Uma Manhã Nublada

Parte I

Manhã nublada, aquela sensação de calmaria fúnebre no ar, os olhos detidos ante o abrir de um novo dia, mediante a visão perscrutadora, ávida em acordar. Os pés ainda adormecidos pela posição que dormira, dificultando a circulação do sangue, criando o estado de formigamento ao amanhecer, parecendo um presságio catastrófico.

- Acordar ou não acordar?

Pensamentos se mesclam misturando lembranças recentes, angústias da madrugada passada, resquícios fragmentários de sonhos ainda memorizados, além do pensamento pululando informações frente ao novo dia. Finalmente levanta-se, abruptamente, de sobressalto lança-se ao solo de piso frio, vasculha com a ponta do pé direito à procura do meio par de chinelos, encontra e logo calça também o pé esquerdo.

Um pigarro seco invade a garganta, pegando o copo d’água em cima da mesa de cabeceira, descobre que está seco, não podendo aliviar a sensação áspera. Caminha, abre a porta, provocando um ranger da dobradiça que como sua garganta, precisa ser lubrificada. Pé ante pé, com passos de gato, vai até a cozinha, abre a torneira com filtro purificador que ameniza o cloro e fornece a água reciclada, o ideal de pureza. Sorve aquele copo d’água de uma vez, pacificando a angústia seca.

Vai até o sanitário, olha a privada, abaixa o calção para colocar seu membro pra fora e urina, deixa fluir aquela sensação opressora que afligia sua bexiga, fica saculejando os últimos pingos para não restar dúvidas de ter esse serviço bem feito. O pigarro se tornou viscoso, escarra e cospe-o na privada, em cima da urina dissolvida no pequeno poço sanitário, um aperto de descarga e todas essas excreções em redemoinho desaparecem das vistas. Vai até o lavatório, olha-se no espelho, retira pedaços de remela presos nos cílios, assua o nariz, lava as mãos, abre o armário, pega escova e creme dental. Começa a escovar os dentes, aquele gosto adocicado, ao mesmo tempo ácido, provocando náuseas logo cedo, terminando com um bocejo de água tranqüilizante.

Volta ao quarto e começa a arrumar a cama desfeita, mesmo sabendo que irá desfazê-la de novo, habituado com esse ato mecânico de arrumar as peças da roupa de cama. Deita de novo, agora sobre a cama recém arrumada, sentindo aquele magnetismo matinal, quando arrepiam os pelos do corpo com o leve contato do lençol, um pedido para que se volte aos braços de Morpheus. Levanta e olha pro teto, repara uma nova rachadura na parede envelhecida, o forro ainda guarda os sinais da última chuva, manchas escuras de uma goteira que insistia em danificar o mesmo lugar, tão previsível que já era esperada por antecipação, com bacia embaixo de sua bica antes mesmo de pingar.

Abre a geladeira, contempla as poucas formas que ocupam aquele interior gélido, serve-se de uma garrafa de água, das mais geladas, uma pet reaproveitada para reservatório de água gelada, basta apertar um pouco mais forte e o plástico estala, sem contar o movimento rotacional da tampa que provoca um som inconfundível. Muitos tem o hábito da cafeína como primeira refeição, não é esse o caso, nem mesmo existia instrumentos para confeccionar o cafezinho matinal, só o odor da vizinhança que era conservadora em seus costumes alimentícios.

Os pés arrastam ao amanhecer, parece preguiçoso por ser despertado, mas logo são ritmados e voltam à leveza habitual, num sobe e desce que nem damos conta, sabemos que faz por vermos, mas não nos damos consciência em cada ir e vir. O braço coça, um caroço avermelhado surge de forma atrevida, algum mosquito que picou durante a madrugada.

- Malditos hematófagos!

No mito romântico o vampiresco é charmoso, no cotidiano é uma amolação, coceiras, irritações, zumbidos noturnos ao pé do ouvido que causam repugnância, muito diferente da idéia de succubus. Esses visitantes da noite são repelidos sem os sortilégios magníficos inspirados por divindade, mas escorraçados com tapas, sopros, vai e vem de algum tecido que esteja à mão, também podendo utilizar métodos mais industriais, como sprays ou algum envenenador elétrico.

A fome não se manifesta nesta hora, por mais que seja aconselhado a alimentar-se nas primeiras horas após despertar, mas o hábito de ignorar o apetite é mais forte do que as palavras alheias. Cruza os dedos, aguarda o ponteiro do relógio dar mais um passo. Abre as portas do guarda-roupa, retira uma camisa de mangas compridas, cheia de botões, despe a camiseta e reveste-se, faz o mesmo ao retirar o calção, mas antes se veste com uma cueca, daquelas com formato mais conservador, com aquela abertura na frente e um tecido curvado que cobre à abertura feito alça que serve de algibeira, colocando uma calça comprida por cima. Chuta para o lado o par de chinelos, calça meias, depois o sapato sem cadarço, respira fundo e dirige-se à porta, quando ouve a campainha.

*

Coriza nas primeiras horas do dia, mas continua deitada, retendo a vontade de espirrar que cresce. Subitamente sente fisgadas na bexiga, vontade de urinar insuportável, chega arrepiar os pelos, recorda-se de não ter ido ao banheiro ao se deitar. Levanta-se em um pulo súbito e corre ao banheiro, ao sentar-se na privada quase é engolida pela boca imensa do sanitário.

