O EMPREGO

Valdemar abriu os olhos e olhou pela fresta existente entre duas tábuas serviam de janela do barraco, e viu que ainda estava escuro lá fora.

Tateou a cama e sentiu que estava sozinho. Nicinha já havia se levantado e que diabos fazia ele ali ainda deitado?

Sentia um mal estar danado todo dia pela manhã vendo a Nicinha levantar ainda escuro para fazer um pouquinho de café preto, para os meninos tomarem antes de ir para a escola. Era a única coisa que tinha em casa

Depois ela saía pra trabalhar enquanto ele, como se fosse um malandro, ficava em casa porque estava desempregado. Essa situação já durava quase dois anos, desde que a fábrica onde trabalhava como metalúrgico primeiro comprara umas máquinas que faziam parte do seu trabalho e depois transferira sua unidade fabril para uma cidade no interior do Paraná onde a mão de obra era mais em conta e os impostos mais baixos.

Levantou-se para ir ajudar a Nicinha, saindo do único quarto do barraco com cuidado para não pisar nas três crianças que dormiam em uns colchões velhos colocados pelo chão, um em cada lado e o outro atravessado nos pés da cama do casal.

- Bom dia Nicinha, disse tão logo entrou na sala onde ficavam também o fogão e a geladeira velha que havia ganhado de um ex-colega de trabalho.

- Bom dia, Valdemar! Já de pé tão cedo? Descansa um pouco mais meu velho, ponderou Nicinha

- E que hora é essa? Perguntou ele.

- O moço do rádio disse inda há pouquinho qui já vai dá seis hora. Por que você não volta a deitá pra discansá um pouquinho mais, meu velho? Insistiu ela.

- Discansá di que Nicinha? Enquanto você trabaia o dia inteiro pra dá de comê a nossos filho, seu marido fica em casa sem fazê nada. Vida mais disgraçada essa.

- Não se avexe meu velho que essa situação num demora muito pra se resolvê e aí então você vai arrumá emprego e a vida da gente se apruma novamente.

- Qui coisa ninhuma Nicinha. Já vai pra mais de ano e meio que tô disimpregado e por mais qui procuri num acho nada.

- Já disse pra você não se avexá, home de Deus, que logo as coisa melhora pra nois e aí você vai fazê aquela viagem com que sempre sonhou, pra rever seus parentes que ainda tão vivo lá na Bahia.

- Bom, agora tenho qui saí qui é pra num chegá tarde na casa de D. Glorinha.

E dizendo isso, Nicinha pegou sua bolsa em cima da geladeira, e saiu pra pegar o ônibus.

O motorista do ônibus que passava naquele horário era um antigo colega de Valdemar e se comprazendo da situação vexatória do amigo, sempre deixava Nicinha descer pela porta da frente para ela não ter que pagar a viagem.

Nicinha não havia dito nada a Valdemar, para não criar nele, mais uma vez, nova expectativa, mas, na semana anterior ela havia falado com o marido de D. Glorinha, sobre a possibilidade dele arrumar alguma coisa para ele. Qualquer tipo de serviço que fosse, até mesmo de faxineiro, somente para ele não ficar o dia inteiro dentro de casa sem fazer nada, botando caraminhola na cabeça e piorando a cada dia que passava e, principalmente, para ajudar na despesa da casa já que as crianças estavam crescendo e começavam a exigir cada vez mais coisas e ela não tinha de onde tirar dinheiro.

Ela trabalhava como faxineira diarista, ganhando, em cada casa que trabalhava, R$40,00 mais o transporte. No momento, como havia sido dispensada da casa de D. Celeste e seo Aristides porque este também havia ficado desempregado, estava trabalhando, somente em três casas.

Trabalhava nas segundas, quartas e sextas-feiras, sendo que naquele dia era justamente no apartamento de D. Glorinha, localizado em Moema, na Av. Rouxinol.

Era um lugar bom de se trabalhar por que eram somente ela, Dr. Haroldo, o marido, Beatriz a filha mais velha, uma moça com quase 20 anos e o Carlos Alberto, o filho mais moço, também já um rapaz com 15 anos de idade. Na verdade, no período em que ela trabalhava, das 8:30 às 17:30, praticamente só ficava em casa D. Glorinha, sendo que os meninos, quando saíam para a escola, já deixavam a cama arrumada, hábito que haviam adquirido desde criança.

Assim que chegou no apartamento, Nicinha, ao entrar pela porta da cozinha, notou que Dr. Haroldo ainda não havia saído de casa. Estava com D. Glorinha tomando café na sala.

Ela cumprimentou o casal com um bom dia e mais do que depressa se dirigiu ao quarto da área de serviço para trocar de roupa, pois queria conversar com o patrão antes dele sair.

Quando voltou, Dr. Haroldo estava se levantando da mesa para se preparar para sair e Nicinha aproveitou a oportunidade para se dirigir a ele.

- Dotô Haroldo, será qui o sinhô teve tempo de vê aquele negócio que lhe pedi na semana passada? Perguntou toda encabulada.

- Pois não D. Nicinha, respondeu ele. Vi sim e já tinha deixado com a Glorinha o nome de uma pessoa, e o endereço que é para o seu marido procurar.

Nicinha sentiu que ia chorar e levou as mãos à boca.

Dr. Haroldo prosseguiu.

- Vamos ver o que é que ele vai arrumar. Depois a senhora me diz qualquer coisa, está bem assim?

- Deus há de lhe pagar por esse favor qui o sinhô tá fazendo a nós, dotô Haroldo. Deus há de lhe pagar e protegê o sinhô, sua mulhé e seus filho.

- Ele trabalhava numa pequena metalúrgica lá em Santo Amaro, não é mesmo? Inquiriu o Dr. Haroldo

- É sim sinhô, respondeu Nicinha.

