A FARINHADA, UM CANTO DE ENCONTROS
É noite de outono, uma lua redonda desponta no quebrar da barra, a comadre Maria, como é chamada na região, juntamente com seu Zé, o marido, os setes filhos que sempre os acompanham, isto sem contar os três cachorros e os dois gatos que os seguem sempre na retaguarda, chegam à casa de dona Damiana; batem à porta e a chamam:
-vamos pra casa de farinha raspar mandioca, porque noite de lua cheia é noite de farinhada.
Quase todos da região se juntam no trabalho coletivo de uma farinhada. Sentam-se ao chão, em torno da ruma de mandioca, colocam um saco de estopa por sobre as pernas e começam as raspagens, com suas facas afiadas.
O seu Mané junta as mandiocas raspadas em um balaio, cesto feito de cipós-de- macacos, trançados uns aos outros; jogando-as sobre a mesa do rodete, uma peça de madeira, roliço ou seja em forma de cubo, que gira sobre um eixo. Nele, são fincadas várias serras dentadas de aço, para triturar a mandioca, é envolto em uma caixa de madeira, para proteção das mãos. Já se encontrava limpo o cocho, feito de tábuas, formando um grande vertice, onde a massa mole seria aparada.
A raspagem continua noite adentro um café aqui, outro ali e muitas estórias ditas “de trancoso”, cantarolas e repentes é uma festa aos olhos de quem aprecia. Seu Joaquim começa a preparar “os panos” da prensa, feitos da palha do coqueiro trançadas uma para cada lado. Virando-se para o salão, adverte: comadre Damiana vem cevar mandioca, que seu Chico e João da Grota, já estão puxando a roda, isto quer dizer, girar uma grande roda de madeira de aproximadamente três metros de diâmetro, presa em um pedestal tipo quadripé, sobre dois mancás e com duas manivelas, tipo braço, onde se coloca uma cânula feita do gomo de bambu e dois homens utilizando a força de seus braços, fazem-na girar. Ela fica a uns cinco metros de distância da mesa do cevar, esta é fendada ao centro, em todo seu contorno, por onde passa uma corda de couro, trançado, chamada de reio, que faz girar o rodete em alta velocidade. -Estou indo compadre, quero ver se esta cambada raspa o suficiente para eu cevar. Falavam que dona Damiana era uma cevadeira das boas.
A roda moendo, o rodete cevando, a massa caindo e a manipueira jorrando. O senhor Joaquim coloca os panos na prensa, um para cada lado da borda do cocho, depois apanha uma gamela, utensílio feito de madeira leve, o mulungu, árvore de flores vermelhas, enche de massa mole e coloca na prensa sobre “os panos”, assim, até lotar a cavidade feita na madeira, depois, junta as extremidades dos paneiros, como também é conhecido, amarra com as cordas de sisal, passadas por baixo dos mesmos, sobrepondo a prancha da prensa, sobre a qual, será baixado o fuso, que fará pressão sobre a massa, para eliminar toda a manipueira existente, caldo liberado da mandioca triturada.
A prensa é uma estrutura de madeira, muito forte, composta por duas laterais. Na parte superior é encaixada uma viga; ao meio, é perfurado, para encaixe de um grande parafuso de madeira, chamado fuso. Na extremidade inferior deste, há uma grande cabeça, com dois furos cruzados, ultrapassando os lados, onde se coloca o “pau do fuso”, para os trabalhadores apertarem a prancha sobre a massa. Na parte inferior, fica outro travessão, no qual, se abre uma cavidade, onde a massa mole é processada sobre forte pressão. Embaixo da prensa, se coloca uma grande gamela, para apanhar a manipueira que jorra, dessa manipueira, é extraída a goma, fécula muito branca, retirada da mandioca e da qual se faz o polvilho, a tapioca, o mingau e na região, muito utilizada no preparo de um liquido, para engomar roupas de linho, antes de se passar o ferro.