- Cretinos, nunca se recordam de abaixar o assento do vaso! Pensam que são dominantes apenas por não se sentarem aqui, mas não passam de eretos patéticos. Ouve o barulho da urina em cascata.

- Como está gelado este assento!

Se enxuga com o papel higiênico, levanta e dá descarga. Detém-se diante do espelho e fica observando aquele olhar perdido de amanhecer, percebe pelo basculante do banheiro que o dia está cinza-escuro, o nublado invade-lhe o peito, os olhos castanhos se tornam escuridão profunda. Os seios à mostra revelam mamilos intumescidos pelo ar gélido que envolve seu corpo, uma corrente de ar mais forte a faz tremer com pequenos calafrios. Sai correndo e entra embaixo das cobertas, mas precisa levantar.

Sai de novo da cama, agora calçando suas pantufas já gastas pelo uso diário, mas ainda assim possíveis de aquecer um pouco seus pés. Retorna ao banheiro, abre o chuveiro e deixa esquentar o ambiente, diminuindo bastante o volume de água, aumentando o vapor, fecha a porta para conservar a temperatura em elevação, retira a calcinha e entra no banho. Escorre um filete mínimo de água gelada, que logo é percebido pelo corpo que procura não escapar dos fios aquecidos, com movimentos curtos para evitar a exposição ao ambiente gélido, molhando por inteira, depois ensaboando com certa agilidade, para dar fim aquele banho inadequado, mas necessário. Quando vai secar-se percebe algum sabão que restara na parte traseira de sua coxa, mas não irá molhá-la novamente, a toalha faz o serviço de retirar aquela última sobra. Enrola-se na toalha com a técnica que só as mulheres conhecem com maestria, indo direto ao quarto, vestindo com agilidade a calcinha, calça jeans, sutiã, blusa de moleton, um casaco por cima, meias, sapatos. De volta ao banheiro, escova os dentes e sai para resolver o assunto que deixara pendente.

Parte II

Pensa:

- Será ela?

Hesita em ir até a porta, sente as mãos suarem. Toma coragem e observa pelo olho-mágico, não identifica ninguém. Seria algum engraçadinho fazendo das suas logo cedo, ou ela estaria evitando ser percebida, para que possa causar surpresa. Gira a chave levemente, depois o ferrolho, abre de súbito a porta. Vê um jovem em frente a outro apartamento. O rapaz se adianta:

- Desculpe-me, estava procurando o 515 e toquei a campainha do senhor, que é o 517.

Ele acena com um gesto de “não se preocupe com isso”, aproveita que já está fora e tranca seu apartamento, dirige-se ao elevador. O morador do 513 avisa:

- Está com defeito de novo!

Agradece com um aceno de cabeça, pensa que talvez ela esteja subindo pelas escadas, começa a descer os degraus sem pressa. Nunca havia contado o número de degraus do térreo até seu andar, começa a pensar para distrair a mente, se perde no quadragésimo alguma coisa e desiste. Chega ao térreo, pessoas reclamando na portaria por causa do elevador parado. Passa despercebido por todos, nem o porteiro se dá conta disso. Atravessa a rua e vai até uma lanchonete, o relógio indica 9:00, senta e pede um refrigerante, o rapaz do balcão pergunta:

- Qual?

- Coca-Cola!

- Está em falta senhor.

- Fanta então!

- Também não temos.

- O que vocês tem afinal?

- Guaraná e Pepsi.

- Pode ser Guaraná.

O rapaz traz o Guaraná, ele bebe, depois se dirige ao caixa e paga a bebida.Vai até a esquina e fica diante de uma banca de jornais, lendo as capas dos jornais expostos, depois capas de revistas, vai da moda, passa pelas fofocas e chega até as pornografias. Um garoto, não passa de 10 anos de idade, está sentado no chão, cheirando cola de sapateiro, todos passam indiferentes pela tragédia cotidiana. Olha para o menino, não conseguindo desviar o olhar, seus olhos lacrimejam levemente, o garoto percebe que está sendo observado, teme alguma denúncia e se afasta rapidamente.

- Mais um sábado! - Ele pensa.

Resolve retornar ao apartamento, atravessa a rua, passa pelo porteiro e o cumprimenta, sobe os degraus, com muito menos ânimo na subida, o esforço será muito maior até o 5º andar. Chega ao apartamento e se depara com uma correspondência deixada por debaixo da porta. Entra, o coração bate apressadamente, tranca a porta, rasga o envelope que não possui identificação, começa a ler.

*

Ela chega correndo ao ponto de ônibus, as pessoas a analisam com olhar questionador. Abaixa a cabeça, pensa sobre toda sua situação, abre a carteira que estava no bolso do casaco, confere o dinheiro da passagem, saíra com tanta pressa que nem se dera conta de verificar isso.

