COTIDIANO PAULISTA - O ÔNIBUS I

COTIDIANO PAULISTA

O ÔNIBUS I

Sylvio Roberto Biscaia Braga

O Alcides era o tipo do cara que ninguém poderia dizer que nasceu aquinhoado pela sorte, mas, em compensação é uma pessoa alegre, bem educada, sendo difícil algum dos seus amigos dizer que já o viu mal humorado ou respondendo a alguém grosseiramente.

A sua falta de sorte começa pelo lugar onde mora, próximo à Estrada do Campo Limpo. Não que o lugar seja ruim. Até que não é, muito verde, bem arborizado, mas a principal dificuldade é a distância que o separa do resto da cidade, principalmente do centro, este o seu principal campo de atuação.

Ele é advogado e é justamente no centro da cidade, onde ficam localizadas a justiça civil e o tribunal de justiça e, não muito longe daí, a trabalhista e a federal.

Certa vez perguntaram ao Alcides onde ele morava e a sua resposta foi, como sempre bem humorada.

- Moro onde não mora ninguém, meu amigo.

Não é bem assim, pois o local onde ele mora é até bem povoado, para não dizer povoado até demais. É bem servido de ônibus, mas com um grande inconveniente: para ir até o centro, é necessário que se utilize de três ônibus para ir e três para voltar e todos – frise-se – andam sempre superlotados.

O primeiro ônibus ele pega para ir do ponto que fica mais ou menos a um quilômetro de sua casa até o Terminal Capelinha na Estrada de Itapecerica.

O segundo, daí até o Terminal Bandeira e o terceiro desse Terminal até à Praça João Mendes, geralmente o seu destino final. E isso, no mínimo três a quatro vezes por semana.

Bem calculado, o Alcides passa cerca de 5 horas diárias com a bunda colada nos carcomidos e nem sempre confortáveis assentos dos velhos e já superados ônibus de São Paulo. É necessário que saia de casa cerca de 7:30/8:00 horas da manhã, para poder chegar no centro por volta das 10:00 horas.

À tarde, quando regressa para o – como ele costuma dizer – recôndito do seu lar, entra no transporte por volta das 17:00 horas, somente chegando em casa lá pelas 19:30 horas, isso quando o trânsito está fluindo normalmente, o que raramente acontece

Desde que chega até a hora de regressar ao lar ele trabalha, principalmente dentro dos fóruns isso porque o atendimento dos cartórios é de péssima qualidade e bastante demorado.

O único tempo disponível que tem é de cerca de meia hora que ele dedica a almoçar, o que fazia, quando tinha algum dinheirinho, num self service chamado ‘Cantinho do Céu’ que – é isso mesmo que você pensou caro leitor – está colocado lá em cima de um velho casarão da rua José Bonifácio, de forma que haja escada para subir, mas a comida era barata e de boa qualidade. Com a morte do seu dono, Sr,. José, passou a almoçar um delicioso espetinho de frango num barzinho chamado “Kaneko” onde tem, além da boa qualidade, a simpatia do dono, Wilson. Todavia, quando o largeant está curto – como ele costuma dizer – o seu almoço ou é um delicioso churrasco grego com um suco, pelos quais paga R$0,70 ou, quando muito um pastel de queijo com um copo de caldo de cana comprados num mal cheiroso boteco de um casal de chineses e que não lhe sai por mais de R$1,50.

A ida pela manhã para o centro, até que não é muito problemática, pois no horário que ele pega o ônibus no Terminal, o pior já aconteceu por volta das 6:30/7:00hs.

Mas a volta para casa é o que mais preocupa o Alcides, principalmente no trecho entre o Terminal Bandeira e o Terminal Capelinha. Esse é de doer.

Geralmente quando ele chega ao Terminal Bandeira, a fila – se é que aquele amontoado de gente se comprimindo numa daquelas ilhotas se pode chamar de fila – está enorme, até o momento em que o ônibus encosta. Aí então, quando abre a porta para a entrada dos passageiros, aquilo se transforma em um verdadeiro salve-se quem puder, um típico estouro da boiada, pois a turba enfurecida, sem respeitar nada nem a ninguém, invade o ônibus, isso com a conivência dos fiscais que, em reduzido número, pouco podem fazer. Em fração de minutos o ônibus já está completamente lotado, e olha que é, quase sempre, um daqueles ônibus enormes – os chamados bi-articulados – onde cabe bem mais passageiros que os outros normais.

