ENTRE GOLES E "IMBRÓGLES" - [Desafio Literário I]

Puxou a cadeira, preguiçoso, com um ar de insatisfeito, e deixou-se cair pesadamente. Respirou fundo olhando para cima, como se pudesse encontrar no teto a respostas para seus problemas. Tomou ar novamente, ajeitando a cadeira. Enquanto apoiava os cotovelos em cima da mesa, as primeiras palavras cortaram o ar.

- Pois é, mais uma vez aqui estou eu desabafando pra você. Mas por quantas vezes você já não me ouviu? E aqui está você de novo. Como sempre, tendo que me aturar. Pois se prepare; hoje somos só eu e você, e minhas ideias estão mais embaralhadas que nunca.

- (...)

- “Começar pelo começo”, claro. Não tenho certeza se sei bem como foi que tudo começou. Talvez tenha sido na nossa primeira troca de olhares. É. Não tenho dúvidas. Quando vi aquele rosto angelical eu não tive dúvidas que estava apaixonado.

- (... ...)

- Tudo bem, eu sei, eu sei. Eu sempre digo isso. Não era paixão. Mas te digo que foi um tesão dos grandes. Depois que eu olhei pra ela não consegui olhar para mais nada. Lembro-me como se fosse hoje a primeira vez que nossos olhares se cruzaram.

- (...)

- Nem muito alta, nem muito baixa. A estatura perfeita para meus abraços. As pernas eram grossas e o jeito de andar, celestial. Os seios não eram fartos, mas o tecido leve do vestido lilás dela se moldava ao corpo, me dando uma maravilhosa visão de suas formas. Eram dois lindos montes, esculpidos com precisão pelo criador.

- (...)

- Raio-x! Até que não seria uma má idéia! (risos) Quem me dera, quem me dera...

- (...)

- Os olhos, claro... Verdes como os mares do Caribe...

- (...)

- Pode ser muito clichê (risos). Mas até mesmo o clichê, de vez em quando, é elegante!

- (...)

- Emília. Esse é nome da minha grande tristeza. Ela estava acompanhada quando chegou à festa. E é óbvio que eu, um solteirão da minha idade, sagaz soldado do batalhão de frente do time da azaração das épocas de faculdade, já senti uma pontada de incômodo. Uma mulher tão bonita daquela com um cara tão... tão... Bom, não importa! Uma mulher tão bonita daquela e que não estava comigo?

- (... ... ...)

- É... eu e minha velha mania de grandeza. Pouparia muitas decepções sem ela.

- (...)

A história, a história! Estava tão preocupado com aquela mulher que só depois de quase uma hora na festa eu percebi que tinha esquecido de dar as minhas congratulações ao aniversariante. Meus olhos atentos perseguiram-na o tempo todo. E eu tinha certeza que ela fazia o mesmo. Um olhar sacana, convidativo.

- (...)

Até concordo que ela podia estar olhando para mim e pensando: “Porque esse maníaco não para de me olhar?” (risos); mas eu sabia que ela também tinha suas segundas intenções. Foi quando eu percebi ela se afastando do grupo, em direção à porta de saída. Eu, exímio caçador, não perdi um segundo. Encontrei-a na esquina. Tudo aconteceu muito rápido. Sem trocarmos uma palavra se quer, demos o primeiro beijo. O toque das nossas línguas era apaixonado, os abraços apertados, a respiração acelerada. Parecíamos dois amantes que não se veem há muito tempo. Mergulhamos no banco de trás de seu carro. A luz negra da madrugada cobria o veículo, tornando-nos invisíveis aos olhos de quem saia da casa. O que não tornava aquilo menos perigoso.

- (... ...)

- Claro, isso que tornava tudo melhor ainda (risos). Risadas, lambidas, mordidas no lábio, peles suadas, sussurros e gemidos. O carro se enchia de um êxtase inigualável. Seu corpo tremeu de leve e um gemido agudo e prolongado abandonou sua boca enquanto as unhas pareciam querem rasgar as minhas costas, me marcando como um escravo.

- (...)

- Apesar de ter passado na minha cabeça por um instante: não. Ela não era muda! (risos) Trocamos então as primeiras palavras. Descobri que, por uma questão de preferência sexual, eu não deveria me preocupar com seu acompanhante. Demos uma longa risada com isso. Em seguida ouvi ela me dizer que nunca tinha feito isso antes.

- (...)