Uma velha dorme escorada na lateral do ponto, segura firme a bengala, mesmo sonolenta, dois garotos com uniformes escolares ficam se empurrando e dando risadas, um jovem insistentemente a observa. Percebe que ele está lendo um volume que tem formato de bíblia cristã, pelos trajes deve ser protestante, deduz.Chega o ônibus, a velha acorda e se dirige a porta da frente, os garotos entram se empurrando, o cobrador chama a atenção deles. O protestante faz-se de cavalheiro, mas ela não se deixa submeter a tão barato galanteio, faz um gesto que o incentiva a tomar dianteira.

Coletivo lotado logo cedo, nem passa da catraca, as janelas fechadas, o cheiro de perfume barato que oprime o olfato. Mais gente entrando no ônibus, todos vão apertados. Começam a descer pessoas.Atravessa a roleta e senta no banco de trás, os garotos, a velha, o protestante, todos ficaram em algum ponto e nem se deu conta. Olha pela janela, pessoas, carros, edificações, a vida passa, ou será que nós passamos diante da vida? Uma freada brusca, as idéias até saíram do lugar, pior para um rapazote cheio de sacolas que não pode se segurar e estatelou no chão. Poucos se dispuseram a auxiliá-lo. Senta uma moça ao seu lado, diz:

- Oi!

- Oi!?

- Me chamo Ellen!

- Prazer!

- Qual o seu nome?

- Desculpe, quero viajar sem conversar.

- Tudo bem.

Continua olhando pela janela, agora vê dois cães cruzando, pensa na beleza dos não-humanos em não terem essa moralidade tola que nos compromete, agem conforme sua vontade, livres perante suas necessidades. A garota insiste:

- Gosta de música?

- Sim!

- Quer compartilhar o mp3 comigo?

- Prefiro ouvir os sons que estão fora do aparelho nesse momento.

- Entendo. Tenho 18 anos, completei semana passada.

- Parabéns atrasado!

- Está triste?

- Quem nunca esteve?

A garota se prepara para afastar. Sua mão toca a da garota e diz:

- Fique!

Um sorriso aparece nos lábios da jovem, que senta mais próxima, não desvencilhando a mão da desconhecida que pousa sobre a sua. Ficam em silêncio por alguns minutos. Repara nos olhos brilhantes da jovem falante, os cabelos negros caem sobre seus ombros, que apesar do frio estão à mostra, a pele branca contrastando com o negrume das frondosas madeixas, a barriga expõe um piercing no umbigo, uma saia justa deixam expostas fartas pernas, terminando com um par de botas de muito bom gosto. A jovem comenta de forma atrevida:

- Vou a um evento de música, desço daqui a dois pontos, deseja ir comigo?

- Porque não?

Trocam um sorriso tímido, voltam a um silêncio abissal. Chega o ponto, elas levantam e saem do ônibus, percebe que alguns homens com roupas de operários de fábrica olham as pernas da guria que a acompanha, um chegou a expressar uma risada maliciosa com o canto da boca. Pensa:

- O que diabos estou fazendo neste bairro com esta garota que conheci a alguns instantes?

Desiste de tentar entender e prossegue acompanhando a jovem, olha em seu celular e percebe que são quase 11:00, comenta:

- Estou com fome!

- Sei onde podemos comer algo.

- Ok!

Seguem até uma padaria enorme, escolhem uma mesa, pedem a atendente um lanche especial da casa que serve pra muitos fregueses como almoço. O telefone começa a vibrar, a chamada aparece com número não identificado.

- Será ele? Pensa.

Respira fundo e atende.

Parte III

O bilhete foi digitado, fácil de compreender o recado, provavelmente o porteiro pediu que alguém o colocasse embaixo das portas dos moradores, dizia:

Caro(a) Morador(a)!

Provavelmente haverá reajuste nas despesas de condomínio para uma manutenção mais apropriada do elevador.

Quaisquer outros esclarecimentos estarão disponíveis na portaria.

Pra que se dar ao trabalho de escrever tantos bilhetes, poderia deixar o aviso na portaria ou algo do tipo, seria menos trabalhoso e menores as despesas.Amassa o bilhete e deixa em cima da mesa de centro. Sente um desconforto nos fundilhos, são as pratas do troco da lanchonete, incomodavam no bolso traseiro. Havia se esquecido daquele dinheiro, tantas vezes deixara no bolso das calças uns trocados, o bom era não precisar se certificar de ter alguma pecúnia quando saía às pressas, em compensação, diversas vezes perdera notas que dissolveram na máquina de lavar roupas, ainda causando trabalho para retirar as minúcias de papel dissolvido.

Liga a tv, com o controle passa os canais de forma aleatória, o noticiário chama atenção com a reportagem sobre repressão ao tráfico de drogas, mostram prisões efetuadas, tóxico e armas apreendidos, um prato cheio para a hora da refeição dos brasileiros. Se distrai pensando:

- Os verdadeiros criminosos continuam desfrutando suas regalias e jamais estarão expostos pela mídia que é patrocinada por eles!

Levanta-se, vai até a geladeira, serve-se de uma das garrafas pets, uma golada daquelas.

- Aaaahhh!!

Volta para o sofá, agora o noticiário expõe política. Pensa:

- É tudo a mesma coisa! - Desliga a tv.