O Alcides sempre que chega ao Terminal e vê aquele amontoado de gente se digladiando para entrar, costuma dizer, a título de brincadeira: – Átila, rei dos Hunos e os seus bravos guerreiros estão no auge da invasão de mais uma cidade que, sem a mínima defesa irá capitular diante da sua sanha assassina.

O negócio é tão violento e tamanha a selvageria com que as pessoas se portam, que de vez em quando se ouve um grito angustiado partido de alguma infeliz mulher – Socorro deixem eu descer que estou passando mal – que, de uma hora para outra se sentiu sem chão sob os pés, sendo transportada via aérea, para dentro do transporte, carregada que foi pela plebe ignara.

Diante essa invasão de bárbaros até que o Alcides pode se considerar um privilegiado, pois já tendo completado 65 anos de idade, é considerado como idoso. Portanto, tem direito a viajar sem pagar e tem o direito de entrar pela porta da frente, onde alguns poucos lugares estão reservados para pessoas de idade igual à dele ou mais velhos.

Assim, calmamente, dirige-se à porta dianteira e mediante a apresentação da sua Cédula de Identidade, tem o seu acesso permitido pelo piloto. Sim, porque motorista de ônibus do Terminal Capelinha é carinhosamente chamado de piloto, pela “turba ímpia e nojosa...”, como diria o grande poeta e juiz, Raimundo Correia. E esse carinho manifesta-se de maneira mais acentuada, quando aplica um freio mais violento, ou fica parado no engarrafamento do trânsito, é constantemente brindado com gritos de louvor em homenagem àquela que o colocou no mundo.

Iniciada a viagem, em cada ponto que o veículo pára, por incrível que pareça, mais e mais gente consegue entrar e do final da Av. 9 de Julho até o Terminal Capelinha, o que predomina é a lei do mais forte. Alguns elementos, mexendo na engrenagem de ar comprimido das portas de saída, conseguem abri-las e preferem viajar dependurados do lado de fora, pois dentro é uma verdadeira lata de sardinhas.

Quando o ônibus chega na Marginal Pinheiros e o trânsito está bom, devido à alta velocidade dos ônibus, os mais corajosos se penduram do lado de fora da porta e viajam um bom pedaço como se estivessem voando, seguros apenas pelas mãos, enquanto outros, mais exibicionistas e ousados, praticam o chamado surf urbano, que consiste em viajar em pé se equilibrando no teto do ônibus.

O Alcides viaja sempre sobressaltado com medo que aconteça alguma coisa com esses heróis anônimos do cotidiano, que – sem terem o mínimo apego à vida – se exibem de maneira tão perigosa, pelo simples prazer da aventura e para o êxtase quase orgástico das moçoilas e coroas assanhadas que estão a bordo.

Para evitar esses sobressaltos, durante uma certa temporada ele resolveu modificar o seu itinerário e passou a pegar o ônibus que saía do Metrô Vila Mariana que não só é freqüentado por pessoas um pouco mais civilizadas, como, também o percurso que realiza é um pouco mais curto de forma que, ao invés de ficar sentado durante 2:30 horas, ele ficava apenas 2:10/2:15 horas o que já é um progresso.

Certa vez tendo entrado num ônibus nesse ponto, como de costume sentou-se no primeiro banco, logo atrás do motorista no banco destinado a idosos.

Como estivesse fazendo muito calor e sabedor que até o fim da viagem ainda muita gente entraria no ônibus, Alcides, fugindo ao seu hábito de sentar-se sempre no banco do corredor, sentou-se na janela, abrindo-a para ver se melhorava o calor.

Quando o veículo partiu para sua grande surpresa permaneceram vazios dois lugares nos bancos destinados a idosos, sendo que um era exatamente ao seu lado.

No primeiro ponto, um dos lugares foi ocupado e no segundo, do meio do bolo de gente que entrou uma delas sentou-se ao seu lado.

Não demorou muito, no entanto, e Alcides começou a sentir um mau cheiro terrível. Um cheiro que parecia ser de merda, como se alguém houvesse cagado nas calças e, impossibilitado de mudar de roupa, com ela permaneceu, pretendendo, com certeza, fazê-lo quando chegasse em casa.

A viagem prosseguia e ele percebeu que algumas pessoas que estavam de pé faziam careta torcendo o nariz, o que o levou à convicção de que o fedor realmente existia e não era fruto da sua imaginação, como havia pensado a princípio.

Tentou a todo custo abrir mais a janela, mas os seus esforços foram em vão isto porque, sendo ônibus velho, a janela está sempre emperrada para abrir em dia de calor e para fechar em dia de chuva, por mais força que a gente faça.