- Lógico que eu não acreditei! Mas eu não estava nem aí. Sentia-,e incrivelmente bem na presença dela. Como se nos conhecêssemos desde crianças. Conversamos pouco. Tentei não me prender aos detalhes chatos de uma conversa. Alguns gracejos, uns poucos elogios e muita pressa. Tínhamos que voltar para a festa. Apesar de não ser namorado dela, o seu companheiro era ciumento com a amiga. Combinamos tudo. Eu iria cumprimentá-la como se já a conhecesse há tempos. Trocaríamos nossos telefones e endereços. Daria tudo certo. Esperei por uns dez minutos depois de vê-la entrando novamente na festa e, com a roupa ainda um pouco amassada, atravessei a porta. Ouvi um grito, um empurra-empurra, e então a confusão começou. Briga das grandes. Até as cadeiras voavam. Tentei tirar alguns de meus conhecidos do meio da confusão quando senti a pancada. Acordei umas duas horas depois no hospital, com a cabeça enfaixada.

- (...)

- Uma garrafada, meu infortúnio. Queria levantar, voltar para festa e encontrar aquela mulher. Não me deixaram ir embora. Tinha que ficar em observação. Que noite triste aquela que passei. Minha cabeça não conseguia pensar em nada que não fosse ela.

- (...)

- No dia seguinte eu voltei, não tenha dúvidas. Perguntei aos meus amigos, amigos de amigos, mas ninguém conhecia aquela linda ruiva. Nem mesmo o aniversariante. Sem alternativas, sem sorriso e sem Emília, fui embora. Foi só então que eu descobri estar apaixonado. E de verdade dessa vez! Dia após dia eu me lembrei dela. Os anos passaram, entes queridos morreram, sobrinhos nasceram; e mesmo assim ela continuava aparecendo em meus sonhos. Nunca mais a esqueci.

- (...)

- Hoje de tarde o telefone tocou. Uma festa de casamento. Minha semana tinha sido horrível, não hesitei em aceitar o convite do Brandão. Vesti-me elegantemente e mirei as certeiras borrifadas de meu perfume favorito no pescoço e atrás da orelha. Sempre tive minha teoria que as solteiras mais inexperientes acabem sendo influenciadas pelo clima de romance da festa. Elas se emocionam, gritam, choram e, principalmente, bebem! Seria uma boa oportunidade para eu me divertir um pouco. Chegamos à Igreja, cumprimentamos algumas pessoas e nos colocamos ao lado do corredor para ver a noiva passar. Estava com o olhar perdido entre os seios direito e esquerdo de uma jovem garota, tentando imaginar se ela possuía silicone (e que diferença isso iria fazer para mim), quando meu pensamento foi interrompido pelas primeiras notas da Marcha Nupcial de Mendelssohn. A porta da Igreja se abriu, deixando a luz do sol iluminar o recinto. Minha visão, turvada pela forte luz, não reconheceu imediatamente a noiva. Mas quando ela deu o primeiro passo para frente em direção ao altar, deixando a sombra da igreja cobrir seu rosto, foi que eu dei o primeiro passo para trás. Foi nessa hora que reconheci aquele rosto, tão comum a mim em sonhos. Aquelas feições de uma paixão relâmpago, tão sem sentido quanto inesquecível. Aquela face que eu nunca perdi a esperança de encontrar. E encontrei. Emília. Esqueço-me às vezes o quanto a esperança, assim como o otimismo, pode ser sarcástica.

- (... ...)

- Fui discreto. Saí sem que ninguém pudesse notar a dor que me tomava o corpo. As lágrimas me tomaram o rosto, como tomam agora novamente. Não expliquei nada a ninguém. Alguns sofrimentos não devem ser explicados, devem ser sofridos. E é como estou agora. Sofrendo de uma paixão que poderia ter sido e não foi. Afogando novamente minhas mágoas com você. Como sempre foi, como sempre será, meu velho e bom parceiro.

- (... ... ...)

- É eu sei. Acho que preciso tirar essas roupas e ir descansar um pouco. – disse levantando da cadeira, enxugando o rosto com a manga do terno. – Amanhã pensarei com mais calma sobre tudo isso. E se eu não chegar a conclusão nenhuma... bom, aí você sabe a quem eu recorro!

- (...)

- Sabe o que é mais engraçado? Cada vez que eu dou um gole em você, é como se eu pudesse ouvir um comentário seu, uma observação, uma bronca, uma piada ou até mesmo um conselho. Meu alter-ego engarrafado? Talvez... O homem que disse que o cão é o melhor amigo do homem, meu nobre amigo vinho, não aprendeu a te apreciar...

- (......................)

Concluiu dando um último e longo gole diretamente da velha garrafa de vinho tinto e abrindo um leve sorriso, deveras satisfeito por ter um fiel companheiro como aquele, com quem pudesse, sempre, dividir suas mágoas e alegrias.

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Desafio Literário I

Tema: O vinho

Réplicas dos escritores e amigos:

Álvaro Luís:

http://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/1489712

Suzana Barbi:

http://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/1492600

Josadarck
Enviado por Josadarck em 18/03/2009
Reeditado em 05/04/2009
Código do texto: T1493100
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