- É! Vamos ver o que esse meu amigo pode fazer.

E dizendo isso deu bom dia a Nicinha, vestiu o seu paletó e foi com a mulher até a porta da rua, se despediu e foi trabalhar.

Do outro lado da cidade, ainda no barraco, Valdemar voltou para o quarto, tirou as tábuas que serviam de janela e a pouca claridade que entrou foi o suficiente para acordar as três crianças, dois meninos e uma menina.

Wilson, o mais velho, então com 12 anos de idade, já estava no 5º ano do ensino fundamental; Wiliams, o do meio, contando com 10 anos ainda estava no 3º ano; e, finalmente, Wilma, a mais nova, com apenas 6 anos, estava cursando o 1º ano. Todos estavam na mesma escola que ficava perto da favela onde Valdemar, a muito custo e com a ajuda de uns poucos amigos e parentes, havia conseguido levantar um barraco com algum tijolo e o resto madeira compensada.

Era um barraco bem pequeno, formado de dois cômodos, sendo um ao mesmo tempo cozinha e sala, onde ficavam bem juntinho para que pudesse caber, um fogão a gás, uma geladeira velha tendo em cima um antigo rádio Philco e um pingüim de louça quebrado; um velho armário de aço de prateleiras uma pequena mesa de pés de aço e tampo de fórmica de quatro lugares, já meio mambembe, com três cadeiras do mesmo material.

O outro cômodo servia de quarto de dormir, com uma velha cômoda de quatro gavetas e uma velha cama de casal de ferro onde dormiam Valdemar e Nicinha e, amontoados num canto, três colchões que à noite eram espalhados pelo chão para as crianças dormirem. Em toda a casa o piso era de cimento cru, já meio rachado pelo tempo.

Nos fundos, Valdemar construíra, também de madeira, um cubículo onde fizera o banheiro com apenas um chuveiro elétrico – único conforto da família – e uma privada e do lado de fora, embaixo de uma cobertura de eternit, uma pia onde Nicinha lavava as poucas roupas da família pendurando em uns arames atravessados que serviam de varal.

Como todo dia, ainda não havia dado sete horas e as crianças já estavam a caminho da escola da Prefeitura. Entravam às 7:30, mas antes disso era servido um café com leite para reforço da alimentação e quem chegasse mais tarde só poderia comer lá pelas dez horas, hora do lanche.

As crianças permaneciam na escola quase que o dia inteiro. Ao meio dia era servido o almoço e, à tarde, as aulas, inclusive de computação, estendiam-se até as quinze horas, quando então eram liberados para voltar para casa.

Durante esse período, Valdemar, já cansado de tanto andar à procura de emprego e sem nenhum dinheiro para pegar transporte, fechava a porta do barraco com o ferrolho e, invariavelmente resmungava de si para si:

- Nem sei purquê fecho essa porra apois se não tem nada pra se robá aí dentro. Em seguida, descia um pedaço da ladeira do morro e parava na venda do seo Barbosa, onde se sentava num banquinho que segurava a porta para o vento não bater e proseava com qualquer um que chegasse.

O seo Barbosa, sabedor da situação de Valdemar, sempre, na hora do almoço lhe dava uma ou duas coxinhas de galinha, ou algum quibe que havia sobrado da véspera, junto com um copo de café com leite. Era esse o seu almoço e todo dia Valdemar dizia a mesma coisa para o velho bodegueiro:

- Vá tomando nota aí seo Barbosa, que um dia inda lhe pago tudo.

Ao que seo Barbosa dava risada e respondia:

- Ora Valdemar você já faz tanta coisa pra me ajudar.

E não era mentira, pois ele varria o chão da venda, enxugava o balcão toda vez que alguém largava uma garrafa de cerveja gelada em cima, botava as garrafas vazias nos engradados que ficavam empilhados num canto, além de outras pequenas coisas que preenchiam seu tempo e ajudava ao amigo. Não que seo Barbosa mandasse, mas na verdade ele gostava da ajuda.

A verdade é que o dono da venda lhe tinha muito apreço e sofria bastante ao ver aquela situação de modo que fazia questão de dizer em alto e bom som, para todos que quisessem ouvir:

- Um mérito ele tem, pois mesmo desempregado há mais de um ano e meio e desesperado, ele nunca recorreu à bebida nem nunca roubou um tostão de ninguém.

Esse era o grande orgulho de Valdemar, o reconhecimento do amigo.

Mas, quando sentava no banquinho da venda, o que gostava mesmo era de conversar sobre futebol em especial sobre o seu querido ‘Timão’ como ele se referia ao Corinthians. Nestas ocasiões lhe vinha à cabeça sempre o filho mais velho, o Mazinho – apelido dado a seu filho Valdemar – que, segundo se dizia nas redondezas, era um verdadeiro craque com a bola nos pés.

Era daqueles que tratavam a redonda com intimidade, que a chamavam de meu bem ao contrário de muitos pernas de pau que hoje proliferam por aí ganhando salários milionários, mas que só tratam a bola por sua excelência, com a maior cerimônia.

Ah! O Mazinho. Nas partidas dos domingos no campo de terra batida lá do Capão Redondo, quando pegava na bola, defendendo o time da Favela do Gato, a assistência delirava com a classe e a categoria que o garoto, apesar da pouca idade – 15 anos – demonstrava no trato com a pelota.

Um olheiro do São Paulo Futebol Clube, por recomendação de um amigo, teve despertada sua atenção e levou o menino para treinar no Morumbi.

Aprovado pelo técnico da meninada, somente estava ganhando corpo, merecendo uma atenção especial, para estrear na equipe que iria disputar a Copa São Paulo de Futebol em janeiro do próximo ano.

