A FESTA DOS QUINZE ANOS

A FESTA DOS 15 ANOS

A princípio com os passos meio tímidos, depois, quando a moça veio em seu auxílio, sentiu mais confiança e dirigiu-se a ela com a voz firme que sempre teve:

- Boa tarde, senhor. Deseja alguma coisa? Perguntou a balconista.

- Sim, minha filha. Há uns três dias atrás adquiri um duque aqui na mão de vocês, deixei para fazerem a barra da calça e estou voltando hoje para pegá-lo, respondeu.

- O senhor disse um duque? Insistiu a balconista.

- Sim, meu bem. Aqui está o recibo que o vendedor me deu.

- Ah! Exclamou ela, o senhor veio buscar um terno que deixou para arrumar, não é isso?

- Não meu bem, respondeu, vim buscar um duque. Calça e paletó. Seria terno se tivesse adquirido também o colete, mas, infelizmente hoje quase não se faz mais colete, não é verdade?

O balconista, pediu-lhe que sentasse um pouco e aguardasse, pois ela iria buscar a sua compra. No entanto, não pôde deixar de notar que ele estava elegantemente vestido com calça na cor escura e que lhe assentavam muito bem, um blazer azul escuro, camisa branca, gravata de listras cinza claro e cinza escuro e sapatos pretos.

Quando voltou, a mocinha trazia nas mãos um cabide com um belo duque escuro com finas listas claras, o conhecido risca de giz e já foi comentando:

- O senhor é uma pessoa bastante elegante e este terno que acaba de adquirir, ou melhor, duque, como o senhor diz, vai lhe assentar muito bem. Quer ir até a cabine e experimentar para ver se ficou bom?

- Não minha filha. No dia que o adquiri o seu alfaiate marcou bem as medidas e, como acredito seja ele um profissional competente, tenho certeza que está tudo certo.

Muito da enxerida, a balconista, tratou logo de encompridar conversa.

- Pela qualidade da roupa que o senhor comprou, imagino que vai a algum casamento. Não quer aproveitar e ver alguma camisa, uma gravata ou qualquer outra coisa?

- Não meu bem. No dia em que estive aqui já comprei tudo isso, de forma que estou devidamente uniformizado.

Ao dizer esta última palavra, sorriu, mostrando para ela uma bela dentadura sob um bigode bem aparado.

- Quanto à festa que vou, você se enganou redondamente. Não se trata de um casamento, mas, sim, de uma festa tão ou mais importante do que um casamento.

- E eu posso saber que festa é essa? Insistiu a balconista.

- Com certeza, respondeu prontamente o elegante senhor. Trata-se da festa dos quinze anos da minha única netinha. Vai ser uma festa tão linda.

- Com certeza que vai sim e a tirar pelo avô, ela deve ser muito bonita.

- Ah! Meu bem, disse ele, ponha bonita nisso e depois acrescente a tudo o que você puder, em dobro e nem assim você chegará perto da beleza da minha querida netinha.

- Humm! Vejo que o senhor é um avô daqueles que toda pessoa gostaria de ter.

E, querendo ser agradável com ele, acrescentou:

- Mas, para ser franca, estou achando o senhor muito moço para ter uma neta já com quinze anos de idade.

Ele riu da observação e, em seguida, estendendo-lhe a mão para se despedir, disse:

- Vejo que você, talvez pelo fato de ser ainda bastante jovem, é péssima observadora, minha querida, no entanto, agradeço-lhe pelo atendimento e pelo elogio.

Após apertar a mão da moça, ia virando as costas para sair com a sua sacola, quando a ouviu perguntar.

- Desculpe a minha insistência, mas quantos anos o senhor tem?

- Completarei no final desse ano, se chegar até lá, setenta e dois.

Saiu da loja e não ouviu o seu último comentário que dizia:.

- Meu Deus se ele não dissesse eu não acreditaria que tem essa idade. Dar-lhe-ia no máximo uns sessenta e cinco anos e olhe lá.

Quando chegou em casa, o professor Leonardo pendurou o duque que havia adquirido, junto à camisa e à gravata.

Abriu a gaveta do armário e de lá tirou um par de meias pretas novo e o colocou junto ao par de sapatos, também novo, próximo ao criado mudo. Feito isto, tirou a roupa que vestia, colocou o seu pijama, dirigiu-se à sala onde ligou a televisão e sentou numa confortável poltrona que lhe foi presenteada por seus filhos no dia dos pais há cerca de uns dois anos atrás. Sintonizou a TV num canal que passava um filme policial, desses de trinta a quarenta e cinco minutos de duração e que eram os seus preferidos.

