lixeira humana que é uma penitenciária...”.
“Mas mesmo assim, excelência, o senhor manda tantos pobres pra lá?”. Carmen se sentiu na obrigação de perguntar isso. E o magistrado, trocando sempre a carteira porta-cédula de lugar, tentou explicar:
“Como já afirmei, só sei julgar e nem quero saber para onde vai o sentenciado, se ele vai morrer na cadeia, se sua família vai padecer, se os filhos vão passar fome, nada disso. Acredito que não todos, mas parcela dos juízes criminais é acometida da síndrome da insensibilidade. Essa é uma doença boa porque nos torna insensíveis, tanto faz que até o inocente saia de lá com vida ou não. Lembro muito bem de uma passagem onde o jurista Hélio Tornaghi cita isso num dos seus livros. Guarde bem isso, diz ele: "O Juiz deve ser prudente e mesmo avaro na decretação da prisão. Há alguns perigos contra os quais deveriam premunir-se todos os juízes, ao menos os de bem: o perigo do calo profissional, que insensibiliza. De tanto mandar prender, há juízes que terminam esquecendo os inconvenientes da prisão. Fazem aquilo como ato de rotina... o perigo da precipitação, do açodamento, que impede o exame maduro das circunstâncias e conduz a erros". Continua Tornaghi dizendo que "o perigo do exagero, que conduz o juiz a ver fantasmas, a temer danos imaginários, a transformar suspeitas vagas em indícios veementes, a supor que é zelo o que na verdade é exacerbação do escrúpulo”. Então, notou o que o jurista quis dizer? Precisamente que muitos juízes são insensíveis, possuem calos nas mãos que os insensibiliza na decretação da futura morte de um presidiário, por exemplo. E eu, não posso negar, faço parte desse time de insensibilizados, mas só com uma diferença, pois só carrego na caneta, como é o caso de Jozué e Paulo, quando sou devidamente recompensado pelo meu esforço na prática da injustiça. Ó minha, cara, deve-se reconhecer o valor da injustiça praticada por aquele que deveria fazer justiça. Ademais, há um sério risco de a sociedade saber que esse ou aquele juiz vende sentença, gosta de uma propinazinha ou é adepto da corrupção. Considerando-se tudo isso, sempre cobro mais caro, Dr. Auto sabe disso. Aliás, falando nessas coisas, em dinheiro, em ajudar quem ajuda, será que ele...”.
Nesse momento Carmen foi esperta demais, jogou verde para colher maduro, como se diz na gíria. E nem pensou duas vezes para dizer: “É também por isso que estou aqui. É que ele esqueceu do último acerto, quanto deveria repassar agora. Quanto é mesmo, excelência?”. Então ele levantou, andou de um lado a outro como se estivesse somando, depois falou:
“Ele já sabe bem disso, mas só reavive no pensamento dele que tem a minha parte e também a do promotor, pois sem ele denunciando e sustentando a denúncia nada feito. Então, diante do caso, pelo nosso zelo profissional e o poder econômico das outras partes interessadas, o valor total é...”. Nesse momento se aproximou do ouvido de Carmen e disse o valor como num sopro, como se fosse o maior segredo do mundo.
Carmen agradeceu pela receptividade e pelas palavras e prometeu que passaria o mais brevemente possível o recado ao Dr. Auto. Dali a instante ele já ficaria sabendo do montante que teria de repassar. E saiu de lá correndo, quase voando, completamente enojada e até assombrada com o que tinha ouvido. Jamais esperava, sequer em pesadelo, um dia se deparar com uma situação dessas.
Já após a saída do fórum, enquanto caminhava em direção ao veículo, ficou imaginando que dali em diante, numa tacada só, poderia acabar com a vida tanto do magistrado, como do advogado e do deputado, e ainda de outros que faziam parte da mesma corja. O problema é que não havia levado na bolsa seu minúsculo gravador e nem a caneta que também tinha essa finalidade.
Mas de uma coisa tinha certeza: quando os outros soubessem que havia estado com o juiz, pois certamente este avisaria sobre a sua visita e sobre o que haviam conversado, era sua vida que estaria correndo perigo.
continua...
Poeta e cronista
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