Pecador renitente

Jorge levantou-se da cama, olhou em volta como se procurasse alguém para dirigir a palavra e desejar-lhe bom dia. Os olhos ardiam, o corpo doía e as pálpebras teimavam em se manter fechadas; queriam voltar ao sono que ele tanto insistia em deixar para trás.

A noite mal dormida marcou o rosto de Jorge com olheiras escuras, impossíveis de ocultar; as mãos tremiam, a cabeça latejava e o estômago embrulhava. Bocejou, suspendeu a manga do pijama e consultou o relógio que anunciava dez horas.

A manhã estava adiantada.

O calendário afixado à parede exibia a figura de encantadora jovem em trajes menores, sensual e provocante. A retina quase não liberava a imagem da exuberante mulher para que ele pudesse ver o dia expresso na folhinha: 22 de abril.

Olhou para a mesinha de cabeceira e contemplou o porta-retrato com a foto da esposa, a quem não via há quase três meses. Tomou a fotografia nas mãos trêmulas e beijou o vidro frio, sujando-o de lágrimas.

No silêncio do quarto, lembrou-se da noite anterior, passada na companhia de amigos, em interminável bebedeira. Sentou-se numa cadeira e deu asas ao pensamento, que voou de volta ao passado.

Lembrou-se de momentos às vezes felizes, outros, amargurados e tristes.

Sentado do lado direito da cama desarrumada e fria, os olhos fixos no assoalho de madeira, pensou na última discussão que tivera com a mulher, Doralice, jovem senhora de vinte e três anos, filha única a quem os pais devotavam extremado amor.

Naquele 12 de fevereiro, data do aniversário de Doralice, Jorge chegara em casa embriagado e violento. Xingou e espancou a mulher. Empurrou-a de encontro à parede, sem que ela esboçasse defesa ou resistisse às suas investidas grosseiras e covardes.

De tão bêbado, dormiu no assoalho da sala, por não ter conseguido chegar ao quarto do casal.

No dia seguinte, ao abrir os olhos viu a mulher ao seu lado, de pé. Ela portava uma bolsa com roupas e objetos pessoais. Triste, os olhos vermelhos, castigados pelas lágrimas derramadas durante a noite, falou que o casamento estava acabado; ela iria morar com os pais, pois não suportava mais suas bebedeiras, violência e irresponsabilidade.

Saiu sem despedidas.

Não chorou nem se voltou para vê-lo pela última vez.

Esse incidente ocorrera há quase três meses. Depois, as coisas somente pioraram para ele. Terminou por ser dispensado do emprego. Como recursos financeiros, restavam o que sacara do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e as parcelas do Seguro-Desemprego.

O que seria depois, não sabia.

Levantou-se da cama meio cambaleante, olhou novamente a fotografia da mulher, colocando-a em cima da mesinha de cabeceira.

Em seguida, foi ao banheiro.

A água fria ajudou-o a afastar o sono. Ao vestir a roupa, rasgou a calça quando o pé enganchou na abertura em que passaria a perna. Tropeçou e caiu. Levantou-se, dirigiu-se ao armário e escolheu nova peça do vestuário. Enquanto fazia a barba, cortou o lado direito do queixo, cujo sangramento somente estancou após colocar pequeno chumaço de algodão. Escovou os dentes, ficou nauseado e vomitou uma água verde, amarga e indicativa do mal provocado pela bebida.

Antes de lavar o rosto para retirar os últimos vestígios de sangue, ligou o pequeno rádio sobre a pia. Embora desligado, o receptor sintonizava estação da Igreja Mundial do Reino Divino. Maria, a faxineira, o deixara assim quando fizera a limpeza da casa no dia anterior.

Nas oito horas trabalhadas como diarista, Maria ligava o rádio ao chegar e somente o desligava quando terminado o serviço. Os vizinhos já haviam reclamado do barulho produzido pelas músicas e pregações evangélicas.

Ela não cansava de ouvi-las.

E em alto volume.

No rádio, em sua pregação exaltada e vibrante, o pastor dizia, ao citar os versículos 1 e 2 do Salmo 51:

“Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias. Lava-me completamente da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado”.

Jorge ouviu o texto bíblico e o repetiu para si: “… Lava-me completamente da minha iniquidade… purifica-me do meu pecado”. Depois, pensou: “são tantas as minhas faltas que Deus teria dificuldade em perdoá-las”. Somente se deu conta da blasfêmia, ao ouvir o pregador citar Jesus, segundo Mateus, capítulo 8, versículo 26:

“… Por que temeis, homens de pouca fé?...”

