Isolamento
ISOLAMENTO
A mulher chegou trazendo consigo cinco crianças. O menor, bebê de seis meses, ainda mamando no peito.
Viera de Itu, escorraçada pelo inescrupuloso marido, após vinte anos de lutas e desventuras de uma vida em comum, somente com a roupa do corpo. Instalaram-se, ela e as crianças na casa dos velhos. A velha mãe, acomodou-os como pôde, dividindo sua cama com a filha e ajeitando uns panos no chão para os netos. O velho ficou de dormir numa tralha de sofá.
A casa constituía-se de dois cômodos germinados com a do filho mais novo, a quem coubera assistir ao casal idoso, já na faixa dos oitenta. E lá ficaram, os velhos dividindo o pouco do feijão com arroz com a filha e netos, o que provocou a indignação da nora que não deixava de dar suas alfinetadas na recém-chegada.
A mulher não podia trabalhar enquanto não desmamasse o bebê que se apresentava forte e bonito.
A duas meninas mais velhas, adolescentes, de lar desintegrado, sem a presença do pai, sofrendo a rejeição da tia, perambulavam meio desorientadas pelas ruas do pequeno vilarejo, onde efervesciam as fofocas, dando muito que falar.
A língua maledicente da cunhada não deixava de insinuar que Brevina como era chamada a mulher, havia sido escorraçada, por ter traído o marido. E, que aquele menino inocente, por certo, não seria filho do cunhado. A pobre mulher defendia-se, dizendo que era o marido quem tinha outra.
A pobre abandonada tinha uma sobrinha que morava na cidade mais próxima da vila, que era pessoa sensível e generosa. Era espiritualista e vivia de seminários em seminários, na busca de conhecer Deus.
A seminarista tinha bons conhecimentos na cidade, e certo dia, a tia apareceu por lá com intenções de arrumar trabalho. Mas, para isso teria que desmamar a criança, e para desmamá-la precisaria comprar o leite, para o quê não tinha recursos.
Ainda que a tia procurasse não demonstrar abatimento, coisa que seu temperamento não permitia, deixou a sobrinha - sensível que era - extremamente chocada, e esta, prometeu a si mesma e a Deus, ajudá-la e àquelas pobres crianças órfãs de pai vivo.
Quando já estava conseguindo um trabalho para a tia, esta apareceu, apreensiva, com o filho nos braços, sucumbido por uma caxumba.
- “O doutor mandou internar” - disse, muito aflita, mostrando o
encaminhamento do médico.
- E agora, como vou fazer?
Com alguma influência que a sobrinha possuía, não foi difícil conseguir um carro
e motorista da prefeitura, para levar a criança, embora ela achasse que não era caso para tanto. Afinal, caxumba era doença corriqueira – pensava, em sua santa ignorância.
Depois de uma hora de viagem, verificaram que não havia vaga no hospital indicado. Contando com a boa vontade do motorista, fizeram verdadeira via-sacra, passando pelas portarias de uma meia-dúzia de hospitais credenciados pelo SUS, sem que encontrassem alguma vaga.
Dirijiram-se para outra cidade, até que finalmente, encontraram quem aceitasse a internação da criança.
Na portaria, preenchida a papelada, surgiu logo uma enfermeira e pediu que a acompanhassem. Deram a volta pelo lado de fora e então chegaram ao pavilhão do Isolamento, que ficava do outro lado, numa ala separada de todo o corpo do hospital.
Pararam diante de uma porta fechada, e ficaram do lado de fora aguardando. Enquanto aguardavam, um longo e aflitivo silêncio se fez, que não era silêncio, antes fosse. Pois ouvia-se, inevitavelmente, choros e lamentos angustiados das criancinhas lá dentro, que com certeza, reclamavam a solidão, a ausência do colo materno. Não se ouvia nem uma só voz consoladora, ou assistencial no local.
A seminarista, que com dedicação divina, tudo acompanhava, observou a seguir triste cena, que jamais haveria de esquecer: a porta abriu-se, e de lá saiu uma enfermeira com máscara protetora no nariz e boca, que tomou o bebê do colo da mãe, pelo pequeno vão da porta que se abrira, apenas o suficiente para passar a criança. Por mais que a mãe esticasse os olhos, não conseguiu ver o interior da ala, nem o berço, nem se lá havia calor ou luz.
O bebê, que permanecera prostrado, quase inerte, durante toda a viagem, começou a chorar ao ser arrancado do colo. A mãe solícita quis agradá-lo, mas já não podia, a enfermeira ia já se afundando para dentro do Isolamento.
