As Casas...
 
Dessa casa, que ficava na Avenida Duque de Caxias, mudamos para outra nova, recém construída, na Avenida Espanha.

Meu pai construiu a casa financiada pelo instituto; nessa época ele já era funcionário público; não ganhava muito, não tinha o apoio da esposa que já estava “doente mental”, tinha duas filhas para criar; foi difícil.

Mesmo assim ele conseguiu terminar a casa e comprou mobília nova, toda em madeira torneada, com espelhos em cima de cada móvel. A sala era linda, havia um espelho grande na parede, a mesa de jantar com oito cadeiras estofadas, vasos, enfeites.


Eu ficava admirada com os banheiros: havia um só para nós, as mulheres, azul e cor de rosa, com banheira! E outro menor, inteiro branco, só para ele! Um luxo!

Os quartos tinham armários embutidos, a cozinha também. Os pisos eram em tacos de madeira, a cozinha em pastilhas brancas! Tudo claro, novo, bonito!


Mas infelizmente toda essa prosperidade material não estava baseada no equilíbrio emocional e espiritual da família.


Minha mãe estava sempre nervosa, falando sozinha, resmungando pelos cantos.

Meu pai, como todo bom descendente de italianos, queria ter um herdeiro, um menino que desse continuidade à família. Então mesmo doente, ela engravidou, mas a criança não chegou a nascer naquela casa.


Na época eu não sabia de nada; tinha cinco anos e só brincava alegre com minha bicicletinha de duas rodas e com as crianças da vizinhança.

Penso que ele deve ter gastado demais na construção, na compra dos móveis e se endividou tanto que não conseguiu pagar o financiamento.

Não sei exatamente quanto tempo moramos na casa bonita; só sei que foi por pouco tempo.

E agora é que me dou conta: aquela casa não tinha nenhuma escadinha...


Fomos morar de aluguel numa casinha menor, mais simples, mas também muito bonitinha na avenida D. Pedro.

Essa tinha um terracinho na frente e a famosa escadinha de três degraus encerados que dava para o jardinzinho com mureta baixa e portão.

Eu gostava dali: logo na esquina havia um lindo jardim , cheio de árvores enormes, bancos de madeira pintados de verde e recantos lindos para brincar e andar de bicicleta; para mim era uma verdadeira floresta.


Eu ali brincava, já estava com quase seis anos; minha irmã já era uma mocinha.

Eram os anos cinqüenta, ela usava saia rodada, rabo de cavalo, punha discos na vitrola, tinha amigas, paquerava e acho que até namoricava com o rapazinho do sobrado em frente.

E eu já achava lindo um menino lourinho, o Paulinho, que morava por perto e andava de bicicleta no jardim.


O novo irmãozinho nasceu naquela casa.

Engraçado como não me lembro da minha mãe barriguda, não me lembro da chegada do nenê. Minhas lembranças são dele já sentadinho no carrinho, minha mãe dando papinha para ele.

Era uma criança um pouco frágil, tinha crises de bronquite, chorava à noite. Chamava-se Alcindo Junior; costume de italianos, colocar nomes iguais.


Não tínhamos muito contato com os parentes. Do lado do meu pai, havia meu avô, e dois tios, casados e que moravam na mesma cidade, mas que pouco os víamos, pois minha mãe implicava com eles e com as cunhadas e não podia vê-los que ficava nervosa. Os outros moravam fora e era ainda mais raro encontrá-los.


Os parentes da minha mãe eram minha avó Judite, viúva, que viera de Iguape com os filhos: Maria Judite (minha mãe),
Ilaura, Maria Jo ( a querida tia Petita), Leonora e Geraldo. O avô Geraldo falecera ainda moço e a avó Judite viera com os filhos pequenos para o interior de São Paulo, onde tinha parentes que a ajudariam na criação dos filhos.

A única parenta que aparecia em nossa casa era a tia Leonora, pois era solteira e gostava de visitar a irmã e ver os sobrinhos. As outras tias eram chegadas, mas pouco podíamos nos encontrar, pois moravam em outra cidade.