No São Paulo, Mazinho ganhava um salário mínimo por mês, vale transporte, almoço apropriado para atletas da sua idade, assistência médica e dentária e era obrigado a estudar à noite.

O pessoal do clube levava muita fé no menino, cujo estilo lembrava bastante o falecido e saudoso Bauer, que havia defendido o glorioso tricolor em épocas passadas. Pelo menos era o que diziam os mais velhos torcedores e freqüentadores do Centro de Treinamento.

Nem é preciso dizer que todo o dinheiro que Mazinho recebia do clube, era gasto com ele e os irmãos, com roupa, sapato, chocolate etc., mas quando o pai ficou desempregado, passou a entregá-lo integralmente à mãe para as despesas da casa.

Valdemar tinha muito orgulho do filho e toda vez que falava nele as lágrimas lhe vinham aos olhos, principalmente pelo motivo tolo e a forma brutal como ele morreu, ou melhor dizendo, foi morto.

A desgraça aconteceu há cerca de um ano atrás quando o time da Favela do Gato foi convidado para jogar contra o time de uma outra favela próxima.

Esse time segundo voz corrente, era sustentado por Ananias, bicheiro e traficante de drogas, um mulato alto, forte, que durante boa fase da sua vida havia sido hóspede do Estado, residindo num dos confortáveis apartamentos da Casa de Detenção do Carandirú na agradável e reconfortante companhia de alguns outros meliantes, e para lá, quando saíra, jurara de pés juntos jamais voltar.

Dizem as más línguas que foi preso porque foi dedurado por um concorrente que queria o seu ponto de distribuição de drogas na zona leste da cidade.

Nesta oportunidade, quando lá chegou pela primeira vez, jovem ainda e todo peralta, sem conhecer as regras vigentes naquela casa de hospedagem, se insurgiu contra as ordens do chefão, um tal de ‘Orlando Bocão’, e, como castigo, na calada da noite foi estuprado pelos companheiros de cela. Contando com ele, eram seis ao todo em sua cela, e é comentário geral que, até hoje, durante a noite os gritos de Ananias ainda ecoam pelos corredores do Pavilhão 8. A verdade, entretanto, é que no dia seguinte, teve de ser recolhido à enfermaria, pois nem se agüentava de pé na hora da contagem.

Contam, também, que, dos cinco outros residentes da cela – o sexto era ele – quatro, já foram libertados e pouco tempo depois foram mandados prestar suas contas perante o Todo Poderoso. A única exceção é o Joaquim Porcão que ainda continua hóspede do Estado, residindo agora em acomodações melhores, mais modernas, lá em Bauru, e já disse a todo mundo que, por causa do Ananias, não faz a menor força para obter sua liberdade.

Mas, voltando ao time de futebol, a verdade é que Ananias detestava ver o seu time perder e quando isso acontecia, o que era raro, sobrava porrada para todo mundo no ônibus de volta para casa.

É verdade também que, não eram poucas as vezes que Ananias recorria a métodos não muito honestos para terminar vencendo uma partida que todos consideravam como perdida e assim é que, quando o jogo era em seu campo, invariavelmente, o juiz, ao terminar a partida, levava no bolso sempre alguma recordação dada pelo Ananias, recordação esta representada por uma azulzinha de cem paus ou, dependendo do gabarito da equipe contrária, poderiam até ser duas as azulzinhas.

Quando o jogo era no campo do adversário, um dos ajudantes de Ananias, Macacão ou Bodinho, era escalado para ficar atrás do gol do adversário e, se necessário fosse, fazer alguma proposta não muito decente ao goleiro para amolecer o jogo, o que, diga-se, sempre acontecia. E o descarado do goleiro quando ia trocar de roupa com o resto da turma ainda tinha a cara de pau de comentar:

– Não sei como fui engolir dois frangos numa só partida.

A propósito dos apelidos dos ajudantes de Ananias, ambos eram bem apropriados. Um era a maior comprovação viva da Teoria de Darwin, enquanto que o outro exalava um odor natural que o igualava ao animal de quem roubara o nome.

Pois bem. No dia em que foi enfrentar o time da Favela do Gato lá no campo do adversário, Ananias já saiu prevenido que naquela equipe jogava um rapaz que era considerado como o ponto de desequilíbrio do jogo, já que era um verdadeiro craque e seu nome, ficou sabendo, era Mazinho.

Com mais ou menos vinte minutos de jogo, o time de Mazinho já tinha feito um a zero e mandava no jogo, sob a batuta do seu maestro.

Ananias estava desesperado, tendo chegado à conclusão de que se o jogo continuasse daquela maneira, de menos de três ele não perderia, e, portanto era preciso dar um ‘chega pra lá’ no tal do Mazinho. Aí então, mandou o capitão do seu time oferecer uma onça pintada ao garoto que era pra ele amolecer um pouquinho o jogo e deixar terminar no empate resultado este que, sabia ele, seria um presente do céu para o seu glorioso Clube Esportivo e Recreativo Sete de Setembro da Favela do Espanhol.

Apesar da tentativa, a surpresa veio com a resposta do Mazinho:

- Ele que vá a puta que o pariu que não vou entregar jogo nenhum. Enfie sua onça pintada no rabo que eu sei que cabe muito mais até.

Como era de se esperar, Ananias ficou possesso quando recebeu o recado de volta, nada adiantando o fato de que lhe foi omitida a segunda parte. Muito pior. O tal do moleque passou a jogar como nunca havia feito até então, dando uma verdadeira exibição de futebol, para delírio da platéia que assistia ao jogo. Até hoje se comenta na favela que foi a melhor partida que o Mazinho já jogou em toda sua curta existência.

Terminado o jogo com o placar de quatro a zero, ainda por cima com dois gols seus, Mazinho foi visto com vida pela última vez, quando saía do local do jogo em companhia de Macacão e Bodinho, um de cada lado.