A porta se fechou rapidamente. Sem dar tempo à mãe aflita, de dar um último beijo, ou alguma recomendação qualquer.
A sobrinha chocou-se profundamente, ao ver que o bebê ficaria isolado, não pensara naquilo. Não tinha pensado nesse terrível detalhe. E ainda interrogava-se, se realmente, havia necessidade para tanto. Nesse momento, porém sua preocupação maior era para com aquela mãe, angustiada, diante da porta fechada, impedida de ir acalmar o filho que chorava.
Ficaram ali parados, durante um minuto que pareceu uma eternidade, ouvindo o choro do bebê que se prolongava. E, naquele instante, a seminarista teve certeza, de que jamais esqueceria aquela cena.
Quatro dias se passaram e a mãe sem notícias, visto que até para ir visitar o filho era difícil, pois não tinha recursos.
E foi ainda incrédula que a seguidora de Deus, revoltada, encontrou-se na capela fria e solitária do hospital, velando o corpinho sem vida daquele tão corado bebê de antes. Mas, que ainda assim, apesar da palidez da morte, tinha a morenice do pai estampada no rostinho lindo.
Quando lá chegara, a mãe já havia se acalmado um pouco, encontrava-se resignada. Ou talvez, não tivesse conseguido ainda assimilar os sentimentos que a envolvia em tão trágico momento. O rancor que ainda sentia pelo ex-marido que se encontrava ao lado da pequena urna branca, com o olhar perdido, não se sabia em quê dia do passado....
A criança era a cara do pai. E a seminarista, olhando para aquele inocente adormecido se perguntava: “se ele ainda teria dúvidas...”
O amor dos laços parentescos que nutria, e do jeito que se achava envolvida com o drama daquela família, desde o início, não podia deixar de tudo observar.
Notou, quando a prima, filha mais nova do casal, chegou ao local, levada por um conhecido. Mal olhou para o irmãozinho morto; só tinha olhos para o pai, há tanto tempo distante, que até mesmo estando ali, permanecia ausente. Percebeu a intenção da menina, em aproximar-se do pai. E devagar, disfarçadamente, foi se achegando.
- Bença, pai! – disse, estendendo a mão a procurando os olhos do pai que
há tempos perdera.
Indiferentemente, ele pegou na mão da menina, sem se importar em demonstrar nenhum carinho, sem interesse, nem ao menos notou, nos olhos da filha, a alegria injusta, naquele triste momento. Os seus olhos do homem permaneciam fixos, ou no anjinho, ou no chão.
“Onde estava o Deus que tanto buscava? Por que tudo aquilo que via?”
Não podia compreender. Os pensamentos lhe assaltavam a mente, sem querer aceitar que O Criador fosse injusto, porém, não via coerência na realidade que assistia. Se o marido fora cruel e abandonara a família, por que também Deus o fizera, levando o menino?
Não, não podia entender essa Divindade!
Acabava de sair de um seminário carismático, onde a convenceram de que “Deus é Real”.
E tinha ainda a preocupação com a velha avó. Não sabia como iria encontrá-la. Tão velhinha, tão frágil... tantos golpes nesta vida...
- “Deus sabe o que faz! Escreve certo por linhas tortas”... Expressando-se assim
resignada, a velhinha a surpreendeu.
Ajeitando o lenço, que trazia passado sobre a testa e amarrado na nuca, com suas mãos magras e marcadas pelo tempo, a anciã em sua fé cega, constatava pacificamente: “Deus sabe o que faz”...
Quando a seminarista chegou, a avó estava sentada no terreiro, esquentando-se ao sol, pois era inverno. Apontou com seu dedo longo os sulcos cravados no rosto:
- “O tempo fia”... – disse, “Não trás apenas essas rugas aqui, não! O tempo trás
também discernimento... O que a gente não pode entender hoje, a gente vai entender amanhã”...
Não, não podia aceitar nada daquilo tudo: a separação de entes-queridos, muito menos, aceitar a morte. Via, porém, que a velha tão frágil, tão sofrida, possuía uma indubitável força.
Tranqüilizou-se um pouco, enfim, ao ver que a avó sofria menos, muito menos do que ela, que não podia aceitar o destino.
Observou que a anciã não trazia no semblante a amargura, nem no coração a dúvida.
E ponderou: “Deus deveria ser mesmo Real!”