Começa a estalar os dedos das mãos, depois dos pés, se dirige ao quarto, procura um alicate de unhas na gaveta de cabeceira. Ouve uma sirene, tenta identificar se é de bombeiros, ambulância, polícia. Encontra o alicate, retira os sapatos, as meias, começa ali mesmo, sentado na cama, a cortar parte de si, observa os pedacinhos de unha que caem sobre a colcha da cama, faz o mesmo com os dedos das mãos. Resolve levantar-se e arruma de novo a colcha que estava desalinhada.

A fome começa a manifestar-se, liga para um disk-marmitex já conhecido, fica aguardando o pedido, contemplando a vista da sacada, a cidade aparentemente calma daquela altura, as formas misturadas, podendo ainda ser identificadas, prédios vizinhos formam pilares que cercam seu raio de visão, não permitindo um olhar mais longínquo, pombos arrulhando no topo dos edifícios, a poluição torna o ar ainda mais pesado, é possível ver partículas sendo levadas pelo vento. O interfone toca e interrompe a meditação frente à vista aérea. Corre e atende:

- Pois não!?

- Senhor, o rapaz do disrk-marmitex está aqui. – Diz o porteiro.

- Ah sim, deixe que suba.

- Ele não vai subir por causa do problema do elevador.

- Já vou descer.

- Ok!

Vai ao quarto, calça as meias, os sapatos, sai do apartamento em disparada, descendo a galopes a escadaria. Chegando na portaria recebe o seu almoço, faz o pagamento, agradece e sobe. Chegando em seu apartamento apenas coloca um descanso de mesa em sua mesa de centro, coloca o marmitex, nota ter escorrido um pouco de feijão, quando abre se depara com a comida toda misturada, o entregador não tivera cuidado no transporte. Sorri com desdém e diz a si mesmo:

- Vai se misturar dentro de mim mesmo.

Come no próprio embrulho de alumínio do marmitex, depois amassa e joga dentro da sacola de lixo que está pendurada na maçaneta da cozinha. Vai ao banheiro e escova os dentes. Deita no sofá, liga o rádio, muita propaganda, coloca um cd de mp3 e escuta Chico Buarque, a música diz:

“É sempre bom lembrar

Que um copo vazio

Está cheio de ar.”

Sem se dar conta, adormece... sonha.

*

- Alô!?

- Alô! Poderia falar com a Jéssica?

- Engano!

Desliga o celular, ambas se levantam, dirigem-se ao caixa e acertam a conta de forma igualitária na divisão das despesas. Ganhando a calçada a jovem comenta:

- Como não sei seu nome, te chamarei de Fênix!

- Por quê?

- Seus cabelos avermelhados me fizeram pensar na ave em chamas.

- Realmente renasço a cada dia, faz 22 anos.

- Pelo menos agora sei sua idade.

- Apenas números, não me apego a eles, estatística que nos desumaniza.

As duas chegam a um galpão, a movimentação é intensa ao redor, barracas simplórias vendem de churrasquinho a bebidas alcoólicas de todos os gostos. Alguns conhecidos da guria vem cumprimentá-la, perguntam quem a acompanha, ela faz as apresentações:

- Essa é minha amiga Fênix.

Um dos amigos mais exaltados tenta se aproximar com um abraço repentino, mas é driblado embaraçosamente. Se separam do grupo e vão até a barraca de bebidas, pedem Tequila, um dose para cada uma, o ditado era, “um trago para uma dose”, assim, passaram por três rodadas num instante. A jovem reata a conversa:

- É rock!

- Havia percebido.

- Lhe agrada?

- Também.

Entram no galpão que possui entrada franca ao público feminino, são percebidas por olhares masculinos perdidos no amontoado de corpos que se agitam no ritmo da música, a cor mais comum de vestimenta era preta, típicos estereótipos adolescentes lidando com seus conflitos, outros mais amadurecidos entretidos pelo gosto musical ou algum outro motivo desconhecido. Dois rapazes se aproximam e tentam investir contra as mulheres, que os dispersam logo. Um senhor calvo senta próximo e procura desenrolar uma conversa, mas se levantam e dirigem-se ao bar, pedem algumas doses de vodka, das mais baratas, engolem a bebida e começam a observar a movimentação na pista.

Dirigem-se à pista e começam a fazer uma dança própria, pouco se importando com o ritmo, local ou público. Olho no olho, os corpos se tocam em movimentos cadenciados, alguns circulam e incentivam, o que as desanima, fazendo com que sentem em uma mesa vazia situada abaixo de uma escada. Um garoto senta ao lado e começa a vomitar, os amigos chegam para socorrê-lo e saem carregando o imprudente beberrão. Ocorrem algumas pequenas brigas entre exaltados pelo álcool, algumas meninas se empolgam com os integrantes da segunda banda que sobe ao palco. Ellen propõe:

- Vamos embora daqui?

- Claro!

As duas saem do galpão, a garota olha o relógio de pulso, quase 14:00, caminham até uma rua próxima.

- Moro naquela casa! – A garota aponta.

- Uma bela casa.

- Deseja conhecê-la?

- Porque não?

A garota ri, elas seguem até a entrada. Abre o portão, passam pelo pequeno jardim na frente da casa, abre a porta da sala de estar e avisa a mãe que está com visita, apresenta a amiga. A mãe possuía aparência de cansaço, dona de casa como tantas outras mulheres por esse Brasil, acostumada com a lida diária, satisfeita com as obrigações domésticas por ter no peito uma estima imensa pela família. Enfrentando os desafios cotidianos com a esperança de sucesso através do progresso almejado pela educação dos filhos.

