HIGIENE
(Dublin, 11.11.1996 – Florianópolis, 28.04.2009)
Ela mantém à esquerda, insistentemente. Em Florianópolis, raramente ouve-se o som estressante das buzinas. Porém, alguns cidadãos não resistem: a ultrapassam, pela direita, apertando fundo no volante. “liga a seta, piranha!”, é a última coisa que escuta, antes de entrar na rua da academia.
Não estaciona. Larga o carro aonde parou, impossibilitando o uso de duas vagas. Sai com a toalhinha na mão e entra exibindo seus longos cabelos clareados, seios rigidamente siliconados e bunda exuberante. Por questões de convenção (diz-se, nas altas rodas, que é falta de educação observar descontraidamente), os homens disfarçam suas ânsias em olhar aquela região glútea, dedicadamente sustentada por exercícios físicos.
“Bom dia Ana”
“Bomm diaaa, queriiiida”
Sobe as escadas, após a roleta, em direção à sua rotina cotidiana de malhadora juramentada.
Está feliz. Saíra da cidade natal deixando sua vida frívola lá, por sua vida frívola, aqui. A diferença estava no cinza. Onde vivera, tudo passara a ficar cinza. O astral, os prédios, a fumaça, as crianças ameaçadoras nos sinais de trânsito. Os vidros, sempre fechados; do carro, da casa. Não podia mais usar relógios. Jóias, nem pensar. Andar de salto alto nas calçadas cagadas, quebradas, cheia de mendigos e outras sujeiras mais, era uma aventura. Tudo isto lhe cheirava mal. Nunca precisou trabalhar. Sem preocupações, não lia jornal, não assistia jornal, não entendia jornal. Nada disso lhe importava, já que todas as questões eram solucionadas pelos pais. Contudo, a sujeira metropolitana, o cheiro de esterco vindo de todas as direções, pessoas, vans e cidadãs, lhe enojava. Até que num dia, ao voltar das férias em Santa Catarina, decidiu: “Pai, quero morar em Floripa.”
O pai não gostava da idéia de ficar longe da filha. A mãe, muito menos. Porém, o crescimento desordenado, impune da violência urbana era algo que os preocupava ainda mais. “Está bem, meu amor. Mas, procure bem o lugar onde vai morar; que depois arranjo tudo”
E eis que Ana vive num apartamento com varanda para a Baia Norte, no centro da cidade. Logo, se popularizou com a galera. Por cima da carne-seca, badala e exibe suas qualidades físicas, ornamentada da cabeça aos pés. Namorado? Não. Já transou e rolou com os mais sarados e orgulha-se disso. Namorado, não.
Já é noite, quando deixa a ginástica. Vai pra casa. Toma banho. Arruma-se. Nada disso é tão rápido como o descrito. Segue para o local combinado; atrasada, é claro. Japonês. Adora japonês. Os caras, alto padrão de vida, atléticos, malhados; imigrantes de todos os cinzas do Brasil (ou seria melhor dizer, todas as cinzas?). As meninas, idem. Sushi, sashimi, temaki, rolinho primavera rolando, à base de doses infinitas de saquê. Muitos risos, e sobem para dançar. Mais saquês, mais risos.
Um rapaz, de fora do grupo, faz a besteira de aproximar-se para conhecê-la. Sua resposta arrogantemente ignorante o deixa vermelho de tal forma que nada mais o herege consegue dizer. Volta pálido para a companhia de seus amigos, que olhavam e riam dele.
Chega a hora de ir embora. “Fui!”
Em casa, de madrugada, exerce todos os preparativos para dormir. Deita-se. Apaga.
Após um bom tempo, sonha e o sonho lhe pede algo. “Ãh?”
É a barriga. Dói. Segue correndo e tirando a camisola do jeito que pode. Ela sabe o que é. Senta-se rapidamente na privada já evacuando sua dor, que não para. Mãos na testa, cotovelos nos joelhos, o suor lhe escorre enquanto os cabelos na cara, agora sem apelos de preocupação, alcançam o chão de ladrilho. O cheiro começa a subir. Forte, cada vez mais forte. Dá a descarga, porém o nariz já impregnara.
Foi então que, depois de várias seções até a emancipação da dor, decide-se por limpar-se. Cadê? Nada. Estica-se para alcançar a portinha do armário; aquele básico, embaixo da pia. Nada. Esquecera de pedir à empregada para comprar papel higiênico.
Claro que, em sua lógica nobreza, a culpa é da subalterna. Nunca seria dela. Revoltada, levanta-se, sem poder fechar as pernas, para tomar banho. Foi então que algo acontece além de sua expectativa: a dor volta, e mais forte. Pior, não consegue evacuar. Espasmos se seguem até jogar a cabeça para trás e gritar: “putaquepariu, que merdaaaaa!”
Seus longos cabelos, admirados por todos e invejados por todas, são jogados às costas. Caem sedosos sobre a pele macia, que mantém o perfume e a suavidade de toda uma vida de tratamentos com os melhores produtos de beleza que se pode imaginar.
waltermoreno