A Rosa e a Teia

O mesmo pensamento me ocorria, sempre que lá chegava: “estou vendendo a minha vida, e o pior - concluía - barato!!!”.

Há vinte anos tal pensamento me consumia, sem que nada mudasse, em todas as manhãs, quando chegava ao trabalho.

Diante da porta de entrada e, voltada para o leste, eu parava meditando, olhava o sol despontando num magnífico arrebol e pensava: “o que estou fazendo com a minha vida?”.

Entrava às sete e só saía às cinco da tarde, por uma ninharia que não dava para fazer nada, quiçá “viver”. Sobreviver, e olha lá. Como não tinha coragem, nem determinação para mudar as coisas, tentava ao menos, tornar aquele buraco onde eu enterrava meus dias, em um ambiente menos desalentador.

Arrumava a sala, e colocava sobre minha mesa algo vivo que me fizesse lembrar, que lá fora tinha vida. E vida em abundância!

Por isso, saí e fui ao jardim colher as flores. O espetáculo das rosas vermelhas sobre o verde do gramado que circundava a empresa era para mim, uma referência do mundo lindo que havia, e que, ali confinada, eu estava perdendo.

Apanhei as rosas ainda orvalhadas, e as acomodei num vaso de porta-lápis improvisado. Foi então, que pensativa, volvendo o olhar para o alto, vi aquilo.

O canto da parede, junto ao teto, estava tomado por teias de aranha. Era um pequeno rendado, bonito de se ver, sem importância, sem representar ameaça. Apenas uma rendinha branca, um trançado delicado, que tremelicava ao sopro da brisa que vinha da janela, mas, não caía.

Impressionante, como esses fios de nácar débeis como sonho, e emaranhados como a vida, pareciam ter sonoridades. Conversas de aranha. E, bem no centro do núcleo, uma dama esquelética, pernalta, de porte modesto e sobremaneira paciente tecia.

Comparei a princípio o emaranhado à minha própria vida, que nunca se desembaraçava. E a morosidade da aranha, à minha pessoa que tanto demorava a fazer mudanças. Suspirei, cheia de frustração e ponderei: “coisa parada cria teia de aranha”.

Vi depois que havia me enganado. A estagnação e inércia estavam apenas em minha vida. Pois, a nova moradora, embora parecesse imóvel, com certeza tecia. Isso porque, depois de alguns dias, observei o canto da parede, e vi que a trama crescia.

“Está na hora de varrer isso” – pensei. E mudei os rumos do pensamento. Porque no escritório não se podia divagar - di-va-gar - que não era o mesmo que devagar.

Era bom lembrar, pois, cada vez que as funcionárias volviam os olhos pro alto, num pensamento mais distante, que ultrapassasse os limites da sala, o chefe logo ironizava: “vocês estão divagando...”.

Não se podia divagar. Mas, toda vez que eu divagava, via as teias de aranha ganhando proporções, a cada dia. Não tivéssemos, obrigatoriamente, que zelar pela manutenção do escritório, eu até as deixaria, pois, me faziam sonhar um pouco com coisas e lugares muito distantes dali. Tinham o poder de transportar-me aos castelos medievais, com suas lendas e bruxas. Elas me lembravam a história “A Bruxa Que Não Quis Mais Ser Bruxa”, a malévola Tobe, após converter-se em vovó boazinha. Trajada de vestido de bolinhas, óculos na testa como toda boa velhinha, e vassoura na mão, enxotando para o mato: sapos, morcegos e ratos, ex - comparsas de maldições. Entretanto, como chamar a atenção da Nice - a faxineira - para tão feio desmazelo, sem lha ofender?

Ensaiei várias maneiras, sem chegar a uma solução.

“Nice, pode por favor varrer essas teias de aranha?”.

Não. Desse jeito, não! Assim, ia parecer que eu tinha autoridade, da qual não gozava. Poderia não gostar de receber ordens de uma subalterna, tanto quanto ela.

Dias depois, voltei a observar o canto da parede, e constatei que a trama progredia, da mesma maneira, que crescia o desânimo e desleixo, em todos os setores.

Desde que, divulgou-se a notícia de que a empresa estava em regime de concordata, uma forte oposição se fez sentir, e tudo começou a ruir rapidamente. Ao contrário do que se esperava, desmotivados, os empregados caíram em prostração generalizada.

Contagiavam uns aos outros, em conversações pessimistas e desanimadoras; ao invés de ajudar na sua recuperação, ajudavam a afundá-la ainda mais.

Isso se fez sentir em todos os setores, não escapando até mesmo o da faxineira, que por sua vez, passou a limpar apenas “aonde o padre passa”.

