A entrevista

A jornalista Amélia Cabral costumava visitar a Febem, na capital paulista, para inteirar-se da situação dos menores internados na instituição.

Seu trabalho sério e competente comovia leitores, preocupava autoridades, sociólogos e psicólogos; também impressionava defensores dos direitos humanos, interessados em notícias sobre maus tratos contra jovens infratores, esses garotos que praticam crimes hediondos, enlutam famílias e assustam a sociedade. Livres, são feras indomáveis, predadores selvagens e cruéis; presos, rejeitam a disciplina, a educação instrutiva e a correção da personalidade rebelde.

Naquela sexta-feira, Amélia cumpria extensa rotina de sua vida profissional. Ela trabalhava duro para fornecer notícias de interesse social e de forte apelo popular aos seus editores.

Há poucos dias, recebera o prêmio Grandes Reportagens, instituído pela ALI – Associação Local de Imprensa.

Uma retribuição merecida.

Amélia parou o carro próximo à guarita, vigiada por solitária sentinela. O guarda estava armado de fuzil, olhos e ouvidos atentos; parecia um camundongo assustado, perscrutando a menor alteração de gestos e ruídos. Depois de cumprimentar o policial e de ter a bolsa revistada, foi autorizada a entrar.

A jornalista seguiu um funcionário chamado a acompanhá-la à sala do diretor, doutor Marcos, advogado de cinqüenta e cinco anos, no cargo há apenas dois meses.

O novo diretor assumiu ciente das dificuldades que enfrentaria. As constantes mudanças na direção da Casa atrapalhavam os programas de reabilitação. A descontinuidade das ações levava à implantação de novas medidas, posteriormente desprezadas por ser inexeqüíveis, por falta de recursos, má vontade ou desinteresse político.

Finalmente, Amélia chegou à portaria central do edifício. Durante curta caminhada, viu pavilhões mal conservados (a pintura descascava sob a ação do sol inclemente), gramados ressecados, estacionamentos de veículos ao desabrigo e inúmeras viaturas abalroadas, necessitadas de conserto, deterioradas pela ação implacável da ferrugem.

Um pequeno caos.

Ao transpor uma porta, a jornalista tropeçou no batente alto e quase perdeu o equilíbrio. Refeita do susto, seguiu a indicação do funcionário.

– Por favor, primeira porta à direita!

Caminharam por pequeno corredor pintado de branco, com faixa verde de um metro e vinte centímetros de altura. Chegaram à sala modestamente mobiliada: mesa retangular, envernizada em passado distante; microcomputador, cujo monitor de fundo verde aparentava alguns anos de uso; telefone; pequena mesinha sobre a qual repousavam a garrafa de café, duas xícaras e o açucareiro; e duas cadeiras postas à frente da mesa.

A jornalista sentou-se na mais confortável.

– Sinta-se à vontade! – disse o diretor. – Podemos iniciar a entrevista.

– Quantos menores são hoje, doutor?

– Quase trezentos. A instituição abriga apenas jovens do sexo masculino. Crianças de doze, treze… até dezoito anos incompletos.

– Como é cuidar de tantas crianças, algumas adolescentes, rebeldes...?

– Bastante difícil. Realizamos ótimo trabalho, mesmo com escassez de recursos financeiros. Somos orientados por psicólogos, pedagogos e assistentes sociais. Uma boa equipe. Reeducar jovens como esses, problemáticos, de famílias desestruturadas, de pais alcoólatras, sem nenhum estudo… realmente não é fácil.

– Eles resistem à disciplina, aceitam as orientações? Como se comportam em relação às instruções recebidas?

Ao cruzar a perna direita, Amélia mostrou parte da coxa robusta, bem torneada, graças à genética herdada da mãe. O gesto foi involuntário e prontamente corrigido.

O diretor respondeu depois de se recompor da sutil, inesperada e agradável visão:

– A maioria é indomável. As orientações são quase sempre ignoradas. Eles não respeitam a autoridade dos guardas. Quebram móveis, incendeiam colchões, fabricam estiletes com os quais agridem funcionários, fazem reféns e ameaçam matá-los, quando não os ma-tam em episódios quase rotineiros.

Passado algum tempo, levantaram-se de suas cadeiras, por sugestão do doutor Marcos. Foram à mesinha do café saborear deliciosos biscoitos trazidos pelo diretor, como regalo à bela profissional.

De repente, ouviram a sirene anunciar uma situação de emergência. O diretor levantou-se apressado. O instinto de sobrevivência aconselhou-o a proteger-se atrás da escrivaninha.

Dois rapazes, talvez de dezessete anos, entraram armados com seus estiletes pontiagudos e afiados.

Os meliantes tomaram a insigne jornalista como refém, presa pelo pescoço. O braço esquerdo de um dos rebelados apertava fortemente a garganta de Amélia. A moça agüentava firme as estocadas do rapaz, efetuadas para assustá-la e para impor obediência ao diretor do estabelecimento.

