Domingo

Ele não sabia a hora exata; sem relógios nas paredes, ou no pulso. Mas o sol se ia; a noite caia a passos longos, compridos, demorava-se, toda charmosa; as pessoas como loucas, muito donas de seus narizes, com pressa em voltar pra casa, após aquela visita costumeira, familiares reunidos na casa da nona; ao chegar em casa, era sentar no sofá ou requentar o almoço, tanto fazia, era Domingo; o vento, as árvores, os carros e as vozes, todos incolores. Acabara de acender um cigarro quando chegou a bebida: um mojito. Um uísque certamente provocaria charme maior, mas moços não o bebem com leveza. Moços, afoitos e sem graça, sorvem-no com furor, ruidosamente. “Cada idade reserva certas expectativas, e uísque não é para moços”. A música ao fundo não era benéfica, tampouco lhe distraía – um zumbido noturno de mosquito solitário e encalorado. Sonhava com a noite da América, com os pubs ingleses, e com o jazz, naturalmente soberbo. Mas em Curitiba, não é o que se vê ainda hoje.

Lembrou-se que, na infância, perguntava-se sobre a tão falada boemia. “Mas que diabos é boemia?”, pensava. Seu pai bebia bem, mas nunca lhe explicara a razão de ser da coisa. Tampouco perguntara ao velho. “Bem, agora sei”, observou. “Será que sei me portar num lugar assim?”, questionou-se enquanto tragava. Um homem, aparentando os cinquenta, lia um velho jornal, conservando um talhe polido, recatado. O bar prestava-lhe para a leitura, e para os charutos; um trio – um mestiço, um robusto e um outro – subia as escadas em direção à sala de jogos. O host, um negro de óculos, na dele, indiferente, acabara de pedir à garçonete que subisse a música. “Bem, ora, quê se pode fazer”? O som começaria a lhe incomodar. Mas era Domingo. Um dia sem pressa.

Meio sem graça, sorveu o que restava no copo e imediatamente pediu por outra dose. Começara a se sentir como em casa; como livre, de tudo. “Mas afinal, quê é a liberdade senão lutar pelo que se estima”? Pensou no quanto desejava beber. “Tornar-me assim, é o que me estima. Escrever meus livros, fumar meus cigarros, sentir-me em casa”. Deu-lhe a noção de ir ter com o host; perguntar-lhe sobre charutos: sobre os tabacos, a fama cubana, o aroma que dominava o ambiente e lhe ia aos poucos doutrinando, como cortar, acender, e como degustar com altivez. Aliás, a degustação de um charuto era, para os presentes senhores, um prazer desmedido. Sugavam-no, brincavam com a fumaça na boca, e libertavam-na pelos narizes: retrohaling. Para ele, era tão-somente um ato de observação. Nunca entendera o que os velhos enxergavam num fumo que não se traga. Os beiços úmidos molhavam os charutos, e isso lhe divertia.

Outra coisa lhe chamara à atenção: os óculos. Os freqüentadores daquele Domingo usavam óculos. “Não sei dos que subiram para jogar, mas todos nós três, cá embaixo, os usamos como melhor nos apraz ao nariz. Pelo menos, ainda não estou velho”. Um dos indivíduos, por requinte, ligava pela segunda vez para uns conhecidos, convidando-os para o fumo de um Havana. Discava pela terceira vez. “Insistente”, pensou. “Bem, não tenho para quem ligar”. Riu-se por despeito, e por dentro. Aconchegou-se na poltrona, esticou-se confortavelmente, ciente de fazer mal à coluna. “Ora, se não se pode mais sentar confortavelmente!”, pensou, petulante.

Na época, cursava Letras e tomava por sonho o de ser escritor considerável, estimado ainda em vida (e muito mais após a morte) e estudado por gerações futuras. Uma cadeira na Academia de Letras absolutamente não seria de todo mal, quando, na velhice, vivesse com a esposa alheio à sociedade no lugar mais retirado do mundo. Ou então, talvez, poderia conservar a jovialidade com amores passageiros, companheiras de bebedeira, cigarros e quartos de hotel. Enfim, a pura e simples liberdade. “Mas quê é liberdade, afinal”? Transgredia as normas sociais. Achava-se quase completo.

Mas fora criado desde berço sob um regime familiar cheio de buracos. Aprendera a ler com avidez e desenvolvera grande apreço pelas artes. Acostumara-se a ver flashes, imagens do futuro que tanto sonhava, e atribuir a isso o valor de uma vida, uma esperança. No entanto, era pacato demais para transpor os níveis de ambição pelos quais tanto lutara ideologicamente. Vivia confortavelmente instalado na casa dos pais; dispunha das refeições, das camisas limpas e passadas e de um quarto para dormir e ler. Ganhava uns contos por pesquisar pela Universidade. Pensava em dar início às obras que tanto planejava mentalmente, mas sempre lhe batia aquela preguiça. “Ainda preciso pensar mais sobre meu texto”, dizia. Enfim, era pacato demais para mover-se.

Súbito, levantou-se de onde estava, dirigiu-se ao caixa e pagou a conta. Ao cair na rua, virou à direita e foi até o carro. Ao volante, pensava “bem, não sirvo para isso. E se sirvo, não é a hora”. Ia para casa. Resolveu dobrar à esquerda e ir para o Norte, mas sua casa ficava no Sul. Pegou, então, a Avenida e pensou em parar para comprar cigarros, mas estava sem ânimo de descer do carro. Ia transparente, tímido, pelas ruas, sem rumo. Quis ligar para o amigo de longa data, mas achou melhor não incomodá-lo. Nem a ele nem aos outros. “Já devem estar todos em casa”. Não era mais hora para visitas. Deu-lhe de ir para casa escrever, mas resolveu que tinha tempo. “Tanto faz, ainda tenho a noite toda. É Domingo”. Era Domingo. Um dia sem pressa.

Girardello Filho
Enviado por Girardello Filho em 22/11/2010
Código do texto: T2629326
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