Fizeram um lanche leve, bolachas e Nescau, o irmão de Ellen havia saído, o pai havia sido escalado para trabalhar sábado. Subiram para o quarto, ficaram ouvindo música, anos 60, 70, 80, 90, uma viagem no tempo musical, deitadas olhando para o teto. Tem seus cabelos acariciados pela garota e retribui, investe de forma mais agressiva, deitando-se sobre o corpo descoberto, tendo uma temperatura aquecida apesar da exposição ao tempo frio, sentindo o hálito com o aroma da última refeição. Investe um beijo a princípio tímido, explorando suavemente os lábios como se receasse o próximo passo.

Ellen, desinibida, inverte a posição, devolvendo o ato com um beijo intenso, as mãos já se perdiam em meio aos corpos desejantes. Só consegue pronunciar de forma sussurrada a palavra “Fênix”, desvencilhando a companheira de seu casaco, deixando sua blusa sem alças cair de vez. Com um simples gesto de dedos retira o sutiã, expondo seios pequenos, rígidos, como a guria, eretos de forma atrevida, expondo no mamilo esquerdo um saliente piercing que se insinua de forma provocativa, expõe a fronte de sua amante, seios mais volumosos, um caimento singular que cria uma obliquosidade sedutora. A saia da jovem voa, as calças são retiradas por duas mãos, os beijos tornam-se compulsivos, ainda assim impera algo de estranho no ar.

Sente a anfitriã entre suas pernas, desvencilhando-se das rendas de sua calcinha, pronta a desvendar seus mistérios mais íntimos, mas em sua cabeça passam cenas variadas, começa a se questionar:

- O que estou fazendo? Uma estranha!!

- Preciso encontrá-lo!!!

Uma lágrima brota solitária do seu olho esquerdo, faz com que seque no próprio globo ocular, de forma súbita diz:

- Pare!

Ellen ainda em êxtase, continua sua investida. Mas energicamente repete:

- Pare!!

- Fiz algo que lhe desagradou?

- Não é isso!

- O que houve?

- Preciso ir!!

Começa a recolher a roupa espalhada, enquanto a garota desnorteada olha de forma atônita, como se tudo fosse um mal entendido. Termina de se vestir, mas a jovem permanece nua, sentada na beira da cama, desconsolada. Olha nos olhos encharcados da guria, faz uma expressão de angústia misturada com “sinto muito” e sai. Ganha a rua, nem se deu conta da presença materna da garota, só desejava caminhar. Vai até o final da rua, entra em um beco, senta no chão e começa a chorar, parecendo diluir-se diante da realidade inteira, o mundo liquefazia através de suas lágrimas e sufocava seu desespero com soluços profundos, num desespero asmático. De repente o celular começa a vibrar.

Parte IV

Caminha por um local desconhecido, uma casa envelhecida, sua arquitetura poderia ser facilmente denominada “ruínas”, uma decoração modesta, a ponto de ser sutilmente observada, um ou outro móvel envelhecido perdido em determinado cômodo. Ao caminhar sente ofegar, a impressão de estar sendo perseguido, mas seu olhar nada encontra naquele lugar paupérrimo, nada além de aranhas e outros habitantes, que não poderia crer serem a causa de tal sensação desconfortável que lhe angustiava o peito. Ouve um barulho de porta rangendo, percorre o casebre sem nada encontrar, vozes são percebidas fora do recinto. Se posiciona próximo à fresta da carcomida janela, olha de esguelha pela diminuta abertura, só conseguindo identificar que eram quatro pessoas, três homens e uma mulher.

Corre por ruas de paralelepípedos, ladeiras íngremes que levam facilmente à exaustão, no topo do declive encontra um copo, posicionado no borda da calçada que circundava uma espécie de praça central e esquecida. Segura o copo, percebe estar vazio, aproveita a temperatura mais baixa, baforeja dentro do objeto de vidro fazendo embaçar. Joga o copo longe, esperando ouvir o barulho do vidro se espatifar. Um vento taciturno percorre a nuca, criando uma atmosfera sombria naquele cenário incomum.

Uma das primeiras namoradas diante de sua mesa, faz um gesto que lhe parece um convite, segue a moça até um quarto da enorme casa, os dois sem trocarem uma palavra se beijam, algo intenso e inexplicável, velados pela discrição de tão frondosa alcova. Suas roupas são elegantes, conseguem ouvir um burburinho que vem da sala de jantar, talvez os convidados tenham percebido aquelas duas ausências que poderiam ser associadas a uma ausência única. Quando vão se atrever a carícias mais ousadas, a maçaneta da porta move, demonstrando que uma presença iria flagrá-los.

Acorda com um arrastar de móveis no andar de cima. Começa outra faixa da coletânea com músicas aleatórias de Chico Buarque:

“O que será, que será?

Que andam suspirando pelas alcovas

Que andam sussurrando em versos e trovas

Que andam combinando no breu das tocas

Que anda nas cabeças anda nas bocas...”

