NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 23

Rangel Alves da Costa*

Na manhã seguinte, um pouco mais tarde que o de costume, vez que naquele período de férias não tinha obrigação alguma de abrir o escritório, para lá se dirigiu. Carmen Lúcia não ia apenas visitar o advogado nem apurar mais fatos sobre o caso dos dois rapazes, mas realmente tinha que deixar algumas documentações em ordem.

Ao chegar encontrou o escritório já funcionando e uma jovem que nunca tinha visto antes sentada no seu birô. Cumprimentou-a, se identificou, perguntou pelo advogado e por fim disse que mesmo estando de férias teria que ultimar algumas coisas urgentes que não poderiam esperar seu retorno. A moça prontamente ofereceu seu lugar, porém Carmen disse que ficasse à vontade, vez que o outro birô ali existente era tão confortável quanto aquele.

Logo ficou sabendo que o Dr. Auto ainda não havia aparecido, apenas telefonado para dizer que se aparecesse algum cliente que esperasse um pouquinho que ele não demoraria. Ao falar sobre si, de onde havia aparecido para estar ali atuando como secretária, a moça disse que na verdade era funcionária da assembleia legislativa, mas que havia recebido ordens para estar ali enquanto outra funcionária fosse contratada.

Achou interessante a informação, pois não sabia que outra funcionária seria contratada. E se tal fato fosse acontecer, seria em seu lugar, evidententemente. Mas ela não estava apenas de férias? Contudo não quis entrar em detalhes.

Indagada sobre quem havia dado ordens para ficar à disposição do Dr. Auto naquele período, esta afirmou que não tinha certeza, mas haviam comentado que era o Deputado Serapião Procópio quem estava por trás dessa transferência temporária. Satisfeita com as informações, Carmen espalhou alguns papéis sobre a mesa enquanto digitava uma petição no computador.

Não demorou muito e a porta foi aberta. À frente, quando o advogado avistou Carmen ali sentada mudou de cor na mesma hora, ficou num nervosismo tamanho que não saía nenhuma palavra de sua boca. “Você por aqui?”, foi o que conseguiu perguntar, ao que Carmen calmamente respondeu: “Não posso deixar essa petição sem ser concluída”. Amedrontado, ele olhou para trás e quase é fulminado pelo olhar raivoso do acompanhante.

O advogado havia chegado na companhia do nobre deputado. Este não conhecia Carmen, mas pelas palavras do causídico logo imaginou quem seria, e por isso mesmo odiou a ideia de tê-la encontrado ali, como se naquela moça bonita estivesse uma poderosa inimiga. Mas não falou nada na antessala e abruptamente se dirigiu até a sala reservada do advogado. Entrou à frente, abrindo violentamente a porta, sendo seguido pelo advogado que quase não se segurava em pé.

Para pior ainda mais a sua situação, astuciosamente Carmen nem deixou que fechasse a porta direito e chamou-o com voz firme, e quando ele chegou à sua presença disse que precisaria pedir licença à nova secretária para ir à livraria comprar CDs para gravar aquela petição. Ele, de tão nervoso e acovardado, parecia nem ouvir o que ela dizia e apenas respondeu que sim. O que ele desejava mesmo é que ela jamais pudesse ser encontrada ali. E agora, o que dizer ao deputado?

Dito e feito. Assim que a moça saiu e o advogado retornou à sala, ouvindo a porta ser trancada por dentro, Carmen levantou-se ligeiramente e se aproximou da porta, ficando numa posição que dava para ouvir claramente o que se falava lá dentro, principalmente se a conversa fosse num tom mais alto. E era mais alto do que ela própria esperava. E aquela voz raivosa não podia ser de outro senão do deputado:

