O Inquilino...
O Inquilino...
Celso Gabriel de Toledo e Silva – Cegatosi
Poeta de Luz – Arquiteto de Almas
Concebida: 30/novembro/2005 – 00hs: 40min - A.M.
[Publicado na revista: O Pulo do Gato, edição 40 - Julho/Agosto-2007]
Quanto é estranho, porque não dizer misterioso este tempo que desfrutamos estando aqui presente neste espaço de água, chão, sol, lua, frio, calor, enfim... Esta residência passageira, este globo chamado de planeta Terra.
Quantas e quantas vezes nos foge a compreensão de tudo o que estamos a viver, do que já se viveu, até aquilo que ainda poderemos vivenciar e não entendemos o seu porquê, mas estamos a fazer parte de tudo isto, indireta ou diretamente.
Sendo assim vou contar-lhes uma experiência na qual participei de começo como um espectador e com o passar de um curto espaço de tempo como parte ativa da história.
Tenho a oportunidade de residir numa área de relativa tranqüilidade em minha cidade e ter a chance de possuir uma residência com um quintal onde existe um espaço com verde [trepadeiras e arbustos de médio porte] e em decorrência disto a vida floresce através das flores, dos pássaros, a natureza seguindo seu ciclo sem agressões.
Numas dessas tardes, que você deseja não querer fazer nada, apenas sentar-se na sombra gostosa de uma árvore, absorver o frescor proporcionado por esta sombra e nada mais, foi que conheci o [caramelo] um gato inteiramente branco, com olhos cor de caramelo, como gosto muito de animais procurei fazer um contato, criar alguma amizade, chegamos a isto por alguns dias, conversas sem resposta de uma das partes, aos poucos a permissão de um afago, o aceitar de um pouco de ração, tudo timidamente, mas aceito.
Não sei se tudo foi providencial ou simplesmente um mero acaso, quando menos esperava este gato trouxe um dia de manhã pouco antes de colocar para ele a sua cota de ração um outro gato [o inquilino], preto como a escuridão e de olhos amarelados, arredio, desconfiado, longe de qualquer chance de amizade.
De pronto só mesmo o [caramelo] vinha para comer a sua ração, o outro ficava a observar e a chamar, chamar, como quem quer ser exclusivo, toda a atenção voltada só para ele, e isto lentamente ele ia perdendo junto ao gato branco, havíamos criado um pequeno vínculo e diariamente [caramelo] cá estava, e isto, acredito forçava ao [inquilino] a segui-lo, não que precisasse, mas estava junto a ele todas as manhãs.
E assim fomos levando cada dia na sua própria velocidade e com o passar do tempo o [inquilino] começou a aparecer sozinho para o almoço e depois para o jantar, esporadicamente o [caramelo] aparecia, como se estivesse verificando se tudo transcorria tranqüilamente, como se a ele fosse de responsabilidade trazer o outro gato para encontrar um lar, quem sabe um pouco de afeto, carinho.
E sendo assim [caramelo] literalmente desapareceu, e o [inquilino] foi se instalando, sempre desconfiado, entre o constante conflito da permissão do contato humano e a necessidade do alimento, mas estava ali comigo.
Nunca me deixou afagá-lo, raramente conseguia tocá-lo, das três ou quatro vezes que quase consegui fiquei com algum arranhão nos dedos, a conquista da amizade nem sempre é fácil.
Mas era infalível, ao abrir a porta da cozinha na parte da manhã, lá estava ele esparramado no quintal a minha espera ou senão parecia que podia ouvir o ranger da porta a quilômetros de distância, alguns minutos depois cá estava ele, e vinha miando sem parar, me dizendo, hei, estou aqui, vem mexer comigo, quero comer, tomar água.
E assim fomos criando o nosso ritual diário, o contato pela busca da amizade entre homem e animal, pouco a pouco ele foi se permitindo ao aproximar, vinha ao telhado da lavanderia comer a sua ração, tomar os seus goles de água na vasilha que havia arrumado para ele, isto já almoço e jantar.
Toda vez que colocava a sua alimentação ou dava-lhe algo para comer e ficava de costa para mim para comer, nunca de frente, como quem pedisse licença para se alimentar e eu saia deixando-o aqui, e foi numa destas vezes que voltei para a cozinha cuidar do meu almoço, e quando me volto em direção ao fogão não é que o [inquilino] havia entrado e se posicionara sentado sobre o tapete de entrada da cozinha e ali ficou por alguns minutos observando-me e aquele lugar cheio de objetos variados.
Este foi mais um de seus passos para o fortalecimento de nossa amizade, como não dizer também de toda a curiosidade que habitava nele para descobrir onde estaria [amarrando seu burro], e assim foi se chegando e chegando, após alguns dias já estava íntimo da casa, conhecia toda a cozinha, o banheiro, o corredor para os quartos e até o local que costumo ficar na parte da manhã, um pequeno escritório onde registro esta narrativa.
E o vínculo crescia, já nem precisava sair para colocar a sua ração, achando que estava na hora de alimentá-lo, ele próprio chegava perto da porta da cozinha ou no vitrô do banheiro e ficava a miar me chamando, olha, estou aqui, vim me alimentar.
Pois é, tudo na vida tem seu tempo, sua hora, seu valor e seu preço, como a sua paga, muitos devem achar que nada se aprende com um simples animal, mas quantos estão enganados, ensina-nos, sobretudo a humildade, solidariedade, generosidade, companheirismo, afetividade, respeito.
E neste contato com o [inquilino] pude reforçar estes laços de sentimento, reavaliar minha própria vida, conceitos, atitudes, o viver. Sou muito grato por esta oportunidade que me foi ofertada.
O mais triste de tudo isto é que como somos passageiros temos um tempo de existência neste planeta, e nem sempre entendemos por que se parte, como isto ocorre e da forma que acontece, mas a vida precisa prosseguir, é o ciclo, e todos nós com a vida.
Lamento que este final não seja o que realmente gostaria que fosse, meu desejo seria poder contar que o medo e a insegurança foram vencidos pelo [inquilino] e hoje se permitisse aos meus carinhos e participasse do meu dia a dia, da minha vida.
Após alguns dias sem aparecer para se alimentar e já me deixando preocupado voltou a seu refugio seguro com as forças que ainda possuía e pude vê-lo estirado no quintal, fraco, magro e procurando forças para resistir, vencer a morte com a vida.
Envenenaram meu [inquilino], como pode haver pessoa tão má! Que Deus a perdoe, não sabe o mal que fez.
Foi capaz apenas de encontrar o caminho de minha casa, o seu porto seguro e chegar até aqui, lentamente agonizar por dois dias que queria a ele algo poder fazer, ajudar, mas não me permitia chegar, tocá-lo, como se soubesse que não haveria solução. E assim foi, sofri com ele toda esta agonia, até que não havia em si mais forças para me evitar e pude me aproximar, afagar seu pelo como nunca havia feito, olhar em seus olhos e saber que ele aceitava todo o meu carinho, como se me dissesse, não tema, tudo ficará bem.
Dei-lhe algumas gotas d’água através de um conta gotas, olhamos um ao outro, novamente acariciei-o, deixei-o a descansar, respirava lento e com dificuldade, o que faltava a ele foi a minha solidariedade e afeto, minutos depois ao voltar já havia descansado meu querido [inquilino]. Infelizmente numa linda manhã de novembro, veio a falecer.