Gostava muito de “CSI”, “Cold Case” e entre as comédias curtas que passavam constantemente a sua preferida era “Friends”. naquele dia passava um outro policial que ele também apreciava muito chamado “Third Watch.”

Lá pelas oito da noite, levantou, e, cumprindo um ritual de quatro anos, foi até a cozinha, abriu o forno do fogão donde retirou três pequenos pirex com comida e, um a um, os esquentou no forno de micro ondas. A mesa da cozinha já estava posta, pois D. Esmeralda, todo dia antes de sair deixava tudo preparado para ele.

Após jantar, colocou tudo na pia, voltou para a sala onde assistiu o Jornal Nacional e logo após o tradicional boa noite dos apresentadores, desligou seu aparelho e foi para o quarto. Escovou os dentes, tomou seus antidepressivos, e o remédio para dormir, lavou o rosto e deitou para ler um pouco até o sono chegar. Estava lendo “Os cem Melhores Contos de Crimes e Mistério da Literatura Universal”, que lhe foi presenteado recentemente por um amigo.

A leitura e a música clássica eram seus passatempos favoritos, já que, após a morte de D. Bernadete, sua mulher, não tinha mais muito ânimo para conversar com outras pessoas e além do mais – pensava – quem teria prazer em conversar com um velho aposentado?

Quando o sono chegou colocou o livro no chão, ao lado da cama, apagou a luz e pouco depois estava dormindo.

Era essa a vida do professor Leonardo nos últimos quatro anos, desde que sua mulher morrera.

Vez por outra essa rotina era quebrada por um dos seus filhos que vinham visitá-lo, fazendo-lhe um pouco de companhia. Ele e D. Bernadete tiveram três filhos, sendo dois homens e uma mulher.

Dos filhos homens um deles, Edmundo, morava nos Estados Unidos onde trabalhava num banco de investimentos, enquanto o mais velho, Álvaro, era médico com consultório em São Paulo, além de também trabalhar num grande hospital. Eram ambos solteiros e, muito embora levassem vida de casados com as respectivas companheiras, diziam-se completamente avessos ao casamento oficial.

Sua única filha, a caçula Heloísa, era advogada, casada havia mais de vinte anos com um também advogado, doutor Orlando Damasceno da Silva Mendes.

Desse casamento, após muita luta e insistência com todos os modernos métodos para engravidar, somente após cinco anos de casados é que veio a nascer aquela que se tornaria a paixão e alegria do professor Leonardo e de D. Bernadete.

Chamava-se Letícia, tinha os cabelos claros como a mãe e os olhos escuros que havia herdado do pai.

Dali a dois dias Letícia iria comemorar seus quinze anos e seus pais resolveram presenteá-la com uma festa no salão de festas do prédio onde moravam, enquanto que seus tios e o avô deram-lhe de presente uma viagem aos Estados Unidos, seu grande sonho.

A morte da mulher foi um golpe do qual o professor Leonardo jamais se recuperou totalmente. Abateu-se muito e, segundo costumava dizer, perdera, além da companheira, também o gosto pela vida, somente lhe restando aguardar a chegada da morte para levá-lo para junto da mulher com quem ele viveu tão feliz durante toda a sua vida.

Aposentou-se no ano seguinte à morte dela e se recolheu em casa, donde raramente saía.

Todo fim de semana os filhos e a neta vinham almoçar com ele e à noite saíam todos juntos para comer pizza. Era essa a única extravagância que se concedia, além, é claro, de ir à casa dos filhos quando havia algum aniversário.

Umas poucas vezes a neta havia conseguido tirá-lo de casa para irem ao cinema à tarde, mas isso muito esporadicamente, pois sempre que convidado inventava uma desculpa para não acompanhá-la.

D. Bernadete morreu em conseqüência de um câncer no útero que, quando descoberto, já nada mais restava fazer. Mesmo assim, orientada pelo filho médico, consentiu em submeter-se a uma histerectomia.

Pouco antes de subir para a sala de operação, conversando com seu marido, pediu-lhe que a esperasse que ela logo voltaria e ainda viveriam juntos muitos anos, para verem a netinha querida crescer e casar. Ele, a acompanhou até a porta da sala do centro cirúrgico, sempre lhe segurando a mão.

Ela não retornou com vida para o quarto. O câncer, como esperavam os médicos, já havia se espalhado por outros órgãos e, quando eles se preparavam para fechar o corte, diante da inutilidade de qualquer intervenção, o seu coração não agüentou a carga e parou de bater, sendo em vão todos os esforços para tentar reanimá-lo.