Nessa noite Mazinho não voltou para casa e no dia seguinte foi encontrado num matagal lá para os lados da Estrada de Itapecerica da Serra, com as duas pernas quebradas, cada uma em dois lugares e, de lambuja, um tiro bem no meio da testa.

Valdemar ficou desesperado quando viu o que havia acontecido com o filho.

Mas, fato é que, mesmo sendo o Delegado que comandou o inquérito fã do futebol do Mazinho, a conclusão foi de que “nada se conseguiu apurar”, considerando, portanto, o crime como sendo de autor desconhecido. Menos de um mês depois, esse Delegado apareceu dirigindo um vistoso Honda Civic novinho em folha. Até hoje Valdemar duvidava da origem desse carro e toda vez que cruzava com o Delegado pela rua fazia um gesto bastante significativo para ele. Colocava o dedão da mão direita de ponta na palma da mão esquerda, girando-a depois.

O Delegado fazia que não via, dava um sorriso amarelo e continuava andando como se nada houvesse acontecido e durante muito tempo Valdemar gritou para todos os cantos que a morte de seu filho jamais havia sido devidamente apurada apenas pelo fato de ser pobre e morador de favela. Se fosse um aquinhoado pela fortuna, de certo que o matador, bem como o mandante, estariam vendo o sol nascer quadrado.

Enquanto se lembrava dessas coisas, Valdemar percebeu que passava das 4:00 horas da tarde e as crianças já deviam ter chegado da escola. Avisou ao amigo Barbosa que era hora de ir arribando.

E lá se ia ele ladeira acima, carregando consigo a saudade do seu Mazinho, a angústia da sua pobreza, o desespero do seu desemprego, e a esperança de algum dia, quem sabe, conseguir um outro para ajudar a Nicinha. Como dizem, a esperança é a última que morre, pensava consigo mesmo.

Nesse dia Nicinha chegou toda risonha, brincando com as crianças e foi logo dizendo para Valdemar.

- É, meu velho, parece que o seu dia vai chegar.

- O qui é qui você tá falando Nicinha? Perguntou Valdemar.

Nicinha tirou da sacola de plástico o papel com o endereço e o nome do homem que Valdemar deveria procurar no dia seguinte explicando-lhe como tudo havia acontecido.

Valdemar estava que não se continha de felicidade, pegava os filhos pela cintura, carregava, tornava a pôr no chão, pulava de alegria chegando a ponto de chorar junto com Nicinha, tamanha era a sua felicidade. Até que enfim a possibilidade de um emprego. Levantava as mãos para o céu e agradecia a Deus por aquela graça e pedia que Ele lhe ajudasse a não perder a oportunidade.

Nessa noite ele e Nicinha resolveram comemorar.Tão logo as crianças pegaram no sono, ele se chegou para o lado dela passando a mão pelos seus seios ao que ela desceu a mão até abaixo da cintura dele e, em tom jocoso, falou.

- Nossa velho, tú tá assanhado hoje hein! Olha isso como tá?

- É saudade de ôcê Nicinha. Já faz tanto tempo qui a gente num se esfrega um no outro.

E dizendo isso foi abaixando o velho calção com que dormia, enquanto Nicinha abaixava a calcinha, mas quando Valdemar se virou de bruços para se encaixar dentro das pernas de Nicinha, a velha cama rangeu sentindo todo o peso de um lado só e com aquele ranger, Wilma, que dormia no colchão no chão ao lado da mãe, acordou dizendo à mãe que ia beber água.

Valdemar, mais do que depressa, mandou que ela ficasse deitada que ele ia buscar a água para ela e quando voltou com o copo d’água notou que a menina já havia dormido de novo. Mesmo assim, colocou-lhe o copo na boca e a fez beber um pouco para satisfazer a sede e não acordar de novo.

E dessa vez Valdemar e Nicinha conseguiram concretizar aquilo que fazia tanto tempo eles não tinham ânimo para fazer.

E depois os dois dormiram o sono dos justos, dos honestos, dos puros de coração.

No dia seguinte, como Nicinha não tinha que ir trabalhar, quem levantou cedo foi Valdemar que foi logo tomar um banho frio para despertar. Vestiu sua única calça ainda em bom estado e sua melhor camisa. Calçou o velho, mas bem conservado tênis, se despediu de sua Nicinha, que lhe deu uns trocados para o transporte e saiu. Ainda estava meio escuro lá fora.

Quando chegou no endereço que constava no papel, viu que se tratava de uma fábrica de carrocerias tipo baú, para caminhões.

Chegando na empresa, procurou pelo Sr. Baltazar e como este ainda não havia chegado, mandaram que aguardasse um pouco sentado numa cadeira na sala de espera.

Quando o Sr. Baltazar chegou, Valdemar a ele se dirigiu e explicou que estava ali a mando do Dr. Haroldo do Banco...

O Sr. Baltazar nem deixou ele terminasse a frase.

- Ah! Já sei. O senhor é metalúrgico não é?

Perguntou o Sr. Baltazar e antes que Valdemar respondesse alguma coisa ele dirigiu-se à secretária dando uma ordem:

- D. Ivete, me chama o Benevides para vir até aqui. Em seguida mandou que o Valdemar se sentasse para esperar e entrou na sua sala.

Com pouco a secretária voltou ao lado de um cidadão alto, forte, rosto vermelho e cabelos aloirados, e o fez entrar na sala do Sr. Baltazar, de onde minutos depois ele saiu e, dirigindo –se a Valdemar, foi perguntando.

- O senhor é o Valdemar?

E diante da resposta positiva, pediu-lhe que o acompanhasse.