Quando fiz seis anos, passei a gostar de folhear revistinhas em quadrinhos, os gibis. Meu pai notou que eu colocava a revistinha muito perto do rosto e um dia fomos ao oculista; na semana seguinte eu já estava usando óculos!


O médico espantou-se, pois que o grau da miopia era já alto e foi se agravando durante toda a minha infância, até que cheguei aos quatorze anos, quando então se estabilizou. Mas passei toda a adolescência com óculos daqueles tipo “fundo de garrafa”.

Não foi fácil; os óculos chamavam a atenção das pessoas, não era comum naquela época crianças usarem óculos; eu ficava constrangida com a curiosidade das pessoas e queria me esconder ainda mais.


Desde então comecei a me refugiar na leitura e antes de ser alfabetizada já passava horas com as revistinhas e gibis.


No ano seguinte, 1955, fui para a escola, primeiro ano, cabeça de pano! Naquele tempo não havia escolinha maternal, pré- escola, nada disso. Íamos para a escola aos sete anos; eu ia completá-los em maio, fui para o Colégio onde minha irmã já estudava.


Que escola linda, que alegria! Escadarias, salas, pátio, tudo tão grande, tão bonito! Eu achava lindo o uniforme, ainda mais que minha irmã já tinha usado igual! Era um aventalzinho xadrez de preto e branco, amarrado nas costas, sapatos pretos e meias brancas.

E lá ia eu, com meus óculos, minha bolsa e minha lancheira!

Eu aprendia rápido! Um dia, fiquei apavorada quando a professora, Dona Mercedes, mandou que eu tirasse os óculos e falasse quais as letras que estavam escritas num cartaz, lá na lousa! Eu não enxergava nem o cartaz, quanto mais as letras! Errei todas, diante de toda a turma! Que vergonha! Ficou claro que eu era “deficiente visual” e que não enxergava nada sem meus óculos.

Isso me envergonhava, sentia-me diferente. “Quatro olhos” era como me chamavam quando queriam me ofender. E conseguiam.


Ia a pé para a escola, era perto de casa. Não sei por que, mas um menino começou a me perseguir, xingar, corria atrás de mim. Eu fugia, mudava de calçada. Não contava para ninguém.

Agora percebo o quanto eu era fechada, não conversava com meus pais, nem com minha irmã. Vivia fechada dentro de mim, isolada.

Mas isso era por dentro. Quem me visse por fora não notaria nada de anormal: eu ia para a escola, aprendia, brincava e corria como as outras crianças no recreio, ia para casa, fazia as tarefas.

Mas havia uma solidão, uma falta de comunicação com os adultos, uma incapacidade de fazer perguntas, de me interessar, de viver.


Há muitas crianças assim, carentes de atenção, carentes de afeto, carentes de saber mais sobre si mesmas, sem conseguir expressar seus sentimentos e sensações.

E há muitos adultos assim, alias, somos quase todos assim: vivemos para o mundo exterior, somos superficiais, sem qualquer consciência de nós mesmos, de nossa própria existência, de nosso próprio valor, de nossa verdadeira razão de viver.


E assim vamos vivendo, até que a Vida vai encontrando formas e maneiras, as mais criativas, de ir nos mostrando, de ir nos empurrando para dentro de nós mesmos, seja pelo amor, seja pela dor.

De qualquer forma, estamos indo todos para algum lugar e a única coisa que eu sei é que esse lugar é o “Bem Maior”, Universo, Deus, ou seja, qual for o nome. 

Sei também que nessa caminhada cada vez mais nos sentiremos felizes e realizados quanto mais nos aproximarmos de nós mesmos e de nossa essência verdadeira.

       continua... não perca!   

                                                              
Malu Thana Moraes
Enviado por Malu Thana Moraes em 12/10/2009
Reeditado em 13/10/2009
Código do texto: T1862270
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