Os olhos

A mãe pegou o moleque pelo braço e carregou com ele pro ônibus que dá no centro. Há dias o menino já não via direito; de começo, a mãe pensou que era culpa da piazada bagunceira que se divertia jogando areia um no outro. Além disso, lembrava também da filha da costureira, uma vez brincando entre uns pés de acerola quando, de repente, entrou-lhe num dos olhos uma abelha, ou mosca, ou qualquer outro inseto. A menina correu à mãe mostrar-lhe os olhos, que não acusavam nada; mas a menina jura ainda que isso de verdade aconteceu sim; é o que diz a mãe. Mas há dias o menino já não via direito.

Até que o moleque não chiava; só coçava os olhos com os dedos barrentos e as unhas compridas e cheias de terra. A mãe fazia comida o dia inteiro, pra oito barrigas, sem contar a do marido, único trabalhador da casa; ele fazia bicos também. Quando alguém da vila precisava, era o lixeiro quem vinham chamar; e o lixeiro fazia as vezes do encanador, do pedreiro, do eletricista, até sobre dente já falara; mas ele voltava louco pra encher o bucho antes de se deitar. Com tanta gente pra dar de comer, a dona não tinha tempo pra atender o menino mais velho, e não via quando ele franzia a cabeça e coçava os dois olhos para ler tudo. E o moleque era bom na escola; aluno curioso, desses que os professores gostam mesmo, até das perguntinhas ingênuas que faziam a festa da gurizada. Aprendeu a ler logo, poucas semanas depois de terem vindo buscar os meninos da vila pra matricular na escolinha. Desde então, lia a tudo com fome, especialmente as placas dos carros que via quando de joelhos na última fileira do ônibus. Mas há dias já não via direito, e a mãe, com raiva, tomou-lhe pelo braço e carregou com ele pro centro.

O glaucoma diagnosticado em um minuto pelo médico irritou a mulher, que fitava com dó o menino. O piá ouviu que ia ficar cego e desatou num choro sem pecado, inocente. Pior que a doença fora tão além da conta, disse o doutor, que não se teria mais jeito com remedinhos, mas a cirurgia era uma nota preta, consideradas as finanças; nem vendendo o corpo e botando os meninos no sinal a mãe ia conseguir pagá-la. Carregou com ele pra casa e o deitou na cama. O pai franziu o cenho em preocupação, mas acabou, por fim, dando de ombros e indo pra cama, sem tomar banho. Lá fora, a mãe, angustiada, reclamava pra Deus que sua família sofria já demais e agora um filho sem culpa deixaria de ver. Pediu-Lhe que terminasse com a desgraça e levasse o menino da casa de uma vez por todas.

Um rapaz dispunha os óculos no criadomudo pela última vez antes de dormir. Acordou no dia seguinte e foi ao hospital. Esperou impaciente a manhã correr até que lhe chamaram à triagem. Pingaram-lhe os anestésicos quinze minutos antes de ganhar o novo mundo. Deitado, tenso como um bloco de gelo, recebeu o laser no olho esquerdo, com o direito preso pelo esparadrapo. O laser brilhava e assustava, cada vez mais, aproximando-se da vista com um forte e intenso odor químico. Sentiu-se sufocado, medroso, e desejou não mais estar ali. Quis parar o processo enquanto havia tempo, e continuar eternamente com o seu velho mundo enquadrado.

Findo o processo no primeiro olho, partiram os médicos para o direito. O cheiro parecia ainda mais forte, e a visão começara a piscar involuntária, de forma comprometedora; mas acabou e tudo certo, no final. Veria o mundo com os olhos nus e curiosos. Com eles fechados, foi guiado até o elevador. A mãe abriu-lhe a porta do carro; ansioso, já em movimento, abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi uma mulher agressiva correndo com um menino, no centro.

Girardello Filho
Enviado por Girardello Filho em 10/01/2011
Código do texto: T2719616