Depois de passar a manhã inteira fazendo teste dentro da fábrica, Valdemar foi convidado a almoçar no refeitório dos empregados sendo informado de que iria ser contratado com um salário de R$500,00 reais mensais e que deveria começar do dia seguinte. Mandou que ele, quando saísse, deixasse a Carteira Profissional com D. Ivete e informou-o do horário de trabalho da empresa, dispensando-o em seguida com um aperto de mão e disse:.

- Então até amanhã Valdemar.

Quando Valdemar chegou na rua, ainda não acreditava que no dia seguinte iria começar a trabalhar e, feliz da vida, foi caminhando pela calçada até a esquina da avenida onde passava o ônibus que o levaria até perto de casa, mas como o ônibus demorava, foi informado por uma pessoa que também estava no ponto, que cerca de quinhentos metros adiante passava um outro ônibus que o deixaria ainda mais perto de seu destino. Agradeceu e saiu andando.

Ia tão contente e feliz que nem reparou que havia descido da calçada para atravessar uma rua e, sem olhar para os lados, pôs-se a atravessá-la, ocasião em que foi colhido em cheio por um caminhão, cujo motorista ao vê-lo estirado no chão, tratou de fugir do local, deixando lá o corpo estendido, sangrando, com o rosto esfacelado. Sim, era só um corpo, de forma que algumas almas caridosas que passavam pelo local, ao constatarem que ele estava morto, cobriram-no com pedaços de jornal. Logo apareceu uma vela que foi acesa e colocada próxima a seus pés.

Quando a polícia chegou, apenas duas piedosas senhoras ainda lá permaneciam e, com o terço na mão, rezavam baixinho pela alma daquele pobre coitado que acabara de ser atropelado.

Os policiais procuraram nos bolsos algum documento que pudesse identificá-lo, e, nada encontrando, um deles comentou com o colega:

- Olha cabo, o pobre coitado, apesar de estar com o rosto todo arrebentado, parece que está sorrindo, o senhor não acha?

Somente no fim da tarde o rabecão chegou para retirar o cadáver do meio da rua, levando-o para o Instituto Médico Legal, onde foi colocado no gavetão nº 32 da geladeira, a fim de esperar quem o identificasse.

Três dias depois, Dr. Haroldo se queixou a D. Glorinha que o Baltazar havia arrumado o emprego para o marido de D. Nicinha, mas que ele não havia voltado mais para trabalhar e nem sequer se dispôs a ir buscar a Carteira Profissional que lá havia deixado.

- É isso mesmo, minha filha, a gente tenta ajudar essa gente, mas a verdade é que eles não querem nada com o trabalho. Vai ver que o que D. Nicinha ganha dá para eles viverem e aí ele aproveita para descansar.

Nicinha levou a semana inteira à procura do seu marido, sem conseguir a menor notícia e quando voltou para fazer a faxina na casa de D. Glorinha, ainda teve que ouvir o comentário que esta fez:

- Vai ver ele, ao invés de trabalhar, resolveu sumir. Você sabe como é não é Nicinha, nem todo homem gosta de trabalhar.

Passados mais de 45 dias, foi retirado do gavetão nº 32 da geladeira do necrotério, o corpo de um homem, com idade presumível de quarenta anos, de cor branca, medindo cerca de um metro e setenta, cabelos grisalhos, não procurado nem identificado e que foi, portanto adquirido por uma faculdade de medicina de uma cidade do interior de São Paulo, junto a funcionários do IML de São Paulo, pela bagatela de R$2.000,00, devido ao seu bom estado de conservação – muito embora estivesse com o rosto esfacelado.Serviria de cobaia nas aulas de anatomia.

Colocado dentro de um saco de plástico durante a noite, foi jogado dentro da mala de um carro que deixou rapidamente o local.

Enfim Valdemar estava fazendo uma viagem. Não era a viagem dos seus sonhos junto com sua Nicinha, e as crianças, mas... era uma viagem.

Quem sabe se encontraria com Mazinho e iria, finalmente, matar as saudades do filho querido, vendo-o jogar o seu futebol elegante, bonito, que só os verdadeiros craques sabem jogar.

E, para Valdemar, Mazinho foi e sempre será um verdadeiro craque na acepção real da palavra.

O EMPREGO

Valdemar abriu os olhos e olhou pela fresta existente entre duas tábuas serviam de janela do barraco, e viu que ainda estava escuro lá fora.

Tateou a cama e sentiu que estava sozinho. Nicinha já havia se levantado e que diabos fazia ele ali ainda deitado?

Sentia um mal estar danado todo dia pela manhã vendo a Nicinha levantar ainda escuro para fazer um pouquinho de café preto, para os meninos tomarem antes de ir para a escola. Era a única coisa que tinha em casa

Depois ela saía pra trabalhar enquanto ele, como se fosse um malandro, ficava em casa porque estava desempregado. Essa situação já durava quase dois anos, desde que a fábrica onde trabalhava como metalúrgico primeiro comprara umas máquinas que faziam parte do seu trabalho e depois transferira sua unidade fabril para uma cidade no interior do Paraná onde a mão de obra era mais em conta e os impostos mais baixos.

Levantou-se para ir ajudar a Nicinha, saindo do único quarto do barraco com cuidado para não pisar nas três crianças que dormiam em uns colchões velhos colocados pelo chão, um em cada lado e o outro atravessado nos pés da cama do casal.

- Bom dia Nicinha, disse tão logo entrou na sala onde ficavam também o fogão e a geladeira velha que havia ganhado de um ex-colega de trabalho.

- Bom dia, Valdemar! Já de pé tão cedo? Descansa um pouco mais meu velho, ponderou Nicinha

- E que hora é essa? Perguntou ele.

- O moço do rádio disse inda há pouquinho qui já vai dá seis hora. Por que você não volta a deitá pra discansá um pouquinho mais, meu velho? Insistiu ela.