Esfrega os olhos, desliga o aparelho de som, o relógio de parede na cozinha indica 15:03. Vai até a geladeira, retira outra daquelas geladas pets, enche um copo que já estava à mão no escorredor de talheres em cima da pia, bebe todo, enche o segundo e repete o ato, dando-se por satisfeito no terceiro. Tem uma idéia. Pega alguns trocados que estavam em cima da mesinha na cozinha, olha rapidamente seu visual em frente o espelho do armário do banheiro, ajeita os cabelos com as mãos, sai do apartamento.

Desce os cinco andares, não cumprimenta de novo o porteiro, considera desnecessário, vai caminhando pela calçada, logo se depara com uma locadora próxima de sua morada. Entra, cumprimenta o atendente, vasculha as prateleiras em busca de algo que lhe seja interessante. Se decide:

- Vai esse mesmo!

Dirige-se ao atendente e expõe a capa do filme em cima da bancada.

- Vou levar este!

- Qual o código de cliente do sr.? – pergunta o rapaz.

- 1315.

- Ok.

- São R$ 3,50. Poderá devolver depois de amanhã.

- Ok.

Paga o filme, cumprimenta o atendente e retira-se com a bolsinha plástica expondo o logotipo da vídeo locadora. Chega ao prédio, desânimo em subir aquela escadaria. Entra no apartamento, liga a tv, o aparelho de dvd já conectado, basta colocar o vídeo, mudar para o canal AV e pronto, começa a sessão de filme. As horas passam em frente à tv, o nome do filme é “.45”, protagonizado pela bela atriz ucraniana Milla Jovovich. Se detivera na trama que o longa metragem propunha, se ela não estaria fazendo o mesmo com ele, manipulando. Já passavam das 18:00, provavelmente não viria mais.

Resolveu tomar um banho, retirou o dvd, despiu-se, ligou o chuveiro, sentiu um cheiro de algo queimado, imaginou que logo teria que se meter a eletricista, pois seu banho quente em breve estaria comprometido. Mesmo assim não se fez de rogado, permitiu-se um banho demorado, a água aquecida corria-lhe pelo corpo, fazendo os pelos amansarem, esfregando a esponja ensaboada pelo corpo, vez ou outra sentindo desprender algum pequeno tufo do peito ou outras imediações corpóreas servidas de pelagem mais frondosa. Entretido com o som da água caindo sobre seu corpo e o chiado do chuveiro, escuta tocarem a campainha. Fecha a torneira, enrola-se na toalha e sai apressadamente.

*

Susto frente ao celular estar ligado, havia-o desligado. Provavelmente em meio aos tórridos amassos, teria ligado-o sem se dar conta.

- Alô!? Sim mamãe, estarei em casa não muito tarde, fique despreocupada. Beijos!! Tchau!!

Enxugara o rosto nas mangas do casaco e dirigira-se ao ponto de ônibus, por uma dádiva urbana, o coletivo que lhe servia acabava de vir em sua direção. Deu sinal, cumpriu o ritual de atravessar a catraca, já dando o dinheiro trocado, sentando-se nos assentos situados na parte central do coletivo. Seguia viagem com os pensamentos muito longe daquela realidade móvel que se apresentava pela janela do ônibus. Observa um cruzamento próximo, certo automóvel resolveu ignorar o semáforo e foi violentamente batido por um caminhão em sentido horizontal, a lateral do carro foi acertada em cheio no lado do carona.

Alguns passageiros, como ela, prestavam atenção àquela via no exato momento do acontecimento, alguns soltaram gritos, o motorista do coletivo que já estava parado por conta do sinal vermelho, abriu a porta dianteira e saiu em socorro das possíveis vítimas, o grosso dos passageiros fez o mesmo. O cobrador, apesar de quase sair em um salto por curiosidade, ficou receoso de perder alguma pecúnia e ter que prestar contas depois, manteve-se sentado, apesar de tagarelar, colocar a cabeça para fora da janela pedindo informações a todo instante.

Após o susto, ajeita o casaco, levanta-se e resolve também contemplar o trágico espetáculo, o cobrador a olhou com necessidade de informações. Dirigiu-se ao local, passando por duas largas vias, a multidão aglomerava, alguns tentavam fazer um cordão humano de braços dados para dificultar o acesso dos curiosos. Os comentários pareciam uma chuva que não cessava um instante, ainda assim fechou os ouvidos para a balbúrdia, olhou entre braços, avistou um casal, ambos aparentemente inconscientes. Nem se dera conta que o impacto da batida foi tão forte que o veículo capotara, indo parar um pouco distante do incidente inicial, vidros estilhaçados, cheiro de combustível, o motorista, barba por fazer, tez clara, estava preso de uma forma que não se podia constatar a gravidade aparente dos ferimentos, a passageira, uma mulher de pernas magras, também de pele clara, cabelos castanhos, o rosto desfigurado entre ferragens.

Uiiimmm-ooommm!! Uiiimmm-ooommm!! Uiiimmm-ooommm!!

As ambulâncias chegam enlouquecidas pedindo passagem, as pessoas se afastam ainda com resistência, pois a curiosidade fala mais alto que o bom senso, rapidamente os resgatistas abrem caminho e dirigem-se ao veículo de rodas pra cima.

