O taxista
O táxi corria pelo asfalto cheio de buracos e depressões, a uma velocidade de cinqüenta quilômetros por hora. Vicente, o motorista, transitava pelas imediações do aeroporto quando foi abordado por um passageiro:
– Táxi! Táxi!
O veículo parou. Um elegante senhor abriu a porta traseira direita e entrou. Sentado junto à porta, colocou a pasta tipo executivo sobre os joelhos, protegida pelas duas mãos. Olhou para os lados, talvez preocupado com alguma presença indesejável. Então, ordenou ao taxista:
– Rua das Camélias, bairro da Independência, por favor!
– Pois não, senhor! – respondeu Vicente, depois de olhar para trás e verificar se o passageiro estava bem acomodado.
Voltou-se para frente e pôs o carro em movimento.
O táxi seguia o percurso indicado. Vez ou outra, o motorista olhava pelo retrovisor e via aquele cavalheiro sentado, com ares de muita apreensão. A cada instante olhava para os lados, consultava o relógio, inquietava-se. As mãos fortes seguravam cuidadosamente a pasta que transportava.
Disposto a iniciar o costumeiro diálogo com os passageiros, às vezes para por fim à monotonia ou simplesmente por curiosidade, Vicente perguntou:
– Vem de São Paulo?
– Sim.
Fez-se um pequeno silêncio, interrompido pela voz do taxista que insistia em dialogar:
– Quer usar o celular? É cortesia da “casa” – disse, ao erguer a mão direita e exibir o telefone enquanto novamente olhava pelo espelho retrovisor. – O senhor parece tenso. Algum problema?
– Não. É que estou ansioso para chegar. Tenho muitas coisas a fazer. À noite, darei uma festa para recepcionar um empresário paulista. Um amigo, com quem mantenho relações comerciais.
Algum tempo depois, o silêncio foi novamente quebrado, dessa vez pelo passageiro que anunciou:
– Finalmente, chegamos! Pode parar. É essa casa da esquina – disse, com o dedo indicador da mão direita apontado para uma belíssima mansão de dois pavimentos. Em seguida, retirou da carteira uma cédula de cinqüenta reais, com a qual pagou ao taxista.
Vicente parou o táxi em frente da casa, um palacete construído com esmero, bem ajardinado e alegre. Parecia uma dessas construções caríssimas, exibidas em filmes de luxo.
– Trinta reais! – anunciou o motorista, ao zerar o taxímetro. – Como é mesmo o seu nome, doutor?
– Pereira. José Pereira. – Muito obrigado. Esqueça o troco! – respondeu ao sair.
O passageiro retirou-se rapidamente. Segurava a pasta em baixo do braço esquerdo, apoiada pela mão direita. Renovava, assim, o excesso de cuidado com o objeto que conduzia.
***
À noite, por volta de vinte e uma horas, a festa foi iniciada na casa do doutor Pereira. Havia muita gente; a maioria políticos e empresários. Carros de luxo, homens elegantes e senhoras bonitas davam o tom alegre do ambiente. Doutor Pereira e sua mulher, dona Silene, recebiam os convidados efusivamente.
O banquete começou ao som de muita música. Os cumprimentos entre os convidados, as conversas de “pé-de-orelha” e os beijinhos trocados entre os participantes confirmavam a hipocrisia peculiar aos políticos.
No grande salão, ricamente ornamentado, eram servidos os mais variados drinques: bom uísque e excelentes vinhos. Canapés deliciosamente recheados, caviar, salmão e outras finas iguarias completavam a exuberância do acontecimento.
O grande relógio fixado à parede da sala, onde se viam magníficas obras de Picasso, Van Gogh, Rembrandt e bom número de peças de arte, de autoria de renomados escultores, soou estridentemente.
Eram vinte e três horas.
O jantar seria servido em seguida.
Os convidados conversavam descontraidamente, até serem chamados pela anfitriã para tomarem assento às mesas. Nesse instante, determinado cavalheiro, de nome Enéas Ricaço, passou mal e caiu ao chão, desfalecido. O conteúdo do copo que trazia à mão sujou o rico tapete Persa que ornamentava a sala.
