Uma certeza.
Já é noite, bem tarde. Tanta coisa se passou no decorrer do dia, trabalho, aulas, prova, e nada tirou aquela cena da minha cabeça. A cena e as palavras que ouvi continuam aqui, como se presas na tecla review da minha memória, insistentes.
Eu estava a caminho do trabalho quando passei por um casal que conversava na calçada. Não, aquilo não era uma conversa. Mais parecia um acerto, julgamento final de alguma sentença, algo assim. O rapaz protagonizava aquela espécie de monólogo. Ela, ouvinte (de interlocutora não tinha nada), demonstrava tanta indignação que não emitia um som sequer. Seu rosto, naquele momento, desconhecia qualquer sinal da cor que uma gota de sangue que por ali circulasse daria: branca feito um papel. Ainda a alguns passos de distância eu percebi que ali existia alguma tensão. Quando passei o mais próximo que poderia, na frente dos dois, o rapaz se afastou deixando a garota apavoradamente só. Não tive opção. Ignorei o atraso que aquilo ia me trazer, segurei-a pelo braço e procurei com urgência o lugar mais perto onde pelo menos um suco, um café, eu pudesse oferecer para aquela menina (não falo da idade, pois não faço ideia da dela) perdida no tempo e no espaço. Ela estava prestes a desfalecer.
Com uma aflição que ela tentava transformar em calma foi me falando sobre o episódio. Acredito que ela falaria mesmo se eu não parecesse ser pessoa confiável, tamanho desespero e necessidade de dividir a tristeza e de ouvir alguma opinião. Mesmo se eu fosse uma estátua de bronze ela me adotaria para aquele desabafo.
Resumindo: eles vinham se relacionando fazia um tempo. Tempo marcado pela sintonia, harmonia, bom humor, afinidades incontáveis, entrega de ambos naquela relação que só fazia ser mais prazerosa a cada dia. Até que alguma coisa trouxe à tona aquele momento que presenciei (infelizmente?). O rapaz, num ímpeto, mostra a ela que em sua percepção ele estava se relacionando com múltiplas personalidades, todas ali nela. Somente ela, uma só pessoa, mas carregando várias pessoas dentro de si, como um mágico que, de acordo com a conveniência do momento, tira coisas de sua cartola, cria fantasias, inventa e vende ilusões.
Ela, atônita, foi finalizando sua narração repetindo e gradativamente diminuindo o volume de sua voz:
_ Ele nada entendeu, não entendeu nada. Nada captou e de tudo duvidou. O tempo todo ele só me observou como se eu fosse objeto de análise. Será que, segundo o que ele formou em seu estreito conceito, ele estava pagando para ver até que ponto eu "interpretava" ou se eu estava sendo autêntica?
De repente, essa moça se levanta, me deixa sentada, vai até a porta da lanchonete, sai do olhar perdido, me dirige olhar de despedida e continua dizendo sem se importar se alguém além de mim a escutava:
_ Sabia que ele dizia já ter lido O Pequeno Príncipe? Acho que ele pulou a parte do "Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez a tua rosa tão importante.". Ele realmente não entendeu nada... Que pena! Eu, por minha vez, vou ver se consigo que Antoine de Saint-Exupéry altere o "Tu te tornas eternamente responsável por tudo aquilo que cativas" para "Tu te tornas eternamente responsável por tudo aquilo que CULTIVAS"... É, vou tentar isso. Ele me cativou, mas não quis cultivar o que estávamos construindo, o que poderíamos ter criado juntos.
Essa moça foi embora, fiquei sentada mais alguns minutos, tão atordoada quanto ela, ou mais. Voltei à Terra, paguei a conta e segui meu caminho. Nem tão grande assim foi o meu atraso.
Dali, uma certeza: seguramente esse dia e essa história não mais sairão da minha memória.
... por tudo aquilo que CULTIVAS...
21/set/2010
23h40min
Primavera - cultivar flores!