Uaaammm-raaammm!!! Uaaammm-raaammm!!! Uaaammm-raaammm!!!

Chegam os bombeiros, ainda mais rápidos, com serras começam a abrir a lataria como se fosse um trivial enlatado, abrem espaço para poderem retirar o motorista, que reage com gemidos de dor. Logo é amparado pelos socorristas, devidamente imobilizado, uma fratura na perna esquerda, rapidamente é transportado à ambulância que sai em disparada. A passageira dá mais trabalho, o rosto desfigurado, os braços pendem balançando conforme o movimento empregado pelos resgatistas, a expressão no rosto do médico demonstrava pouco a se fazer. O motorista do ônibus faz a última chamada para os passageiros do coletivo, todos sobem à bordo, tantos comentários que o cobrador se fartou, ainda assim alimentava sempre uma nova onda de comentários sobre o caso.

Quando menos percebeu estava chegando ao seu destino, descera do ônibus, o coração batia aceleradamente, olhou no celular eram 18:20, parou em frente ao prédio, olhou bem a fachada, respirou fundo e entrou, cumprimentou o porteiro e foi logo subindo as escadas. Parou em frente a porta do apartamento, hesitou um momento, olhou para os lados, respirou fundo novamente e tocou a campainha.

Péééééééémmmm!!

Logo a porta se abriu.

Parte V

Chega até a porta, observa pelo olho mágico, não identifica ninguém, talvez fosse outro equivocado. Abre a porta e se depara com ela, de costas, se retirando e diz:

- Espere!!

Ela pára e volta-se de uma vez, os cabelos acompanharam o movimento de forma rápida, caindo resolutos sobre os ombros. Estava vestida com um elegante vestido azul, cobrindo o corpo inteiro mais sem deixar de destacar suas belas formas. Com o olhar encarando o chão ela responde:

- Pensei que não estava!

- Como pode perceber, estava no banho. Pode entrar.

- Sente-se no sofá, conhece bem o caminho. Sinta-se à vontade, vou apenas vestir uma roupa.

Foi ao quarto e pegou uma blusa, depois uma bermuda, eram as roupas que estavam à mão. Voltou à sala e sentou-se em um sofá que ficava de frente. Olhou mais uma vez, mas os olhos dela que fitavam o tapete no chão, aguardou alguns instantes, impacientou-se e adiantou:

- Então Verônica, começo eu ou você? Seu silêncio me faz pensar que eu mesmo devo começar, pois bem. Sumiu aquele dia, não quis mais atender minhas ligações, nem me recebeu em sua casa. Confesso que a chateei por ter saído, bebido com amigos, não ter comunicado, chegado tarde, mas não tive direito a nenhuma explicação. O que está acontecendo?

Verônica começava a se inquietar, os olhos já erguidos demonstravam lágrimas desejando transbordar. Foi quando não se conteve, mesmo chorando, iniciou o relato:

- Eu aquele dia fiquei magoada, conhecidas disseram que provavelmente havia saído com alguma garota. Também sai com amigas.

- Isso para mim é surpresa!

- Fomos a uma boate, dançamos, bebemos. – Interrompeu-se por soluçar chorando, mas engoliu as lágrimas e Erick lhe dera um lenço de papel que pegara no armário da cozinha. Prosseguiu:

- Não imagina como foi meu dia hoje, Erick, desde cedo aconteceram inúmeras coisas, do momento que acordei até a viagem de ônibus.

- Meu dia foi monótono, como disse que viria, fiquei aguardando, assisti um filme, dormi, coisas do tipo.

- Mas então, naquele dia que sumi, eu havia saído com minhas amigas, transtornada, acabei conhecendo alguém.

- Alguém, quem?

- Um outro homem!

- Do que está falando?

- Achei que também tivesse saído com outra mulher, fiquei irritada, conheci alguém que foi muito gentil comigo, acabamos ficando.

- Espere um segundo. Você deduziu que eu havia saído com outra pessoa, sem nem averiguar já foi para os braços de outro homem?

- Eu estava fragilizada, tudo aconteceu sem que me desse conta.

- Não acredito nisso!

- Depois eu soube através do Alex que vocês haviam se embebedado, nada mais, eles te arrastaram por causa da festa surpresa que fizeram ao Michel. Mas era tarde para remediar.

- Vocês só ficaram?

- Nós transamos.

Aquela afirmativa fez Erick ficar sem palavras, ficou olhando nos olhos de Verônica, que caíra em pranto descontroladamente, pedindo perdão pelo que havia feito. Foi quando se restabeleceu do que havia escutado e disse a ela:

- Esqueçamos tudo isso. Me dei conta do quanto lhe gosto, nada disso importa. Se foi imprudente, eu também fui, eu errei primeiro.

- Você me perdoa? – Verônica perguntava sem acreditar na reação de Erick.

- Não há o que ser perdoado, mas se deseja ouvir isso, eu digo que sim, perdôo.

Os dois se abraçaram por alguns minutos em prantos, ele de forma mais contida, ela transbordante. Fizeram carícias, se beijaram, sentiram o gosto salgado da lágrima, insinuaram dizer algo, mas calaram-se. Até que Verônica disse:

- Não posso!

