TUDO PODE SER APROVEITADO

José Ribeiro de Oliveira

Kelé nasceu prematuro, de sete meses, era o terceiro filho do comerciante Dionísio e da professora Mariquinha, uma família de classe média baixa, semelhante a muitas do interior do Nordeste brasileiro. Nasceu laçado pelo cordão umbilical e foi desenganado pela parteira que o assistiu. A mãe, depois de tanto sofrimento para trazê-lo à luz, não entregou os pontos e, sem o amparo da ciência médica ao seu alcance, curvou-se em preces para todos os santos de que já ouvira falar. O pai, resignado, não alimentava nenhuma esperança de sobrevivência. Os outros irmãos, já adolescentes, ficavam indiferentes aos apelos da genitora. A família e visinhos se condoíam com o sofrimento, mas achavam que nem milagre poderia reverter a situação, tendo em vista que o menino, além de prematuro, nascera com deficiências respiratórias, cardíaca e, certamente outras ainda não constatadas. Mas mãe é mãe. Após sete dias do parto, feito conforme os costumes locais, já que discípulos de Hipócrates só havia na cidade, a mais de duzentos quilômetros de distância e não de estrada, a professora elege como exclusividade na vida a salvação do rebento. Sozinha nessa peleja árdua, não por faltar o carinho da família e a solidariedade dos visinhos, mas pelo fato da situação parecer irreversível aos olhos de todos. Sem conseguir convencer a nenhuma outra pessoa, além de si mesma, da de exitosidade da luta, se dava por inteira. Mariquinha era mulher experiente, vivida e muito religiosa, um verdadeiro esteio para a família. Lua e sol saíam sem que quebrantasse a fé da matriarca, de que um milagre iria acontecer. Enquanto trocava suas horas de sono para suplicar a todos os santos e anjos de que já ouvira falar, o resto da família parecia pedir o contrário, rogando para que o sofrimento tivesse fim. Algumas semanas após, piedosos daquele sofrimento, vendo uma morte aparente do menino e o sofrimento prolongado da mãe, o Sr. Dionísio solicitou ao padre da paróquia que viesse à sua casa para balizar a criança, na expectativa de também encomendar a sua alma, já que, para ele, a esperança já tinha partido. De surpresa, chegou o vigário da paaróquia, e após a benção coletiva, dirigiu-se retamente para o quarto onde estava o moribundo recém nascido. Doma mariquinha ficou extasiada com a visita e, achando que fora voluntária, agradeceu ao sacerdote. Sem pestanejar, o religioso colocou a mão sobre a cabeça da mãe e a confortou com a seguinte frase: “Deus sabe o que faz”. A seguir, demonstrando-se também descrente com o estágio do enfermo, elegeu padrinhos entre os irmãos e vizinhos de Kelé e encomendou sua alma. Naquele momento, só a inabalável fé materna encontrava sinais de vida na pequena criatura. Ao sair do quarto, acompanhado pelo pai e irmãos do menino, o padre aconselhou: “providenciem o enterro”. Aliviado, o Sr. Dionísio mandou que o filho mais velho fosse à funerária para encomendar o caixão, e ao mais novo, pediu que fosse procurar o coveiro para cuidar do sepultamento. D. Mariquinha, em completa exaustão, adormeceu ao lado do beço do filho. Alguns minutos se passaram e o silêncio tomou conta da casa, tal qual o retorno do cortejo funebre. A porta do quarto estava somente encostada quando o filho mais velho retornou da funerária e ouviu um sonoro choro da criança no quarto. Empurrou a porta e verificou que sua mãe estava dormindo em sono profundo, enquanto Kelé chorava como se acordasse faminto. Sacudiu a mãe e esta acordou assustada com o choro da criança. O apanhou nos braços e saiu correndo para a sala em gritos: “Milagre, milagre, milagre...”. A casa não demorou a ficar sem espaço para tantos vizinhos e parentes. Poucos minutos depois a criança estava abocanhando o seio materno e parecia voltando de um sono prolongado. Dona Mariquinha, extasiada de contentamento, mandou avisar o padre do que ocorrera, mas o Sr. Dionísio, examinando melhor a atuação do vigário, descartou, pelo menos naquele primeiro momento, a necessidade de sabença ao religioso, concluindo que tal milagre não tinha sido por intervenção sua, vez que determinara providências diversas com o quadro.

Kelé sobreviveu ao primeiro transtorno da sua vida, e aos sete anos de idade, foi matriculado na escola do bairro, onde seus irmãos estudavam e eram excelentes alunos. Nos primeiros dias de aula, Kelé já foi chamado na Direção da escola, pois desrespeitou a professora. Poucos dias depois foi suspenso por mandar a diretora à p.q.p. Depois de muitas idas e vindas dos pais à escola, para ouvir reclamações de kelé, não foi possível mais mantê-lo naquele estabelecimento. Noutras também ocorreram coisas parecidas. Psicólogos, Psiquiatras e conselheiros de todas as vertentes foram consultados, mas Kelé, que não demonstrava nenhum desvio mental, simplesmente não tinha qualquer aptidão para os estudos. Como adolescente, só conseguiu aprender a ler e a escrever. Era portador de uma esperteza ímpar. Seus amigos eram sempre aqueles que, como ele, não se interessavam pelos estudos. O pai de kelé achou por bem colocá-lo para trabalhar no comércio. Apesar de demonstrar compatibilidade com aquela atividade, o menino não se adaptou ao trabalho. A família o internou numa escola de padres e kelé quase tocou fogo no convento para não permanecer no local. Foi encaminhado para trabalhar numa fazenda de parentes, mas começou a beber e se envolver em confusões, inviabilizando a tentativa. Kelé passou a ser conhecido na cidade como o “Kelé doido”, embora nenhuma deficiência mental apresentasse. Era assim tratado tão somente por ser uma pessoa sem nenhuma perspectiva de vida, um verdadeiro cara sem futuro. Os pais esgotaram suas forças e não conseguiram mudá-lo. Não deu para os estudos, não deu para o trabalho, era uma verdadeira ovelha negra da família. Aos 30 anos de idade, continuava se comportando como um adolescente sem pai e sem mãe. Aliás, um bom pai e uma boa mãe todos sabiam que ele tinha, mas que não conseguiam fazê-lo trilhar por um caminho regrado e de responsabilidade. Apesar disso, Kelé tinha seus admiradores. Tinha também uma habilidade nata para fazer baderna, e impressionantemente, nunca estava sozinho. Certo dia, outro indivíduo da mesma estirpe e colega de farras, em meio a uma comemoração de aniversário de Kelé, quando este, às custas da família, bancava as despesas da festa, subiu no banco da praça e bradou: “Kelé, Kelé, é vereador ou não é?” Todos repetiram a frase. A frase virou bordão. Veio a eleição. O vereador Kelé está no segundo mandato. Continua o mesmo indivíduo, e agora com poder político, é apenas uma figura folclórica na cidade. Pelo menos não vive mais às custas só do pai, toda a sociedade contribui para a vida que leva. De certa forma, a familia se orgulha de ter um vereador na casa legislativa da cidade. Os amigos o acompanham em maior número e todos acabam tirando proveito das prerrogativas do legislador Kelé, que já está em campanha para deputado, com forte possibilidade de êxito. Alguns refletem: " a sorte lhe foi tão benevolente, por que não o dotou de outras qualidades?" Outros, mais descrentes, comentam: " tudo se aproveita".

Professor José Ribeiro de Oliveira
Enviado por Professor José Ribeiro de Oliveira em 27/03/2011
Reeditado em 23/08/2011
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