Chegado o grande dia dos quinze anos de Letícia, o professor Leonardo logo cedo telefonou para ela, querendo ser o primeiro a dar os parabéns, segundo disse. Prometeu que logo mais à noite estaria na festa e, de antemão, avisou que pelos menos uma música fazia questão de dançar com ela.

A menina ficou feliz por ter falado com o avô a quem ela dedicava muito carinho e queria muito bem.

À noite, acompanhado pelo filho Álvaro com a mulher, o professor, envergando sua roupa nova, comprada exclusivamente para aquela oportunidade, compareceu à tão ansiosamente esperada festa de quinze anos da sua querida neta Letícia. O salão estava cheio, pois sua filha e o genro eram bem relacionados, havendo, como era esperada, uma grande presença de jovens na mesma faixa de idade da aniversariante, fazendo a costumeira algazarra, própria da juventude.

Alegando que dançar a valsa com o pai estava fora de moda, Letícia concordou em dançar a primeira música com ele enquanto a segunda ela reservou para dançar com o querido avô, e fez questão de reservar para ele uma música muito bonita. Era uma conhecida balada americana, unforgetable, muito bem executada por um simpático e alegre jovem que dedilhava um teclado que fazia às vezes de uma orquestra inteira.

A festa prosseguia animada, quando, de repente, o professor Leonardo, que estava sentado numa mesa junto ao filho Álvaro, olhando para o lado, disse qualquer coisa que o filho não entendeu. Em seguida levantou-se, estendeu o braço direito como se estivesse segurando a mão de alguém e com o braço esquerdo fez o gesto característico de estar abraçando essa pessoa pela cintura e, assim, pôs-se a dançar.

- Bernadete, meu benzinho, até que enfim você chegou. Não sei por que o Álvaro me trouxe sozinho, pois poderíamos ter vindo todos juntos, não é?

Os filhos e amigos mais chegados viram o professor sair dançando pelo meio do salão e ficaram meio atônitos.

- Olha Bernadete, estão tocando aquela música que nós gostamos tanto. A música daquele filme que vimos lembra-se. Faz tantos anos que nem me recordo mais o nome. Só sei que gostamos muito, principalmente da música. Ora meu Deus, como era mesmo o nome? Hein! O que você disse? É isso mesmo querida. O filme chamava-se “Tarde Demais Para Esquecer”, An Affair to remember. Como a sua memória é boa? Essa música sempre foi a nossa preferida, não é mesmo?

Fez-se um breve silêncio enquanto dançavam e ele retomou.

- Não. Como você sabe, faz mais ou menos uns três anos que me aposentei. Minha cabeça já não andava muito boa, inclusive nas últimas aulas que dei tive certa dificuldade em lembrar alguns fatos.

Novo silêncio, seguido de novas palavras do professor Leonardo.

- Você tem toda razão, querida, a nossa netinha está tão linda não é mesmo? Lembra-se daquela sua prima? Sim, a Daniela. Lembra-se dela? Pois bem, tem certas horas que acho a netinha a cara dela. A sua prima quando mais moça era e ainda hoje é muito bonita, você não acha? Ora Bernadete, por que esse ciúme agora? Você bem sabe que na minha vida só há e sempre só haverá uma mulher e essa mulher é você. Eu velho galanteador? Nem parece que você me conhece tão bem Bernadete, afinal há quantos anos estamos casados? O Álvaro, que é o mais velho está com cinqüenta e cinco, hein? Cinqüenta e seis? Não lhe disse que sua cabeça está melhor do que a minha meu benzinho. Sabe que é interessante, apesar de estarmos casados há tantos anos, tem certas horas que me parece que não vejo você faz uma eternidade. Coisa de velho não é? Quê? Então você não me acha velho? Gozado, nesses últimos dias, você é a segunda pessoa que me diz isso. Quem foi a outra? Sim, foi a mocinha da loja onde comprei essa roupa especial para esta festa. Simpática e muito educada ela, muito embora eu a tenha achado um pouco enxerida.

Novamente silêncio, enquanto, sob os olhares de todos, o professor Leonardo, todo risonho, continuava dançando com a sua Bernadete no meio do salão.

- Você se lembra de quando nos conhecemos Bernadete? É, naquela festinha de 15 anos daquela sua vizinha e amiga. Como era mesmo o nome dela? Sim. Aline. É verdade.

O professor Leonardo continuava dançando, com um sorriso de felicidade estampado nos lábios.

- Recordo-me que você estava sozinha perto da janela e eu me aproximei reclamando do calor. Lembra-se? Chovia e as janelas estavam fechadas.