A farinhada seguia seu rumo. Lá pelas tantas da noite, a prensa é desatarraxada, a massa enxuta, é retirada e atirada ao cocho de massa para peneirar,esse cocho é um retângulo de madeira, com aproximadamente três metros de comprimento, um metro de largura e cinqüenta centímetros de altura. Uma grande rupema, utensílio feito de fibra de bambu, trançado, que serve para peneirar a massa enxuta. -Peneira sinhá Francisca, que o forno está esquentando; gritava seu Rivaldo, ateando lenha ao forno, uma grande circunferência de aproximadamente quatro metros de diâmetro, com altura em torno de um metro, construído de tijolos e forrado com lajotas de meio metro de largura por meio metro de comprimento, sentadas sobre arcos de tijolos. Entre os arcos, se formava a fornalha, cuja entrada, se chamava “boca do forno”, por onde se ateia a lenha a ser queimada, que produz o calor e esquece o mesmo.
O Sr. Rivaldo gritava: -prepare o rodo seu Joaquim, que já vou atirar a massa, pois o forno está no ponto. O rodo é uma vara comprida de madeira e em sua extremidade coloca-se um pedaço de tábua, de aproximadamente meio metro, a madeira, deve ser de cedro, para deslizar por sobre o forno e não largar farpas na farinha. Durante aproximadamente duas horas, a massa é atirada sobre o forno, mexida com o rodo, para lá e para cá, até o pó ficar fininho, redondo, bem sequinho e assim ser retirado, medido em cuia, utensílio de madeira, equivalente a dez litros, assim, vai ensacando-se a farinha, produzida na farinhada.
Após haver cevado toda a mandioca, dona Damiana retira do cesto, uma peça de pano de saco, amarra as duas extremidades com a fibra da bananeira e as prende em duas estacas fincadas ao chão. Junta em uma bacia, uma poção de massa mole com água, vai colocando em pequenas quantidades, na rede de coar goma, e torcendo com as mãos a mistura vai deixando o caldo cair em uma gamela. Aos poucos o caldo é passado para outras vasilhas, após certo tempo, a água fica por cima de uma camada branca depositada no fundo dos utensílios utilizados para a decantação, assim é retirada a goma ou fécula, substância farináceas de tubérculos como a mandioca.
A massa enxuta continua sendo peneirada, para a próxima fornada. Os fragmentos que sobram deste processo, são chamados de “crueira”, ao final da farinhada são atirados sobre o forno para secagem, servindo como alimentação para a criação de galinhas caipiras, perus, suínos e cabras, criados por muitos desses agricultores, do nordeste brasileiro.
Seu Rivaldo continua mexendo a farinha sobre o forno e de repente fala para sinhá Francisca: -prepare a massa, com sal e muito coco ralado, para o “beiju de forno”, pois nisto eu sou mestre. Logo a massa ficou pronta e fôra colocada em um canto sobre o forno, o Rivaldo vai mexendo a farinha, em torno do beiju, até que as bordas, comecem a levantar, ele joga por cima da massa esticada, um pouco da farinha quente e após algum tempo, solta-o do forno e começa a enrolar como se faz a um rocambole, e toda a farinha é revolvida ao pendurar-se o beiju.
Ao virar da madrugada, as crianças sonolentas, algumas dormindo em algum lugar da casa de farinha; grande estrutura de madeira de lei, coberta com palhas de coqueiros, em formato duas águas, ou com telhas de barro, em estruturas quatro frentes, contornada por meia parede de tijolos e pilastras que fazem a sustentação da cobertura.
A cada família é dadas uma fatia do beiju e uma porção de massa enxuta para se fazer o beiju de casa; sendo essas iguarias nordestinas servidas no café da manhã. As mulheres e as crianças voltam a suas casas, enquanto os homens, ficam prensando, peneirando e torrando a farinha na noite que ainda será longa.
Seu Zé, aproveitando o clarão da lua, fôra até o paiol de lenha, buscar mais uma braçada, para encostar a boca do forno e ir secando, pois o orvalho da madrugada estava tão intenso, que chegava a molhar tudo que não estivesse sob uma cobertura.