Jorge não mais insistiu.

Entendeu o recado de Deus e chorou convulsivamente. Ao controlar-se, pediu contrito: “Senhor, restitui-me a dignidade!”.

Passaram-se alguns meses. Sem emprego, Jorge vivia dos parcos recursos remanescentes da rescisão contratual. Disposto a mudar de vida, começou a frequentar a Igreja Mundial do Reino Divino.

Tornou-se “crente”.

Agora era “bíblia”.

Curou-se do alcoolismo.

Em pouco tempo estava novamente empregado, ganhava razoável salário, suficiente para suas despesas. Reconciliou-se com Doralice; voltaram a morar juntos. Meses depois, nasceu o primeiro filho do casal.

A vida mudou.

Para melhor.

Jorge pensava em ser empresário. Frequentava a igreja com assiduidade e participava da “corrente da prosperidade”.

Meses depois, montou o próprio negócio.

Tornara-se um próspero comerciante.

Não faltavam elogios à denominação que o acolheu. Aos amigos, dizia: “Sou dizimista e contribuo generosamente quando participo da corrente da prosperidade”. Repetia isso nas entrevistas gravadas para testemunhar as graças alcançadas.

Certa vez, em animado culto da Igreja Mundial do Reino Divino, Jorge ouviu do pastor o desafio cumprido por muitos dos fiéis. Dizia o pregador:

– Deus nos dá tudo. Temos a obrigação de devolver não apenas dez por cento do que Ele nos concede, mas noventa por cento de tudo que angariamos em recursos materiais. “Fazei prova de mim, diz o Senhor” – repetia o reverendo, entusiasmadamente. – Portanto, quem deseja fazer prova de Deus e, pela fé, entregar-Lhe seus bens materiais? Deus os devolverá multiplicados!” – insistia o pastor com eloquência, citando também o exemplo de Abraão, a quem fora pedido seu único filho.

Em casa, Jorge fez um balanço de sua vida: “Há pouco tempo eu era um ímpio, vivia no pecado, bebia e fumava desbragadamente, o dinheiro não era suficiente; hoje, tenho casa, negócio próprio, alguns imóveis alugados. Venderei meus bens e doarei o dinheiro à igreja; por certo terei muito mais no futuro”.

A ganância de Jorge subiu-lhe à cabeça.

Um dia, chegou à igreja resoluto. Entregou ao pastor um cheque ao portador, produto da venda de seus bens materiais. A partir desse momento, passou a aguardar o resultado de sua generosa oferta.

Os negócios tomaram rumo diferente.

As receitas diminuíram com o passar dos dias, os compromissos vencidos foram protestados, enviados a cartório por falta de pagamento. A situação financeira declinante também afetou o seu padrão de vida. Em casa, começaram os problemas de ordem familiar: a mulher reclamava da falta de alimentos; da empregada despedida para reduzir despesas; do atraso no pagamento do aluguel da residência e do colégio das crianças. Doralice estava grávida pela segunda vez, o plano de saúde fora suspenso, também por inadimplência; a casa não tinha o conforto da anterior, que fora vendida e o dinheiro doado à igreja; enfim, uma situação de desespero.

– O que fazer? – perguntou-se angustiado.

As coisas não davam sinais de melhora.

Ele iria ao pastor.

Em seu gabinete pastoral, sobriamente mobiliado, temperatura ambiente em torno de vinte graus Celsius (lá fora o termômetro marcava trinta e oito), o reverendo saudou o visitante:

– A paz do Senhor, irmão!

– A paz do Senhor – repetiu Jorge, automaticamente.

Sentou-se e contou ao reverendo as inúmeras dificuldades enfrentadas. Suas provações foram narradas ao líder espiritual que o ouvia com conselhos na ponta da língua:

– Paciência, irmão. O tempo de Deus não é o seu tempo. Tudo será resolvido; amém? Mantenha a fé e não deixe de participar da corrente da prosperidade.

Meses depois, cada vez mais pobre – quase falido –, Jorge retornou ao pastor. Pediu nova orientação, voltou a falar do seu sofrimento, de suas dificuldades financeiras, de seus problemas familiares...

– Que é isso, irmão! Onde está sua fé? – perguntou o homem de Deus, virando as costas para Jorge para receber um cheque de mais uma ovelha.