O professor Leonardo ria como se alguém estivesse dizendo-lhe alguma coisa boa, trazendo-lhe à mente, alguma lembrança agradável.

- É sim. Você lembra como começamos a conversar? Cheguei, você estava parada e eu, dirigindo-me a você disse...

- Nossa, a sua cabeça é formidável. Foi isso mesmo que eu disse. Acho que se hoje um rapaz se aproximar de uma moça com essa conversa, vai levar um fora dos diabos, você não acha?

- É verdade, mas naquela época não. O que lhe disse teve receptividade, tanto é assim que você me respondeu de imediato: Você tem razão. Eu também acho que já o conheço de algum lugar.

- Gozado, não é. Mas a verdade é que essa era a cantada da época.

O professor riu.

- Que cantada mais boba.

E dando um tom diferente na voz, prosseguiu.

- Acho que já a conheço de algum lugar!

Voltou a sorrir.

- Nunca lhe havia visto antes. Quê? Você também nunca havia me visto antes também?

Parou de dançar, empertigou o corpo, colocou as mãos na cintura e demonstrando no rosto um tom de zombaria, acrescentou:

- Bernadete, como você era assanhada, não? Na verdade, foi isso mesmo que aconteceu. Nós nos vimos e já simpatizamos um com o outro não foi?

Segundo seus filhos e os amigos mais próximos que o conheciam e sabiam que ele, além de não saber era também avesso a dançar, estava, naquela noite, dançando como se fosse um dançarino profissional. Era o próprio Fred Astaire.

- Você, como sempre, tem toda razão Bernadete, já falei com Álvaro e com Edmundo que é para regularizarem logo esta situação deles com as respectivas mulheres. Não sei por que essa encrenca deles com o casamento.

- Pois é. Nós nos casamos cedo e somos felizes até hoje, não é? Veja, eu com setenta e dois anos dançando, coisa que jamais gostei de fazer, mas é que hoje é um dia especial para nós, não é meu amor?

- Sabe Bernadete, a cada dia que passa, sinto que gosto mais de você e seria muito difícil viver sem a sua companhia.

- Por que você diz que sou galanteador? Não posso ser sincero? É a pura verdade Bernadete.

- Lembra-se há poucos dias atrás, quando escutava o Concerto nº 5 para Piano, de Bethoven, o famoso ‘O Imperador’? Bem. Você, naquela ocasião me disse que me amava muito. Lembra-se? O gozado é que você nunca foi muito de conversar sobre esses assuntos não é?

- É isso mesmo. Você tem toda razão. Com o tempo a gente vai envelhecendo e vai se apegando mais às pessoas não é?

Neste momento o seu diálogo foi interrompido.

- Papai! Vamos sentar um pouco na mesa para tomar alguma coisa?

Era o seu filho Álvaro, acompanhado da sobrinha, da irmã Heloísa e do cunhado Orlando, que haviam se aproximado dele e o estavam chamando.

O professor Leonardo parou de dançar, virou-se para eles dizendo-lhes.

- Vocês depois de velhos estão ficando mal educados. Por que não cumprimentam sua mãe que está dançando comigo? Letícia, minha filha, tome a benção da sua vó. Ela estava ansiosa por vê-la netinha.

- Venha pai, tornou a insistir Álvaro pegando-o pelo braço e dirigindo-se para a mesa onde estavam sentados.

Quando chegaram na mesa, o professor virou-se para o lado e disse:

- Está bem Bernadete. Vá retocar a sua maquiagem que eu lhe espero, muito embora ache que você esta noite está mais linda do que o habitual. Vá, meu bem, nos encontraremos mais tarde.

Os olhos de todos se encheram de lágrimas.

Somente Álvaro, mais velho, médico acostumado a enfrentar situações como aquela, não deixava transparecer qualquer emoção.

- Papai, você está sonhando, acho melhor irmos para casa. Já está um pouco tarde e você me parece um pouco cansado. Você tomou seus remédios antes de vir? Vamos. Vou levá-lo para casa.

- Meu filho, felizes os que sonham ainda que sejam sonhos que não se possam realizar.

Todos estavam calados olhando para o professor Leonardo.

- Quero me despedir da minha netinha querida. Onde ela está?

- Estou aqui vovô, respondeu Letícia com o rosto banhado de lágrimas.

- Por que você está chorando meu amor? Numa noite tão alegre como esta você tinha mais é que estar sorrindo, ou será que brigou com o seu namoradinho? Lembre-se do que seu avô vai dizer, minha querida. O amor é sempre belo, mas só é grande quando sofre, quando perdoa, ou então quando tem saudade.