A rebelião seguia celeremente em quase todo o reformatório. Os guardas mantinham-se ocupados na tentativa de conter a horda de garotos insatisfeitos, principalmente por estarem privados da liberdade. Liberdade por eles mesmos negada ao infringirem a lei e a ordem.

Estavam ali por merecerem.

Ninguém os forçou a viverem em regime fechado, longe da família, enjaulados como animais. À sociedade, restou a separação do “joio” do “trigo”.

Nos dormitórios, os colchões ardiam em chamas. Fogueiras dispersas, oriundas dos muitos móveis incendiados, tomavam conta do edifício.

Os telhados pareciam chaminés de grandes indústrias. A fumaça encobria dezenas de rebelados que subiram à cobertura do prédio, dispostos a escapar das chamas e da prisão.

Na sala onde estavam o diretor e a jornalista, os dois delinqüentes tentavam negociar meios para a fuga. Sentado por trás de sua mesa de trabalho, doutor Marcos estava tenso e nervoso; Amélia, de pé, colada ao corpo do bandido, continuava sob ameaça do afiado estilete, que comprimia seu lindo pescoço.

– Dotô, nóis qué um carro forte; desses qui transporta dinhero. O sinhô vai cum nóis pra dá garantia! – falou o rebelado mais forte, com cara de mau.

O bandido ainda acrescentou:

– Ligeiro! Pegue o telefone. Aví, cara!

– Peça dois culête pra protegê nóis das bala – disse o outro comparsa, a pouca distância do diretor, naquele instante vigiado ameaçadoramente.

– Se avexe home… se não ele mata a moça! – gritou o segundo elemento, dando uma pequena estocada no apavorado refém.

Os bandidos pareciam ser nordestinos. O regionalismo das palavras usadas e os portes franzinos confirmavam a suspeita.

Doutor Marcos tentou dialogar. Embora não fosse afeito a situações de perigo como aquela, mantinha a calma. Disse-lhes da impossibilidade de cumprir as exigências deles e do insucesso que teriam na audaciosa empreitada.

– Desistam, meninos. Quantos rebelados são?... Cinqüenta… cem? Como farão para fugir todos? – argumentou o diretor. – As autoridades não aceitarão essas exigências. Parem com isso!

– Não interessa, coroa. Nóis dois fugindo ta bom. Na saída nóis leva o qui puder. O resto é probrema deles! – disse o “Paraíba” que mantinha a moça como refém.

A jovem gritava apavorada a cada contato da lâmina afiada no pescoço.

Lá fora, a algazarra só não era compartilhada por dois guardas e nove internos mortos.

Os funcionários foram esfaqueados com requintes de selvageria; tiveram as gargantas secionadas e os órgãos genitais decepados e introduzidos na boca. Os olhos abertos, sem vida, pareciam contemplar o desconhecido, assustados por gritos de pavor ou incomodados por calor intenso e abrasador.

Uma cena infernal!

Os garotos, por sua vez, despediram-se do mundo ao som dos estampidos das armas. Os projéteis perfuraram seus corpos magros, deixando-os exangues.

Sem vida.

Finalmente, chegou a polícia de choque, fortemente armada: capacetes, escudos, coletes à prova de balas, metralhadoras, fuzis que repetiam centenas de tiros por minuto.

Os portões foram abertos.

Os soldados entraram.

Os revoltosos pararam de brigar.

Renderam-se à força policial numerosa e ameaçadora. Os dedos dos policias estavam prestes a pressionar os gatilhos das armas. Ou os amotinados paravam ou mudariam de endereço.

O inferno os aguardava.

Na sala do diretor, quatro personagens dessa triste contenda entreolhavam-se assustados; de um lado, os dois meliantes rebelados, irresponsáveis e sem futuro; de outro, o diretor, representante de autoridades arrogantes e soberbas; entre eles, isenta de culpa, a profissional de imprensa, no exercício do sagrado direito de informar.

A refrega acabou.

Contaram-se dezoito mortos: dois guardas da Casa de Custódia, treze amotinados ainda imberbes, o diretor e a jovem jornalista.

O “Paraíba”, autor das três mortes finais, inclusive a do companheiro que havia sugerido entregar-se, exibia o estilete como troféu de guerra.

O bandido foi impiedosamente metralhado pelos policiais, ao invadirem a sala.

O cenário da última entrevista da jovem repórter era aterrador. Olhos sem vida mantinham-se abertos, como se contemplassem o inferno, em dia de maior sofrimento.

Alguns pareciam ver o próprio demônio, saudando-os com votos de “boas-vindas”!

Amélia teve sua biografia divulgada em todos os jornais do país e do exterior. Sua foto foi mostrada nas televisões do mundo inteiro, repetidas vezes. Seus feitos jornalísticos foram enaltecidos à exaustão.

E para homenagear sua efêmera passagem por este mundo tenebroso, gravaram um epitáfio na lápide fria do túmulo em que passara a residir: “Aqui jaz Amélia Cabral, assassinada no cumprimento do dever”.