- Não pode o que?

- Ficar com você.

- Por que não? – Perguntava atônito Erick.

- Não sou digna de você, o trai por tão pouco, ainda assim me perdoou, mas eu não consigo fazer o mesmo comigo. Me sinto enojada com meu próprio ato, jamais conseguirei olhar pra você novamente, sempre virá aquela noção de culpa, qualquer insinuação sua será como recordação de minha falta.

- Jamais jogaria algo na sua cara, disse que devemos esquecer.

- Talvez você possa, mas eu não.

Pegou sua bolsa que havia deixado em cima da mesa de centro e se dirigiu a porta que estava fechada mas não trancada, saiu pelo corredor chorando, desceu as escadas correndo. Erick ainda tentava compreender toda a situação, havia comprado um relógio para dar-lhe de presente, estava no seu quarto. Correu até o quarto, pegou a caixinha com o relógio, saindo em disparada atrás de Verônica. Chegando na calçada, olhando para os lados, não havia resquício da presença feminina que o abalara. Retirou o relógio da caixinha, ficou contemplando, imaginando que gostaria de entregar a ela aquela lembrança, apenas como demonstração de afeto, uma recordação dos bons tempos. Uma voz na escuridão anunciou o assalto, rapidamente arrancou-lhe das mãos o relógio.

O vigia estava sentado na portaria, atento a toda movimentação que ocorrera no prédio, quando de repente escutou um barulho que sabia identificar muito bem, era o som de um tiro. Correu para a calçada, viu Erick caído no chão, ao aproximar-se se deteve, uma poça de sangue já se formara. Correu para a portaria e ligou para a polícia, retornou rapidamente para o local do crime, amparando a cabeça vítima, pessoas da vizinhança já se aglomeravam compondo o cenário. Erick apenas enfiara a mão no bolso para pegar a caixinha do relógio, mas o assaltante, agora também assassino, podendo ser autuado por latrocínio, estava nervoso, puxou o gatilho pelo gesto inesperado de sua vítima, acertando com precisão milimétrica o umbigo do cidadão. Mais um acabava de ser incluído nas estatísticas crescentes da violência urbana.

*

- O que faz aqui, Clarice?

- Precisamos conversar.

- Entre.

Entraram e se dirigiram ao sofá da sala de estar, acomodaram-se nas poltronas aveludadas, um silêncio se instalou no mesmo instante de forma categórica. Jorge resolveu ser cordial:

- Aceita uma bebida?

- Não, obrigada!

- A que devo a honra? – Riu de forma irônica.

- Serei breve, sei que já está com outra pessoa.

- Espere, nós nunca tivemos nada, ou melhor, transamos uma noite, apenas sexo.

- Sim, apenas sexo. Mas o problema do ato sexual são conseqüências à longo prazo.

- Não compreendi a insinuação.

- Vou ser mais objetiva, engravidei aquela noite.

- Como pode ter certeza... – Jorge não conseguiu completar a frase, engolira uma saliva a seco.

- Deveria saber que nós mulheres temos conhecimento acerca disso.

- Porque não me disse antes?

- Adiantaria? Como você mesmo disse, foi apenas uma noite de sexo.

- Mas um filho muda as coisas, poderia ampará-la financeiramente, sou um homem de princípios.

Clarice não conteve a risada.

- Conheço bem seus princípios, mas agora não importa.

- E o que veio fazer aqui afinal? Resolveu garantir uma pensão?

- Realmente a noite de sexo foi curta, pois pouco me conhece. Vim aqui apenas para lhe dizer que não se preocupasse, mais ainda, que passasse a se importar, não comigo, mas com pessoas que venham a fazer parte de sua vida, como por exemplo, sua atual namorada. Realmente deveria ter feito antes, mas desde o início sabia que estava sozinha nisso tudo.

- Mas o que faremos em relação a criança?

- Já fiz! Abortei.

- Como? Fez isso sem nem me consultar?

- Sim, a decisão era minha, o corpo afetado foi o meu, assumi os riscos, fiz o que considerei coerente, ainda quero dar prosseguimento aos estudos e fazer tantas outras coisas que um filho impediria no momento. Não pretendia conceber uma culpa de minhas frustrações, uma criança deve vir para ser amada, não responsabilizada. – Após a fala, dirigiu-se à porta.

- Espere Clarice! E quanto a nós?

- Nós? Nunca houve um nós, apenas um breve eu e você.

Saiu do apartamento sentindo-se revigorada, desceu aqueles dois andares de forma muito leve, ganhou a avenida, o céu estava animadamente estrelado, inspirava o porvir, sentou-se no ponto de ônibus e aguardou o coletivo. Já passavam das 19:00, chegaria em casa em um horário que não preocuparia tanto sua mãe. Pensou sobre o dia marcante que teve, por um instante refletiu sobre as diversas realidades que ocorreram, estavam ocorrendo e iriam ocorrer. Uma mulher chegou com uma menina e sentou-se no banco ao lado, a criança sorriu de forma muito amigável, Clarice se rendeu e retribuiu com o mesmo empenho e afeto. O ônibus chegou, lotado pra variar, mas naquele momento nem se importava com isso, era seu momento por ter permitido governar a si.

***