- Não vovô. Não tenho namorado. É que estou muito contente por você ter vindo à minha festa. Esse choro é só de emoção e alegria. Pode ir tranqüilo que está tudo bem. Muito obrigado por ter vindo e pelo maravilhoso presente que você e meus tios me deram.

Em seguida ela deu, na face do avô, um beijo totalmente impregnado de amor, carinho e ternura e ele, sorrindo, passou a mão pelo local do beijo, fez com a mão um gesto como se o estivesse arrancando do rosto e lhe disse.

- Esse beijo foi tão gostoso que vou pegá-lo, colocá-lo no bolso e, quando chegar em casa, guardá-lo na minha caixinha de sonhos.

- Vamos papai, voltou a dizer Álvaro.

- E sua mãe, meu filho, não vai conosco? Perguntou o professor.

- Não papai, ela vai de carona com Orlando e Heloísa. Agora vamos que está tarde para você estar acordado.

Saíram de carro e no trajeto o professor manteve-se calado, respondendo evasivamente as perguntas do filho, mas sempre que se falava na festa e na neta, ele se animava e respondia alegremente.

Estavam chegando perto do seu destino e então, virando-se para o filho, disse-lhe.

- Álvaro meu filho, se você quer ser amado, ame, pois somente amando é que se é amado. Aja assim e você sempre será feliz, meu filho.

Quando chegaram em frente ao prédio onde ele morava, o filho quis acompanhá-lo até o apartamento que ficava no terceiro andar, porém ele o dispensou.

- Não é preciso meu filho. Daqui para diante posso muito bem continuar sozinho. Boa noite, Deus abençoe vocês e até amanhã.

Quando chegou no apartamento, acendeu a luz da sala e, olhando no sofá, sorriu.

- Então o Orlando lhe trouxe antes de mim, não é Bernadete. Espere um pouco, deixe tirar esse paletó e afrouxar um pouco esse nó da gravata. Pronto, agora sim, podemos sentar e conversar.

Encaminhou-se para o sofá, mas no meio do caminho parou, olhou para o aparelho de som do outro lado da sala e comentou.

- Você já reparou que ultimamente nós só conversamos ao som de nossas músicas preferidas? O que você quer ouvir agora, Bernadete? Qual? O Concerto nº 2 para piano de Rachmaninov? Ótimo. De muito bom gosto a sua escolha. Faz algum tempo que não o ouço, vou colocá-lo para ouvirmos.

Após colocar o CD para tocar, sentou-se no sofá e colocou o braço direito sobre os ombros da sua querida Bernadete, a mão esquerda sobre suas pernas, tendo ela repousado a sua cabeça no peito dele.

No dia seguinte pela manhã como o telefone chamasse e ninguém atendesse, Álvaro foi até a casa do pai ver o que estava acontecendo.

Na portaria do prédio, ao cumprimentar Pedro, o porteiro, este lhe disse.

- Parece que o professor deixou o aparelho de som ligado essa noite, doutor Álvaro, pois passei várias vezes pela porta do apartamento e estava tocando uma música tão bonita que até tive vontade de parar para escutar.

Assim que abriu a porta, o filho ouviu que o CD estava tocando e iniciando, naquele momento, exatamente o 2º movimento do concerto nº 2 para piano de Rachmaninov, executado por Van Cliburn.

Observou também que a tecla de repetição do aparelho estava apertada, por isso o porteiro ouvia música tocando durante a noite inteira, todas as vezes que passava no corredor.

O velho professor estava sentado no sofá com uma expressão de enorme alegria estampada na face, o braço direito por sobre o encosto do sofá, como se estivesse abraçando alguma pessoa sentada ao seu lado e a mão esquerda colocada para o lado direito, como se tivesse sido colocada no colo dessa mesma pessoa.

No lado direito do seu peito, via-se, na camisa, uma mossa como se uma cabeça estivesse ali encostada durante um longo período e uma pequena mancha de alguma coisa que bem poderia ser de um desses produtos para pintura de olhos que as mulheres costumam usar.

O professor Leonardo estava imóvel na mesma posição em que se sentara na noite anterior, sorrindo como sempre viveu, ao lado do seu grande amor.

Apenas os seus olhos haviam se fechado para sempre.

Álvaro diante do que estava vendo, sentou-se ao lado do pai, abraçou-o, puxou a sua cabeça para o seu ombro, sentiu lágrimas a escorrer-lhe pela face, enquanto o aparelho de som continuava ligado e ouvia-se o adagio sostenuto do Concerto nº 2, para piano, de Rachmaninov.

S B Braga
Enviado por S B Braga em 04/05/2011
Código do texto: T2948382