- Discansá di que Nicinha? Enquanto você trabaia o dia inteiro pra dá de comê a nossos filho, seu marido fica em casa sem fazê nada. Vida mais disgraçada essa.

- Não se avexe meu velho que essa situação num demora muito pra se resolvê e aí então você vai arrumá emprego e a vida da gente se apruma novamente.

- Qui coisa ninhuma Nicinha. Já vai pra mais de ano e meio que tô disimpregado e por mais qui procuri num acho nada.

- Já disse pra você não se avexá, home de Deus, que logo as coisa melhora pra nois e aí você vai fazê aquela viagem com que sempre sonhou, pra rever seus parentes que ainda tão vivo lá na Bahia.

- Bom, agora tenho qui saí qui é pra num chegá tarde na casa de D. Glorinha.

E dizendo isso, Nicinha pegou sua bolsa em cima da geladeira, e saiu pra pegar o ônibus.

O motorista do ônibus que passava naquele horário era um antigo colega de Valdemar e se comprazendo da situação vexatória do amigo, sempre deixava Nicinha descer pela porta da frente para ela não ter que pagar a viagem.

Nicinha não havia dito nada a Valdemar, para não criar nele, mais uma vez, nova expectativa, mas, na semana anterior ela havia falado com o marido de D. Glorinha, sobre a possibilidade dele arrumar alguma coisa para ele. Qualquer tipo de serviço que fosse, até mesmo de faxineiro, somente para ele não ficar o dia inteiro dentro de casa sem fazer nada, botando caraminhola na cabeça e piorando a cada dia que passava e, principalmente, para ajudar na despesa da casa já que as crianças estavam crescendo e começavam a exigir cada vez mais coisas e ela não tinha de onde tirar dinheiro.

Ela trabalhava como faxineira diarista, ganhando, em cada casa que trabalhava, R$40,00 mais o transporte. No momento, como havia sido dispensada da casa de D. Celeste e seo Aristides porque este também havia ficado desempregado, estava trabalhando, somente em três casas.

Trabalhava nas segundas, quartas e sextas-feiras, sendo que naquele dia era justamente no apartamento de D. Glorinha, localizado em Moema, na Av. Rouxinol.

Era um lugar bom de se trabalhar por que eram somente ela, Dr. Haroldo, o marido, Beatriz a filha mais velha, uma moça com quase 20 anos e o Carlos Alberto, o filho mais moço, também já um rapaz com 15 anos de idade. Na verdade, no período em que ela trabalhava, das 8:30 às 17:30, praticamente só ficava em casa D. Glorinha, sendo que os meninos, quando saíam para a escola, já deixavam a cama arrumada, hábito que haviam adquirido desde criança.

Assim que chegou no apartamento, Nicinha, ao entrar pela porta da cozinha, notou que Dr. Haroldo ainda não havia saído de casa. Estava com D. Glorinha tomando café na sala.

Ela cumprimentou o casal com um bom dia e mais do que depressa se dirigiu ao quarto da área de serviço para trocar de roupa, pois queria conversar com o patrão antes dele sair.

Quando voltou, Dr. Haroldo estava se levantando da mesa para se preparar para sair e Nicinha aproveitou a oportunidade para se dirigir a ele.

- Dotô Haroldo, será qui o sinhô teve tempo de vê aquele negócio que lhe pedi na semana passada? Perguntou toda encabulada.

- Pois não D. Nicinha, respondeu ele. Vi sim e já tinha deixado com a Glorinha o nome de uma pessoa, e o endereço que é para o seu marido procurar.

Nicinha sentiu que ia chorar e levou as mãos à boca.

Dr. Haroldo prosseguiu.

- Vamos ver o que é que ele vai arrumar. Depois a senhora me diz qualquer coisa, está bem assim?

- Deus há de lhe pagar por esse favor qui o sinhô tá fazendo a nós, dotô Haroldo. Deus há de lhe pagar e protegê o sinhô, sua mulhé e seus filho.

- Ele trabalhava numa pequena metalúrgica lá em Santo Amaro, não é mesmo? Inquiriu o Dr. Haroldo

- É sim sinhô, respondeu Nicinha.

- É! Vamos ver o que esse meu amigo pode fazer.

E dizendo isso deu bom dia a Nicinha, vestiu o seu paletó e foi com a mulher até a porta da rua, se despediu e foi trabalhar.

Do outro lado da cidade, ainda no barraco, Valdemar voltou para o quarto, tirou as tábuas que serviam de janela e a pouca claridade que entrou foi o suficiente para acordar as três crianças, dois meninos e uma menina.

Wilson, o mais velho, então com 12 anos de idade, já estava no 5º ano do ensino fundamental; Wiliams, o do meio, contando com 10 anos ainda estava no 3º ano; e, finalmente, Wilma, a mais nova, com apenas 6 anos, estava cursando o 1º ano. Todos estavam na mesma escola que ficava perto da favela onde Valdemar, a muito custo e com a ajuda de uns poucos amigos e parentes, havia conseguido levantar um barraco com algum tijolo e o resto madeira compensada.

Era um barraco bem pequeno, formado de dois cômodos, sendo um ao mesmo tempo cozinha e sala, onde ficavam bem juntinho para que pudesse caber, um fogão a gás, uma geladeira velha tendo em cima um antigo rádio Philco e um pingüim de louça quebrado; um velho armário de aço de prateleiras uma pequena mesa de pés de aço e tampo de fórmica de quatro lugares, já meio mambembe, com três cadeiras do mesmo material.

O outro cômodo servia de quarto de dormir, com uma velha cômoda de quatro gavetas e uma velha cama de casal de ferro onde dormiam Valdemar e Nicinha e, amontoados num canto, três colchões que à noite eram espalhados pelo chão para as crianças dormirem. Em toda a casa o piso era de cimento cru, já meio rachado pelo tempo.

