NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 19
NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 19
Rangel Alves da Costa*
Já que estava liberada do trabalho e ao mesmo tempo estágio no escritório, podendo se considerar de férias forçadas, naquela manhã Carmen Lúcia resolveu que iria mesmo visitar as mães de Jozué e Paulo. Primeiro passaria na casa de Dona Leontina, por ser mais distante e num local que, a bem da verdade, não sabia nem onde ficava. Depois, se desse tempo ainda durante a manhã, iria até a casa de Dona Glorita. O problema maior é que moravam em locais muito distantes um do outro, em opostos que se pareciam apenas na pobreza.
Antes de sair verificou se levava os endereços na bolsa e até imprimiu um mapa contendo aquelas localidades, logicamente com medo de se perder em locais que não conhecia e poderiam ser perigosos. Assim, subiu no seu carro e rumou em direção ao Cafundó do Judas. Era esse mesmo o nome indicado por Dona Leontina quando lhe repassou onde morava.
E disse ainda que entrasse ali, depois ali e em seguida suba não sei aonde e desça por ali e depois vire a esquerda. E quando chegar em tal local pode perguntar onde fica o Cafundó do Judas que todo mundo sabe dizer. Para chegar até a rua não era difícil não, era só virar a esquerda, pegar a direita, e mais adiante... A mesma coisa com relação ao endereço de Dona Glorita, só que esta morava num local de nome mais pomposo: Quase Paraíso. E faltava o que para ser Paraíso? Carmen se perguntou, tentando se alegrar um pouquinho. Somente depois é que saberia o que faltava.
Levou mais de uma hora até encontrar o Cafundó. E ficou imaginando quanto sacrifício fazia aquela mulher para se dirigir até o centro da cidade e chegar logo cedo ao escritório para depois ser covardemente tão enganada. Quando o seu carro entrou na rua indicada, surgiu meio mundo de olhares nas janelas e nas portas entreabertas para avistar quem estava chegando naquele carro bonito. Ademais, tanto o carro como a motorista eram completamente estranhos por ali.
Não encontrou o número indicado, mas quando perguntou onde poderia encontrar Dona Leontina logo indicaram uma casinha acanhada, bastante deteriorada pelo tempo, sem uma cor na parede que dissesse que não era marrom lamaçanto. Pelo barulho que fizeram lá fora, antes mesmo que fosse até lá chamar a mulher botou a cabeça numa janela. O maior espanto do mundo pela inesperada visita e depois um sorriso arranjado de satisfação.
Como já era de se esperar, assim que a porta foi aberta ouviu que desculpasse por receber uma moça tão importante, futura doutora, numa casinha tão humilde daquela e que mal tinha uma cadeira decente pra ela sentar. E também como era de se esperar, Carmen tratou logo de afastar tais preocupações e procurou deixar a dona da casa o mais despreocupadamente possível.
Olhou nas paredes e avistou retratos de santos, fitinhas também com nome de santos, uma velha fotografia já amarelada e, num local mais visível, ali mesmo na sala da frente, uma fotografia mais recente, mais conservada, encimada por um plástico. Logo imaginou quem seria e perguntou se aquele retratado ali era o seu filho Jozué. E a pobre mãe, tornando os olhos marejados assim que se virou para o retrato, disse entristecida:
“Esse é Jozué, dona menina, esse é o meu Jozué. Como não tará o bichinho a essa hora, lá preso junto com bandido, gente errada de verdade, e ele seno inocente? A senhora acha que quano sair essa tal de sentença ele vai sair daquele lugar dos infernos?”. E Carmen se aproximou, colocou a mão no seu ombro e disse que era sobre esse assunto mesmo que estava ali para conversar, além de outras coisas certamente.
Mas antes que começasse a falar, Dona Leontina a convidou para conhecer os outros quatro aposentos da sala, consistindo estes em dois quartos que mal dava uma cama em cada um, uma salinha com uma velha mesa de duas cadeiras mais velhas ainda e a cozinha com seus apetrechos e quinquilharias. Pelos cantos, panelas antigas e amassadas, um pote de barro, uma geladeira sustentada por pedras embaixo e cordas por cima e um mundo inteiro de só isso mesmo, pois o fogão de lenha ficava na parte dos fundos, sob uma pequena cobertura. Ali no quintal uma pequena horta medicinal, um chiqueiro de porcos vazio, uma porção disso e daquilo e dois pés de árvores frutíferas, porém desfolhadas. E num canto do cercado duas galinhas e um galo já sem idade amarrados.
“Mas por que estas galinhas e este galo estão amarrados ali no canto, Dona Leontina?”, indagou Carmen estranhando aquela situação. Contudo, antes de responder a boa mulher arrastou-a pelo braço até o seu quarto de dormir e no local estendeu a mão mostrando uns objetos espalhados por cima da cama e num dos cantos.
Quando acendeu a luz Carmen pôde enxergar uma panela de pressão, uma bandeja de inox já bastante desgastada, uma pequena pilha de pratos antigos e com belos desenhos por cima, dois jarros com flores de plástico dentro, parecendo terem sido lavadas há pouco instante, pois pequenas gotas de água pareciam orvalho por cima. E também um pequeno estojo de facas e garfos, igualmente antigo e de grande beleza, um porta joias de madeira envernizada, objeto também antigo e sentimentalmente belo, tendo por dentro duas alianças de ouro, um oratório bem parecido com o que ela tinha em casa e mais outros objetos que deviam ser de inestimável valor para a mulher. E também um cestinho contendo cerca de duas dúzias de ovos. E no chão, estendidos pelo chão, uma caixa de ferramentas já faltando peças, um filtro de água, um ferro de engomar, uma cadeira espreguiçadeira dobrada. E ainda uma imitação de pedestal gótico de gesto desgastado.
Diante de tantos objetos, muitas vezes tão lindos e tão estranhos, e sem entender nada do que estava acontecendo, Carmen enfim perguntou por que estava mostrando todas aquelas coisas ali no quarto. E Leontina, com o olhar tristonho passeando por aquelas relíquias, disse, em voz baixa e embargada:
“Tanto aquelas galinhas e aquele galo como essas coisa aqui, tudo vai ser vendido pra pagar o advogado. É o que tenho no momento. A casa não é minha e não posso vender, e o que tenho por enquanto é isso pra saber quanto dão”.
Ao ouvir isso Carmen se jogou nos seu braços, chorando.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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