À medida que o ônibus recebia mais passageiros, mais o calor aumentava e, como conseqüência, mais forte a fetidez se tornava. Alcides notou que no corredor ao lado do lugar onde estava sentado o seu companheiro de viagem, havia um claro já que todos que entravam paravam ali o tempo suficiente para sentir o fartum e logo tratavam de procurar outro lugar que – embora mais apertado – pelo menos não fedia tanto.

Notou, também que toda vez que o seu vizinho se mexia, era como se alguém houvesse remexido no fundo da fossa e o odor fétido ganhava nova força chegou então à triste conclusão de que, na verdade, quem estava exalando tão forte graveolência, era exatamente o cidadão que estava sentado ao seu lado.

O que fazer então? Levantou-se e tentou, aplicando mais força, abrir mais a janela. Mais uma vez foram infrutíferos os seus esforços já que a mesma permanecia inarredável.

Por outro lado, a situação tornava-se cada vez mais intolerável, pois o acatingado piorava de instante a instante, principalmente quando o cagado se mexia no banco.

Alcides conjeturava: Será que ele está fazendo mais ou está apenas ajeitando no lugar o que já fez? Dúvida atroz. Temia ser mal interpretado caso chamasse a atenção do vizinho, pois pensava, e se não fosse ele? E olha que, fisicamente, o homem era bem mais forte que o Alcides.

Mas não. Só podia ser ele. O fedor era forte demais para não ser ele.

Optou, finalmente, por tirar o lenço do bolso e, acintosamente, o colocou sobre o nariz, deixando antever ao vizinho que estava incomodado com o desagradável odor.

E servia mais ainda, para que os demais passageiros incomodados percebessem que não era ele quem fedia tanto. Mas o cidadão nem se tocou com a sutil mensagem que o Alcides mandara, muito pelo contrário, passou a mexer-se com mais freqüência, o que fazia o mau cheiro renovar-se e vir mais forte ainda e assim, a viagem prosseguia com o motorista atravessando airosamente o pesado tráfego já àquela hora existente na Av. Ibirapuera e, logo em seguida pela Vereador José Diniz.

Alcides sempre foi muito católico, muito embora não seja desses carolas que todo domingo na missa, estão disfarçando suas maldades e pedindo a absolvição dos pecados que cometeram durante a semana, mas, nessa hora, temendo a qualquer momento não agüentar mais aquela situação, fechou os olhos e com toda a fé de que se achou possuído, rezou para Santo Antônio, santo da sua devoção, pedindo-lhe que desse um jeito daquele cidadão descer no próximo ponto. Chegou até a prometer algumas coisas que, como sói acontecer, jamais iria pagar. Mas o próximo ponto chegava e nada. E depois outro e mais outro e nenhum sinal de que o camarada ao seu lado fosse descer. Alcides chegou a temer que o seu prestígio junto àquele Santo estava em decadência. Também, devia tantas promessas não pagas.

Finalmente suas preces foram ouvidas e já na Av. João Dias, o fedorento passageiro perguntou para uma senhora atarracada, cabeça de nortista – a única que, não obstante estar o tempo todo fazendo careta, conseguiu permanecer em pé no corredor junto a ele – onde ficava um determinado lugar e ela recomendou que ele descesse no primeiro ponto adiante.

O homem levantou-se e quando se dispôs a caminhar em direção à catraca era um tal de gente se apertando para não ter que se esfregar nele, quando um garotão tirado a engraçado colocado mais atrás, não se contendo, gritou alto e bom som:

- Piloto, alguém cagou dentro da sua Mercedes!

Sentindo-se aliviado, Alcides, tão logo o cidadão sumiu no turbilhão de passageiros que se amontoavam próximo à catraca, virou-se para a senhora baixinha, que permanecia em pé e disse:

- Deve estar todo cagado!

Ao que ela com cara bastante convicta sentenciou, com acentuado sotaque nordestino: - Só pode!

Até o final da viagem o lugar ao lado do Alcides permaneceu vazio, pois a nordestina baixinha não deixava que ninguém sentasse, avisando que o assento, muito embora não parecesse, devia estar sujo de – como ela dizia em português castiço – bosta.

Quando chegou em casa, tão logo Alcides pôs os pés no lado de dentro da porta, a sua mulher e a filha que estavam assistindo televisão já denunciaram o mau cheiro que ele trouxe da rua.

Seria desnecessário dizer que a roupa que vestia naquela ocasião foi direta para a máquina de lavar com direito a ser lavada sozinha e a dose dupla de desinfetante e outros produtos que tais.

S B Braga
Enviado por S B Braga em 12/06/2011
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