“O que você me afirmou Dr. Auto, lembra? Você me telefonou dizendo que essa moça já estava de férias, havia sumido daqui, que não era mais ameaça alguma para os nossos planos. E disse ainda que ela nunca mais colocaria os pés aqui, não voltaria aqui mais nunca. E vejo quem encontro na maldita hora que entro no seu também maldito escritório, logo ela, logo aquela que se souber do caso daqueles dois pobres rapazes pode abrir o bico e nos destruir totalmente. Se algum estranho souber do que estamos fazendo para que os dois apodreçam a todo custo na penitenciária será nossa ruína, nunca mais receberei um voto sequer, nunca mais vou dispor das mordomias, vou poder continuar roubando a torto e a direito me prevalecendo da minha condição de deputado, não vou mais continuar recebendo as benesses dos amigos poderosos. Você sabe muito bem, seu salafrário, que não tenho mais idade de trabalhar honestamente, de ter uma vida sem luxo, sem mordomia, sem as facilidades da propina. Já sou um velho, seu cachorro, e não conseguiria mais ficar comendo pelas beiradas senão do prato cheio, faminto como a vida parlamentar me ensinou a ser. Quero que você, seu corrupto, entenda de uma vez por todas que o ladrão na política se torna tão profissional que não pode viver sem as maracutaias, sem as porcentagens, sem as propinas, do contrário é o mesmo que enterrá-lo ainda vivo. E você quer que eu morra, seu filho de uma égua? Se essa moça souber de alguma coisa e contar pra imprensa sou um homem morto, e o pior, um corrupto que vai ser enterrado como corrupto. E a imprensa certamente vai estampar nas manchetes que morreu Serapião, o ladrão. Mas se eu souber ao menos que essa zinha ao menos imagina que estamos por trás dessa porcalhada toda, antes de ir pro brejo vou fazer aquilo que eu já disse, e você sabe muito bem o que é. Ela vai ter o que merecer e de você até o número da sua inscrição na ordem ninguém vai mais se lembrar...”.

“Mas deputado, eu garanto que ela só veio aqui terminar um documento e nunca mais colocará os pés nesse escritório. Ademais, deputado, eu juro por tudo na vida que ela não sabe um pingo sequer da história daqueles dois. Amanhã vai sair as sentenças e pronto. Avise aos seus amigos poderosos, ao empresário, ao juiz e ao agiota que já conseguimos tudo. Com a sentença e o trânsito em julgado, pois não haverá recurso algum, o passo seguinte é mandar enterrar logo eles vivo lá na penitenciária. E uma vez lá, acabou-se a história deles, e que morram suas mães de tristeza e pesar. Afinal de contas eu jamais iria preocupar uma figura ilustre como o senhor. Pode dizer a eles que as sentenças, as duas, saem amanhã e não vai mais nem um mês para que os dois, infelizmente, comecem a pagar com a vida pelo que não fizeram. Mas é assim mesmo, pois como diria o nobre deputado na sua máxima filosofia, só os espertos merecem viver. Assim, não vejo motivo algum para aborrecimentos. Fique tranqüilo que nem ela sabe de nada nem o senhor a encontrará mais por aqui outra vez, está certo?”.

“Vou lhe dar essa chance, mas ficar de alerta. Se ao menos eu sonhar que essa zinha sabe de alguma coisa já sabe o que vou fazer, não é? Até posso adiantar os fatos, não sei ainda, mas abra o seu olho, seu filho da puta”.

Conversa rápida, assim que saíram da sala já avistaram Carmen sentada e fazendo anotações. Só levantou a cabeça porque sentiu que o deputado se aproximava. Olhou nos olhos do parlamentar e encontrou uma frieza indescritível, acompanhada de um sorriso que era pura falsidade. E ele ergueu a mão para cumprimentá-la:

“Desculpe-me pela minha falta de educação. Entrei aqui tão apavorado que nem tive tempo de cumprimentar jovem tão bela. Mas que moça linda você tem aqui no seu escritório, nobre advogado, que sorte trabalhar ao lado de um jardim tão florido e aromático. Como é o nome da flor, como é o nome do papai?”.

E Carmen sorria por dentro. Enfim respondeu: “Carmen, meu nome é Carmen Lúcia. E o meu pai talvez o senhor conheça, pois tenho certeza que ele conhece muito bem o senhor. Lembra de Severiano Badaró?”.

“Severiano Badaró, o senhor do agreste, ele é o seu pai?”. E o deputado gelou completamente. Um fiozinho de mijo desceu por suas calças frouxas.

continua...

Poeta e cronista

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