Nos fundos, Valdemar construíra, também de madeira, um cubículo onde fizera o banheiro com apenas um chuveiro elétrico – único conforto da família – e uma privada e do lado de fora, embaixo de uma cobertura de eternit, uma pia onde Nicinha lavava as poucas roupas da família pendurando em uns arames atravessados que serviam de varal.

Como todo dia, ainda não havia dado sete horas e as crianças já estavam a caminho da escola da Prefeitura. Entravam às 7:30, mas antes disso era servido um café com leite para reforço da alimentação e quem chegasse mais tarde só poderia comer lá pelas dez horas, hora do lanche.

As crianças permaneciam na escola quase que o dia inteiro. Ao meio dia era servido o almoço e, à tarde, as aulas, inclusive de computação, estendiam-se até as quinze horas, quando então eram liberados para voltar para casa.

Durante esse período, Valdemar, já cansado de tanto andar à procura de emprego e sem nenhum dinheiro para pegar transporte, fechava a porta do barraco com o ferrolho e, invariavelmente resmungava de si para si:

- Nem sei purquê fecho essa porra apois se não tem nada pra se robá aí dentro. Em seguida, descia um pedaço da ladeira do morro e parava na venda do seo Barbosa, onde se sentava num banquinho que segurava a porta para o vento não bater e proseava com qualquer um que chegasse.

O seo Barbosa, sabedor da situação de Valdemar, sempre, na hora do almoço lhe dava uma ou duas coxinhas de galinha, ou algum quibe que havia sobrado da véspera, junto com um copo de café com leite. Era esse o seu almoço e todo dia Valdemar dizia a mesma coisa para o velho bodegueiro:

- Vá tomando nota aí seo Barbosa, que um dia inda lhe pago tudo.

Ao que seo Barbosa dava risada e respondia:

- Ora Valdemar você já faz tanta coisa pra me ajudar.

E não era mentira, pois ele varria o chão da venda, enxugava o balcão toda vez que alguém largava uma garrafa de cerveja gelada em cima, botava as garrafas vazias nos engradados que ficavam empilhados num canto, além de outras pequenas coisas que preenchiam seu tempo e ajudava ao amigo. Não que seo Barbosa mandasse, mas na verdade ele gostava da ajuda.

A verdade é que o dono da venda lhe tinha muito apreço e sofria bastante ao ver aquela situação de modo que fazia questão de dizer em alto e bom som, para todos que quisessem ouvir:

- Um mérito ele tem, pois mesmo desempregado há mais de um ano e meio e desesperado, ele nunca recorreu à bebida nem nunca roubou um tostão de ninguém.

Esse era o grande orgulho de Valdemar, o reconhecimento do amigo.

Mas, quando sentava no banquinho da venda, o que gostava mesmo era de conversar sobre futebol em especial sobre o seu querido ‘Timão’ como ele se referia ao Corinthians. Nestas ocasiões lhe vinha à cabeça sempre o filho mais velho, o Mazinho – apelido dado a seu filho Valdemar – que, segundo se dizia nas redondezas, era um verdadeiro craque com a bola nos pés.

Era daqueles que tratavam a redonda com intimidade, que a chamavam de meu bem ao contrário de muitos pernas de pau que hoje proliferam por aí ganhando salários milionários, mas que só tratam a bola por sua excelência, com a maior cerimônia.

Ah! O Mazinho. Nas partidas dos domingos no campo de terra batida lá do Capão Redondo, quando pegava na bola, defendendo o time da Favela do Gato, a assistência delirava com a classe e a categoria que o garoto, apesar da pouca idade – 15 anos – demonstrava no trato com a pelota.

Um olheiro do São Paulo Futebol Clube, por recomendação de um amigo, teve despertada sua atenção e levou o menino para treinar no Morumbi.

Aprovado pelo técnico da meninada, somente estava ganhando corpo, merecendo uma atenção especial, para estrear na equipe que iria disputar a Copa São Paulo de Futebol em janeiro do próximo ano.

No São Paulo, Mazinho ganhava um salário mínimo por mês, vale transporte, almoço apropriado para atletas da sua idade, assistência médica e dentária e era obrigado a estudar à noite.

O pessoal do clube levava muita fé no menino, cujo estilo lembrava bastante o falecido e saudoso Bauer, que havia defendido o glorioso tricolor em épocas passadas. Pelo menos era o que diziam os mais velhos torcedores e freqüentadores do Centro de Treinamento.

Nem é preciso dizer que todo o dinheiro que Mazinho recebia do clube, era gasto com ele e os irmãos, com roupa, sapato, chocolate etc., mas quando o pai ficou desempregado, passou a entregá-lo integralmente à mãe para as despesas da casa.

Valdemar tinha muito orgulho do filho e toda vez que falava nele as lágrimas lhe vinham aos olhos, principalmente pelo motivo tolo e a forma brutal como ele morreu, ou melhor dizendo, foi morto.

A desgraça aconteceu há cerca de um ano atrás quando o time da Favela do Gato foi convidado para jogar contra o time de uma outra favela próxima.

Esse time segundo voz corrente, era sustentado por Ananias, bicheiro e traficante de drogas, um mulato alto, forte, que durante boa fase da sua vida havia sido hóspede do Estado, residindo num dos confortáveis apartamentos da Casa de Detenção do Carandirú na agradável e reconfortante companhia de alguns outros meliantes, e para lá, quando saíra, jurara de pés juntos jamais voltar.

Dizem as más línguas que foi preso porque foi dedurado por um concorrente que queria o seu ponto de distribuição de drogas na zona leste da cidade.