Seu Chico, Joaquim e João da Grota davam o último aperto, na penúltima prensa da noite; colocam o pau no fuso e sacodem com força os corpos, dois puxando e um empurrando, com toda a disposição que Deus lhes deu e eles podiam ter. A prensa chega a estremecer e o fuso a ranger. Já é pouca a manipueira, a escorrer para a gamela, que se encontra embaixo da mesma. Comentam: em menos de uma hora, a massa estará pronta para ser peneirada.
Seu Rivaldo atira o rodo ao fundo do forno, puxa a farinha em sua direção, apanha um punhado e joga para cima, verificando se a goma espalha-se no ar, como acontece com a poeira, se isto ocorrer, está pronta para ser retirada e ensacada. Ele vê que ainda não ficou no ponto, voltando a empurrar e a puxar a farinha freneticamente.
O Sr Mané, faz de um tudo, agora peneirava a última porção de massa enxuta, que havia no cocho. João da Grota lhe fala: -“nós já vai afrouxar a outra prensa e tu vai ter de peneirar, Véi Mané, aqui nós trabaia”. Seu Mané que sempre foi um homem de muitas graças lhe responde com uma rima.
Jogue de lá, sua massa,
Que de cá, estou te vendo,
Quando vier, venha quente,
Porque eu estou fervendo.
Foi uma “risadagem” só, seu Chico bate palmas e diz para João da Grota: -vai esse menino, enfrenta o poeta se tu tens pólvora no cartucho. E boas risadas se faziam ouvir no silêncio da madrugada, que uma vez por outra, apenas os latidos dos cães se faziam ouvir; talvez acuados por alguma raposa que ousara passar próximo de um galinheiro.
Uma voz suave se faz ouvir, em um raro momento de silêncio, em meio a tanta trabalheira: –Vamos retirar a prensa, para colocarmos a última massa mole, que ainda se encontra no cocho. Era o Sr. Joaquim, que chamava a rapaziada, despertando-os da sonolência que o cansaço estava a provocar, após um dia e uma noite na labuta.
Após a retirada da prensa enxuta, fora colocada à última massa mole, que ainda se encontrava no cocho. Apertaram bem o fuso e a manipueira começa a jorrar. Seu Mané peneirava a massa, o Rivaldo a jogava sobre o forno, mexendo-a “pra lá e pra cá”, o forno estava muito quente, precisava mexer rápido, para a farinha não engrossar.
Ao despontar do sol, todos comemoram o fim da farinhada, tirando do forno a última cuia de farinha, da última fornada. Ao todo foram secenta e quatro cuias. Restava apenas jogar a crueira sobre o forno e puxar o braseiro da fornalha, para não queimar os tijolos do forro, por isso, espalhava-se a crueira ao final da farinhada, com a finalidade de resfriá-lo com a absorção do calor pêlos detritos da massa peneirada. Agora, restava separar a conga devida, ao proprietário da casa de farinha. Conga é uma unidade de medida regional, ou seja, para cada cuia produzida, um litro é para o dono da casa de farinha; neste caso, seis cuias e quatro litros. Do restante, parte fica para o consumo familiar, o restante será vendido. Com o dinheiro da venda, serão comprados os produtos, não produzidos pêlos agricultores regionais. Uma espécie de simbiose, ocorre nas pequenas localidades, do interior do nosso país, vende-se algumas coisas, para que outras possam ser compradas.
Nessa mesma manhã, seu Rivaldo, arria os burros de carga, prepara duas sacas de seis cuias cada, três cargas ao todo, atrelam duas sacas a cada animal, toca os burros, segue a estrada rumo “à rua”. A farinha já havia sido encomendada, por um dono de mercearia, que passaria a vendê-la a retalho. A rua é como os brejeiros e sertanejos denominam em geral, as pequenas cidades, onde os agricultores, vendem os produtos produzidos, em seus pequenos sítios. Isto se constituem, na principal fonte de renda dessa gente; que mesmo no anonimato, fomentam a economia, deste grande pais chamado Brasil.
Rio, 16 de junho de 2006
Feitosa dos Santos