Primeiras Lembranças
Quando dei por conta de mim, nesta vida, eu já era uma meninona taluda, forte, que gostava de brincar com a criançada na rua, pedalando na minha linda bicicletinha de duas rodas.
Antes disso lembro-me de uma charretinha, puxada por um cavalinho branco: a gente sentava na boléia, pedalava, e o cavalinho misteriosamente andava!
Então chegou a bicicletinha nova, toda embrulhada em papel pardo, ao lado da minha cama, dia de Natal!
A charretinha então foi embora, levada pelo tio Dauri: ela ia para minhas primas que moravam em uma cidadezinha da região. Pensam que eu queria dar a charretinha? Não queria, fiquei magoada. Também, não me consultaram! E era minha...
Acho que eu era meio desligada, meio parada. Não era uma dessas crianças vivas, espertas, ligadas no que os adultos diziam ou faziam. Era introspectiva, brincava muito sozinha, o mundo era para mim uma coisa distante, nebulosa... Penso que eu nunca enxerguei muito bem, mas não me dava conta disso.
Minha mãe, Maria Judite, era uma figura quieta, que ficava sempre na cozinha, perto do fogão. Lembro-me dela fritando uns bolinhos, que depois ela recheava com creme, polvilhava com açúcar e canela e, que delicia!
Chamavam-se “sonhos”! De vez em quando eu percebia que ela falava sozinha, no fogão; ficava brava, xingava. Eu não ligava, ficava na minha, brincando sozinha no chão, embaixo da mesa.
Meu pai, Alcindo, era um homem alto, magro, de bigode. Quando ele chegava, algo mudava; acho que era porque ele falava alto, com a voz grossa.
Às vezes brincava comigo. Lembro-me de uma brincadeira que eu agachava, passava os bracinhos para trás das pernas, ele puxava as minhas mãos e eu virava uma cambalhota. Que susto!
Minha irmã, Marli, já era mocinha, sete anos mais velha. Vejo sua figura indo para a escola, de uniforme, saia pregueada, com os livros e cadernos nos braços.
Eu achava lindo e importante ir para a escola!
A casa era antiga, aquelas de janelas altas e estreitas, com vidraças de abrir e venezianas de madeira. O chão era de tabuas de encerar.
Na frente havia um terracinho, uma escadinha e o portão de ferro que dava para a rua.
Sempre gostei muito dos alpendres e das escadinhas; vejo agora que em todas as casas em que morei na infância, havia uma escadinha, sempre de degraus encerados e lisos, onde eu adorava brincar.
Brincava com pedrinhas, com saquinhos que minha mãe costurava e enchia de grãos de arroz, miudezas que eu juntava. Uma vez inventei uma brincadeira com vidrinhos vazios de remédios, de todos os tamanhos e formatos. Eles formavam famílias, os maiores eram os pais, os menores eram os filhos. E eu criava toda uma historia; havia sala, quarto, cozinha e tudo isso eu montava nos degraus da escadinha...
Percebo agora que eu era muito solitária: minha mãe vivia no seu mundo interior, falava com suas vozes; não me lembro dela conversando comigo nem para dar broncas, nem para aconselhar ou ensinar; meu pai sempre na rua, no trabalho ou nos bares com amigos; quase não recebíamos visitas nem saiamos, porque minha mãe era “diferente”; tínhamos vergonha, medo que ela fizesse escândalo ou xingasse as pessoas.
E eu também vivia no meu mundo: brincava sim, era solta; ficava o dia todo à vontade, um pouco menina de rua; andava descalça, às vezes não tomava banho, parecia um moleque.
Não era atenta aos acontecimentos do mundo nem aos adultos; só enxergava as coisas mais próximas de mim.
Se eu era feliz? Não sei. Não sentia muito as coisas, acho que já nasci meio dopada.
Hoje sei que minha mãe tomava remédios psiquiátricos; antes de eu nascer ela tinha tido uma crise muito seria: de repente tinha ficado parada, em estado de choque, não se mexia nem falava.
Foi um susto porque até ali ela tinha sido uma moça normal, tinha se formado professora primária, casou-se, teve uma filha (minha irmã mais velha) que já estava com quatro anos. Tudo normal. Meu pai era farmacêutico, moravam numa cidadezinha junto com minha avó e com minhas tias.
Meu pai, filho de imigrantes italianos, tinha dois irmãos estudantes de medicina, era farmacêutico, e tinha uma formação totalmente cientifica e nada religiosa.
Naquela época quase nada se sabia de problemas emocionais ou espirituais.
Conclusão: quando minha mãe adoeceu, foi levada ao psiquiatra, tomou remédios, e acabou sendo internada em uma clinica em Campinas, onde ainda se usava ministrar eletro choques.
Resultado: dali para frente ela voltou a se movimentar e a falar, mas teria que tomar remédios para sempre. E nunca mais voltou a ser como antes.
Tudo isso me contaram mais tarde; aconteceu uns três anos antes de eu nascer. Então creio que fui gerada já com toda essa problemática no meu contexto emocional e absorvi muito dessas substâncias que ela ingeria no meu organismo.
Por tudo isso e pelas minhas próprias condições psicológicas, eu era essa criança meio desligada, desatenta do mundo exterior; não me lembro de ter muitos sentimentos e sensações, nem de amar, nem de ter sido amada.
Hoje vejo que eu me sentia abandonada, medrosa e insegura, mas era inconsciente disso. Mas vejo também que, por outro lado, a vida me propiciou todas as condições favoráveis para meu desenvolvimento: um corpo saudável, casa, abrigo, alimento, pais, irmãos, escola.
E agora sei que minha lição nesta vida é aprender a fortalecer meu emocional, confiar mais em mim mesma, no Universo, em Deus.
Saber que não estou abandonada e que confiando na Vida posso me aconchegar em mim mesma, sem precisar depender de que as pessoas venham me apoiar ou sustentar.
continua..