Nesta oportunidade, quando lá chegou pela primeira vez, jovem ainda e todo peralta, sem conhecer as regras vigentes naquela casa de hospedagem, se insurgiu contra as ordens do chefão, um tal de ‘Orlando Bocão’, e, como castigo, na calada da noite foi estuprado pelos companheiros de cela. Contando com ele, eram seis ao todo em sua cela, e é comentário geral que, até hoje, durante a noite os gritos de Ananias ainda ecoam pelos corredores do Pavilhão 8. A verdade, entretanto, é que no dia seguinte, teve de ser recolhido à enfermaria, pois nem se agüentava de pé na hora da contagem.

Contam, também, que, dos cinco outros residentes da cela – o sexto era ele – quatro, já foram libertados e pouco tempo depois foram mandados prestar suas contas perante o Todo Poderoso. A única exceção é o Joaquim Porcão que ainda continua hóspede do Estado, residindo agora em acomodações melhores, mais modernas, lá em Bauru, e já disse a todo mundo que, por causa do Ananias, não faz a menor força para obter sua liberdade.

Mas, voltando ao time de futebol, a verdade é que Ananias detestava ver o seu time perder e quando isso acontecia, o que era raro, sobrava porrada para todo mundo no ônibus de volta para casa.

É verdade também que, não eram poucas as vezes que Ananias recorria a métodos não muito honestos para terminar vencendo uma partida que todos consideravam como perdida e assim é que, quando o jogo era em seu campo, invariavelmente, o juiz, ao terminar a partida, levava no bolso sempre alguma recordação dada pelo Ananias, recordação esta representada por uma azulzinha de cem paus ou, dependendo do gabarito da equipe contrária, poderiam até ser duas as azulzinhas.

Quando o jogo era no campo do adversário, um dos ajudantes de Ananias, Macacão ou Bodinho, era escalado para ficar atrás do gol do adversário e, se necessário fosse, fazer alguma proposta não muito decente ao goleiro para amolecer o jogo, o que, diga-se, sempre acontecia. E o descarado do goleiro quando ia trocar de roupa com o resto da turma ainda tinha a cara de pau de comentar:

– Não sei como fui engolir dois frangos numa só partida.

A propósito dos apelidos dos ajudantes de Ananias, ambos eram bem apropriados. Um era a maior comprovação viva da Teoria de Darwin, enquanto que o outro exalava um odor natural que o igualava ao animal de quem roubara o nome.

Pois bem. No dia em que foi enfrentar o time da Favela do Gato lá no campo do adversário, Ananias já saiu prevenido que naquela equipe jogava um rapaz que era considerado como o ponto de desequilíbrio do jogo, já que era um verdadeiro craque e seu nome, ficou sabendo, era Mazinho.

Com mais ou menos vinte minutos de jogo, o time de Mazinho já tinha feito um a zero e mandava no jogo, sob a batuta do seu maestro.

Ananias estava desesperado, tendo chegado à conclusão de que se o jogo continuasse daquela maneira, de menos de três ele não perderia, e, portanto era preciso dar um ‘chega pra lá’ no tal do Mazinho. Aí então, mandou o capitão do seu time oferecer uma onça pintada ao garoto que era pra ele amolecer um pouquinho o jogo e deixar terminar no empate resultado este que, sabia ele, seria um presente do céu para o seu glorioso Clube Esportivo e Recreativo Sete de Setembro da Favela do Espanhol.

Apesar da tentativa, a surpresa veio com a resposta do Mazinho:

- Ele que vá a puta que o pariu que não vou entregar jogo nenhum. Enfie sua onça pintada no rabo que eu sei que cabe muito mais até.

Como era de se esperar, Ananias ficou possesso quando recebeu o recado de volta, nada adiantando o fato de que lhe foi omitida a segunda parte. Muito pior. O tal do moleque passou a jogar como nunca havia feito até então, dando uma verdadeira exibição de futebol, para delírio da platéia que assistia ao jogo. Até hoje se comenta na favela que foi a melhor partida que o Mazinho já jogou em toda sua curta existência.

Terminado o jogo com o placar de quatro a zero, ainda por cima com dois gols seus, Mazinho foi visto com vida pela última vez, quando saía do local do jogo em companhia de Macacão e Bodinho, um de cada lado.

Nessa noite Mazinho não voltou para casa e no dia seguinte foi encontrado num matagal lá para os lados da Estrada de Itapecerica da Serra, com as duas pernas quebradas, cada uma em dois lugares e, de lambuja, um tiro bem no meio da testa.

Valdemar ficou desesperado quando viu o que havia acontecido com o filho.

Mas, fato é que, mesmo sendo o Delegado que comandou o inquérito fã do futebol do Mazinho, a conclusão foi de que “nada se conseguiu apurar”, considerando, portanto, o crime como sendo de autor desconhecido. Menos de um mês depois, esse Delegado apareceu dirigindo um vistoso Honda Civic novinho em folha. Até hoje Valdemar duvidava da origem desse carro e toda vez que cruzava com o Delegado pela rua fazia um gesto bastante significativo para ele. Colocava o dedão da mão direita de ponta na palma da mão esquerda, girando-a depois.

O Delegado fazia que não via, dava um sorriso amarelo e continuava andando como se nada houvesse acontecido e durante muito tempo Valdemar gritou para todos os cantos que a morte de seu filho jamais havia sido devidamente apurada apenas pelo fato de ser pobre e morador de favela. Se fosse um aquinhoado pela fortuna, de certo que o matador, bem como o mandante, estariam vendo o sol nascer quadrado.

Enquanto se lembrava dessas coisas, Valdemar percebeu que passava das 4:00 horas da tarde e as crianças já deviam ter chegado da escola. Avisou ao amigo Barbosa que era hora de ir arribando.

E lá se ia ele ladeira acima, carregando consigo a saudade do seu Mazinho, a angústi

S B Braga
Enviado por S B Braga em 02/05/2011
Código do texto: T2944107