Grande alvoroço tomou conta do recinto.
Alguns médicos acorreram de imediato, na tentativa de assistir à vítima.
– Morto! – revelou o doutor Saudelino, que tomara o pulso do senhor Enéas e consultara-lhe a carótida. – Definitivamente morto! – disse o médico aos circunstantes.
Enéas Ricaço era conhecido empresário de São Paulo; explorava o ramo da construção civil. Viera à cidade participar de negociações com o governo local. Tratava-se de licitação para erguer uma majestosa ponte sobre o Lago Sulino, obra que aproximaria distâncias, valorizaria imóveis da região e traria, sem dúvida, grandes dividendos políticos ao prefeito da cidade.
– O que terá acontecido, meu Deus? – gritou o doutor Pereira, desconsolado.
O morto estava estendido no chão, os olhos abertos, como se estivessem a fitar o teto ricamente iluminado por lustres de cristais importados da Europa.
– Enfarte fulminante? – perguntou outro empresário, sem obter resposta.
- Chamem uma ambulância! – gritou alguém, suspendendo o defunto pelos ombros.
A ambulância chegou e o corpo do doutor Enéas foi removido para um hospital de luxo. Embora morto em circunstâncias desconhecidas, não iria para o IML. Sua mulher não permitiu que o marido fosse aberto como um frango, a exemplo do que acontecera às vítimas do massacre do Carandiru.
O deputado Louis Américo Flary, presente ao acontecimento, sentiu-se constrangido com a citação da senhora; pigarreou por duas vezes e bebeu, de um só gole, todo o conteúdo do copo que trazia à mão.
A polícia foi chamada com certa demora.
O corpo foi para o hospital e pouco restava a fazer.
A festa acabou e as especulações recomeçaram.
– Acho que o Ricaço foi envenenado!
– Como assim? Por que você desconfia?
– Não sei. Essas concorrências… muito dinheiro… resultado conhecido por antecipação… – respondeu, insinuativamente, um dos convidados.
– Quem sabe, um concorrente alijado do processo licitatório? – insistiu outro, sem encontrar apoio aos seus comentários.
– Não gostaria de falar mais sobre o assunto – finalizou certo construtor, disposto a encerrar as especulações.
Às três horas da manhã, depois das diligências policiais de praxe, em que foram interpelados poucas autoridades presentes e todos os serviçais – garçons principalmente –, não restava mais ninguém na casa, exceto os respectivos moradores.
A residência, horas antes alegre e festiva, parecia uma capela fúnebre, com o ambiente pesado, triste, quase escuro, assustador, fantasmagórico.
Os médicos atestaram, posteriormente, que Enéas Ricaço morrera de infarto.
Simples, assim.
***
A licitação para construção da terceira ponte realizou-se no dia seguinte, mesmo sem a presença do doutor Enéas, o que seria impossível. Estava morto. Foi representado por doutor Pereira, executivo maior da empresa.
Divulgado o resultado, veio a confirmação: a Organização Ricaço saíra vencedora. Iria executar a construção pelos setenta milhões de reais orçados, certa de chegar ao dobro ou até mais com os reajustes posteriores.
Era o que sempre acontecia nas negociações entre governo e empreiteiras.
Vicente, o taxista, passava em frente ao palácio da prefeitura, onde se realizou a licitação, quando ouviu uma voz.
– Táxi! Táxi!
O motorista parou o veículo. Nele, entrou um senhor de cabelos grisalhos, com uma pasta executiva que fez Vicente lembrar a do dia anterior, conduzida por doutor Pereira. Ao entrar no carro, o passageiro colocou-a no banco traseiro em que se sentara. O gesto brusco fez a maleta abrir-se inesperadamente, revelando o conteúdo de milhares de reais. O passageiro apressou-se em fechá-la, sob o olhar atento do motorista pelo retrovisor.
“Aí tem!” – pensou Vicente, certo de que, brevemente, ouviria falar de mais uma licitação fraudada.
Uma prática sem fim.