Reclamar com o chefe do departamento ficaria pior que fazê-lo diretamente. E assim, o tema ia sendo adiado, e a teia crescendo cada dia mais, em proporções e exuberância.

Estendia-se, agora, por toda a extensão da sala, em bordados bem definidos e compactados, várias tramas sobrepostas - um verdadeiro tapete, artisticamente engendrado. Já abrigava várias famílias, como num grande condomínio.

E, enquanto a prole aracnídea se alojava e crescia, algumas proles operárias já eram despejadas por não poderem pagar o aluguel.

Eu estava com minhas prestações do BNH atrasadas. E, também me preocupava com a situação desses pais de família, que dependiam de casa alugada.

Recebiam um salário, quando já tinham dois vencidos, ou, muitas vezes, apenas parte dele.

Não queria me deixar envolver pelo pessimismo da classe operária, por aquele sentimento derrotista. Mas, no decorrer do dia, todos que entravam na sala, só tinham uma conversa: “Eles têm que fechar essa espelunca!”. “Se não podem pagar os salários, que peçam falência”...

Era um diz que diz: que os donos embolsavam o dinheiro dos pagamentos, a fim de fazerem caixa... Para que, em caso de falência terem recursos para abrir outra empresa e etc e tal.

“Estão pensando neles próprios! Ninguém se preocupa com os empregados, não! Nossos salários vêm atrasados e sem juros; e quem paga as multas, pelos atrasos de nossas contas?” – diziam revoltados.

De vez em quando, acontecia alguma encomenda de máquina. Aí parecia que a alma da empresa reagia, e um ou outro mais otimista arriscava comentar: “vamos sair desta, vocês vão ver!”.

Passavam-se, porém, semanas sem fechar algum negócio e o pessimismo tomava conta de todos. Eram tantos operários parados na área de produção.

Certa manhã correu a notícia de que, o patrão estava fazendo acordo com aqueles que quisessem deixar a empresa.

“Não seria esse o momento?” – pensei.

Acomodada, durante todos aqueles anos, nunca antes, encontrara um motivo, suficientemente forte para mudar. Tantas coisas aconteciam na vida dos outros. Tantas moças passaram por ali. Quantas deixaram a empresa ao se casarem. Outras saíram quando tiveram filhos. Teve uma, que saiu para ir trabalhar na Itália. Outra se casou com um holandês e foi pra Holanda. Quanta gente entrou, saiu.

Tinha visto entrar um oficce-boy ainda menino, que, com muita dificuldade, conseguiu cursar faculdade de engenharia da computação, e depois de formado, foi quem, lá implantou o sistema de informática. Era agora, respeitadíssimo gerente do CPD.

Eu não casei, não tive filhos, e nem mudei de emprego. Pensar em enfrentar o novo, o desconhecido, o incerto, sempre me parecera insensato. Depois, recomeçar tudo, ter que aprender tudo de novo... Ali, podia trabalhar de olho fechado. Conhecia tudo, a história, as famílias dos sócios, tinha até tomado chá com algumas daquelas senhoras.

“Agora não, era tarde demais” – concluía.

Se a firma falisse, tinha um bom fundo de garantia para receber. Ficaria até o fim! Sempre ficava para trás, para fechar o departamento, com certeza eu iria ficar por último, para apagar as luzes.

Com isso, a família metalúrgica ia ficando menor. Logo mais, todos os gerentes foram demitidos, numa tentativa de diminuir despesas. Os supervisores de departamentos assumiram os postos vagos. E eu, a fiel secretária, fui finalmente, promovida a gerente.

Ganhamos status, mais responsabilidades, porém, sem aumento de salários. Tínhamos que ter paciência e compreender a situação, o momento.

Contudo, revoltávamos, quando tínhamos que “segurar um rojão”, achar um jeito de resolver uma situação embaraçosa. Coisa que dantes, para os antigos gerentes, com suas polpudas remunerações e toda mordomia era tudo tão fácil. Agora, a duras penas, economizando até nas ligações telefônicas, tínhamos que fazê-lo, com salário muito aquém, e ainda atrasado.

Os dias iam passando sempre com novidades ruins. A cada notícia, nova onda de murmurações e desgostos. Os ônibus foram retirados, e os empregados já não tinham transporte. Alguns se ajeitaram de carona em carros de colegas, enquanto outros desencavaram as velhas bicicletas.

O restaurante ainda funcionava, mas, a empresa terceirizada que o administrava e que há meses não recebia pagamento, ia cortando o cardápio pela metade: não tinha mais sobremesa, salada, somente de acelga durante toda a semana; carne, unicamente de frango, que o pessoal chamava ironicamente de “penosa”, ou salsicha.

Eu meditava muito. Mas, não gostava de pensar no tempo perdido. Preferia relembrar a época das vacas gordas. Os tempos áureos, em que tudo ia de vento-em-popa.

