Correndo Riscos

Numa bela terça-feira de sol abastado, cansado de tudo, ele resolveu correr riscos; pegou as chaves e invadiu a garagem, enquanto a porta atrás nem chegava a fechar do leve toque do desesperado rapaz; caiu na rua, logo pisou fundo e, na primeira reta livre, acelerou até que o ponteiro marcasse cento e cinqüenta e cinco quilômetros por hora; fechou os olhos; um, dois, três. Abriu os olhos num ímpeto e foi a tempo de impedir que rampasse o carro no meio-fio e destruísse, quem sabe, alguma casa de família. Ufa! Mas sentia o peito pulando com vigor, e libertou o sorriso trancafiado nos lábios que mal falam. Satisfação imediata, mas a saliva agora surgia e, com ela, o veneno da sedenta serpente, insaciável.

Sem olhar para o garçom, pediu a comida mais requintada, mais florida, com muita, mas muita gordura; sugou a bebida gaseificada de um fôlego e saiu pra fumar um cigarro. Voltou e arrebatou um delicioso brownie com uma bola de sorvete de creme; uma, duas, três; três mordicadas e se acabou a sobremesa. Só restou a mistura aquosa, espessa e dulcíssima que escorrera e que de modo algum lhe agrada. Tirou do bolso a carteira e viu ali dentro cinqüenta reais. Saiu caminhando tranqüilo até a entrada, abriu os braços e esticou-os conforme Jesus Cristo; fingiu atender o celular e começou a falar, em tom normal, com o fantasma do outro lado da linha. Quinze segundos foram e estava ligando o motor do carro; marcha-ré e fumaça dos pneus, adentrando a pista como um bêbado. Parou o carro adiante e arrancou as placas, para não facilitar.

Entendeu que devesse furar alguns sinais e procurou ruas menores, de casas luxuosas e edifícios compridos. Cruzou o primeiro semáforo, e não havia sinal de carros; no segundo brecou um pouco, mas foi pela velha de bengala fazendo a travessia de balsa para alcançar a outra margem, então não fora sua a culpa. O terceiro, observou, reservava-lhe algum suspense; é que havia centenas, milhares de autos cruzando na horizontal, da esquerda pra direita e vice-versa. Dessa vez, o coração pulou-lhe à boca antes de fechar os olhos; um, dois... Atingiram-no pronto, na pista de cá, e o carro foi jogado à pista de lá, pela qual vinham mais carros, os quais frearam de súbito, sem que, contudo, conseguissem sair ilesos; um caos; felizmente, nada de mais sério. Um silêncio alto se fez por pequenos segundos, e logo começaram os envolvidos a se manifestarem, saindo embasbacados dos carros danificados. Ele girou a chave, viu que corria livre, patinou como de praxe no dia e partiu, sem nenhum arranhão, caindo na gargalhada.

Largou o carro a três minutos dali, ciente de não estar sendo olhado. Ajeitou os cabelos e começou a passear, o senhor do mundo. Ignorante à vida, cansado de tudo, vivendo um dia de radicalismo de menino; de repente, acerta-lhe um soco alguém provavelmente movido pelo mesmo princípio alcalino de correr riscos. Travam uma batalha divertida, de sangue e dentes partidos, narizes tortos e cortes na cara animada. Dois maníacos, obcecados pela compulsão de transgredir. Despedem-se os dois, levantando-se do chão, contentes como dois fugitivos de um cárcere.

Parou na revistaria e pensou em comprar cigarros, daquele jeito mesmo, com sangue na camisa e no joelho visível pelo rasgo na calça. Perdera um dos sapatos na briga, mas achara só a palmilha, a qual foi dobrada e posta no bolso. Levou a mão ao bolso e... cadê a carteira? Onde estão os cinqüenta reais? Voltou seis quadras e uma metade e engatinhou no chão que mais parecia um ringue de boxe, à procura do maldito dinheiro. Perguntou aos transeuntes, mas é claro que não sabiam. Girou os calcanhares e disparou como o dardo de uma zarabatana tão logo realizou o roubo.

Entrou, fulo, em casa e sentou-se no sofá. Não pelo dinheiro, mas pelos documentos, pelas fotografias 3x4 que odiava ter de fazer, pelos cartões do banco e cartões de consultórios, de escolas de música, de mulheres da vida, cartões telefônicos etc. Foi ao cair da noite, depois do banho, que tocaram a campainha:

(Ding dong)

- Quem é?

- ... (Ding Dong)

- Estou indo.

Abriu a porta a tempo de ver o vulto correndo em disparada como se tivesse fogo dentro do sapato. A carteira no chão denunciava a ilustre visita. Não teve dúvidas ao disparar atrás dele, como uma bala.

Doze. Doze quadras percorridas e nada do sujeito largar de correr; novamente, naquele dia, girou os calcanhares e correu para casa. Não correu, de fato, pois se lembrou da carteira na mão esquerda. Constatou que os cinqüenta reais não estavam lá, mas, sim, os documentos, os cartões e todo o resto.

- Então quer dizer que um rapace resolveu tirar pilhérias da minha cara; gastou meu dinheiro, bateu-me na cara – e eu ainda gargalhava – e resolveu voltar-me os documentos e o resto: que conveniente.

Em casa, sentado, sorriu, de pura malícia. Foi-se adormecer, pois que a aventura demandara o abandono do trabalho, da dignidade de homem, a perda do juízo, e precisaria procurar emprego na manhã seguinte, daquele jeito, todo arrebentado, comprimido. Uma vez, a primeira e única vez, na vida, que cruzara os limites do seu espírito gentil, porém comedido, covarde. Um universo jovial, intenso... mas a vida faz o convite diário à realidade, e então ele acordou, na manhã seguinte, com hematomas no corpo e uma palmilha no bolso da calça ensangüentada. Saiu assim, daquele jeito, todo moribundo, amargo, velho; foi procurar emprego.

- Que saco!

Girardello Filho
Enviado por Girardello Filho em 21/12/2010
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