A empresa que se localizava em uma grande área na zona rural, já tivera cooperativa e clube social. Cultivava uma belíssima horta, e todos saíam carregados de sacolas de verduras e legumes no final do dia.

ASSEMO - Associação Esportiva Metalúrgica Ocidental, seu clube, suas piscinas, suas festas, seus churrascos, tudo estava registrado nas páginas coloridas de uma revista, dessas que mandaram fazer, pela passagem do vigésimo quinto aniversário.

O final do ano estava chegando, suspirava e relembrava com as colegas de departamento as generosas cestas de natal de antigamente.

As rosas vermelhas continuavam desabrochando num espetáculo de beleza e vida, contradizendo o estado de espírito do momento. A área era todinha arborizada, e haviam casinhas de passarinho instaladas nos galhos das árvores, e um comedouro, em lugar especial, para os canarinhos. Estes criaram, se multiplicaram, e ficaram por ali, livres e aos bandos. Quando o zelador reabastecia o comedouro, e eles desciam em nuvem, para debicarem, parecia um grande lençol amarelo que se estendia. Então, eu saía à porta para ouvir o trinado e sonhar o meu sonho de liberdade.

Em pouco tempo os passarinhos também sumiram. Foram procurar alimento em outras paragens, porque não havia dinheiro em caixa, nem para comprar a ração dos pequeninos.

“Até eles...” Esta era minha maior tristeza. Eu os amava, e agora, pela primeira vez, percebia que amava aquela minha segunda casa. E estávamos todos no mesmo barco, em meio à tempestade, contando os dias e as horas para o inevitável naufrágio.

Entrei no banheiro, e “sentada no trono”, notei que esse cômodo se encontrava em condições ainda piores que a sala. Atrás da porta era uma renda só! Lembrei-me do tempo da nona e divaguei...

A nona, mulher muito asseada, mas de língua afiada, quando ia à casa da comadre voltava falando: “Eco... minha comadre não bebe ovo...”.

Sorri ao lembrar-me de coisa tão antiga, infância ingênua, quando me perguntava: “como ela sabia que a comadre não bebia ovo?”; ao que, a matrona respondera: “quem não bebe ovo, não enxerga as teias de aranha... Eco!”.

“É... A Nice não bebe ovo, mesmo!” - conclui, deliberadamente.

Há muito tempo, já não me sentia “em prisão de segurança mínima” como nos tempos atrás, quando brincando ironizávamos.

O pessoal vagueava pra lá e pra cá, desocupados, e até saíam pra cidade sem justificarem, sem o menor comprometimento.

Já não sentia vontade de divagar para fora, para lugares distantes. Dera para divagar para dentro, para o meu interior, fazendo balanço de mim mesma. Do quê não havia feito na vida, nesses longos vinte anos. A minha falta de audácia, de coragem, o comodismo, a falência... A indústria ainda tinha a chance da concordata... E para mim, haveria ainda alguma chance?

Numa sexta-feira, fomos comunicados para ficarmos em casa. Férias coletivas, até que as coisas se ajeitassem. A luz ia ser cortada por falta de pagamento, e a empresa telefônica também ia cortar a linha. O setor do faturamento não podia fechar. Vai que, precisem tirar uma nota fiscal...

E a responsável, fiel e empacada secretária, pensou, e ficou.

Na segunda-feira apenas uma nota fiscal de transferência teve que ser emitida, datilografada em uma máquina manual antiga, pois, o.computador não podia ser ligado por falta de energia. A fábrica estava totalmente paralisada. Raras pessoas se encontravam, além dos guardas da portaria. E foi assim, com passos lentos, o segurança foi chegando, como quem não tinha mais pressa alguma, e com a voz visivelmente embasbacada disse: “Larga tudo como está! Vamos sair, e não levemos nada! O Oficial da Justiça vai lacrar. A nossa empresa faliu!".

Ainda tirei a nota da máquina de escrever: Quantas vezes por dia, multiplicado por trinta, e depois por doze meses, fizera aquele exercício? Valera-me de quê? Para quê?”.

Meu olhar pousou pela última vez no logotipo colorido de vermelho da nota fiscal. Olhei para fora, o gramado verde a perder de vista, e não vi um só canarinho. Observei as roseiras bem tratadas, com muitas rosas vermelhas e exuberantes que, sem regas, em breve morreriam.

Passei os olhos pela sala e vi o teto coberto pelas teias de aranha. Bem sabia que aquilo não prestava!

Apanhei a bolsa, e mortificada, olhei o interruptor. Não! Não ia precisar apagar as luzes.

Maria Barreto
Enviado por Maria Barreto em 20/02/2011
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