Em preto e branco (modificado)

A pedido de Louie, colocarei a redação que ganhou o terceiro lugar no concurso "O Prazer do Percurso", da Fundação Casa de Rui Barbosa, aui no recanto.

Em preto e branco

O álbum de fotografias estava como todo álbum antigo de família. Nas fotos ainda em preto e branco, porém com as meninas já adolescentes viam-se umas corezinhas, aqui e ali. O papel de fundo do álbum, que deveria manter coladas as fotos, desistiu de sua função. Envelhecido que estava, não mantinha mais a cola firme e, dessa forma, as fotos, vez em quando, samborilavam dentro de um plástico improvisado. As traças, ao contrário do papel, tinham feito seu trabalho com êxito e roído as pontas e orelhas. A cor amarelada não se soube como chegou - era tão branquinho, disse a avó, com grande dificuldade -, mas o tempo costuma deixar as coisas mais elegantes, agora ele parece de ouro... De fato, o álbum tinha um valor que se intensificava a cada segundo que passasse, não importava o amarelado do tempo, nem o descolorido das fotos ou as orelhas comidas.

O valor daquele álbum de família, assim como todos os álbuns que são preservados, ou não preservados, mas recordados em toda reunião com os netos, é muito maior do que ouro. Vale a lembrança dos tempos de moça da avó e da sua casa antiga na rua onde ainda não existiam prédios, as dificuldades do pai na luta para sustentar os filhos, o bebê que tinha nascido e caminhava, aos tropeços, com seu macacão branco e chapéu, na travessa estreita ainda conservada, em frente à praia de Botafogo, onde já se encontravam aspectos dos tempos modernos. Vale o aprendizado sobre a vida que os netos agora vão interiorizando, através de incríveis histórias e bravuras que serão contadas emocionantemente.

- Sabe que hoje eu estava caminhando na praia e encontrei uns antigos amigos dos tempos de Marinha. Um deles me perguntou por que eu saí tão cedo. Ora, foram as conseqüências, meu caro. Eu queria dar uma vida digna para minha família, queria que meus filhos estudassem nos melhores colégios, nas melhores faculdades, tivessem a melhor formação e com o salário que eu estava ganhando teria que colocá-los numa escola pública. Mas as particulares eram as melhores, apesar de existir pertinho de casa o Colégio Pedro II, um ótimo colégio acho que até hoje, do qual na prova os meninos não tinham passado. Só a Tereza conseguiu a vaga, mas preferíamos colocar todos na mesma escola. Agora, a forma como eles aproveitaram o estudo já não é problema meu.

Seus sorrisos inusitados, como a lembrar a velha época - aquela que guardava ainda muitos resquícios das novidades trazidas pela Corte portuguesa ao Rio de Janeiro - repassar as emoções de muitos tempos, como o avô que conta histórias, fixou-me longamente. Talvez por ser um avô que não cheguei a ter, pois não tínhamos o costume de conversar sobre sua vida e seu passado. Meu pai disse que vovô era grande conhecedor, freqüentava muito a Biblioteca Nacional na época que morava no Rio de Janeiro, mas teve que virar caixeiro viajante, correndo através do Brasil para mostrar catálogos de produtos da empresa na qual trabalhava. Na verdade, fazia isso, disse ele, para fugir do governo de Getúlio que estava a persegui-lo por ser líder de uma greve estudantil.

Nas suas viagens ao redor do mundo seguiu-o minha avó, e juntos construíram uma família com quatro filhos, para quem ensinaram os costumes de seu sangue italiano. Dizia que ele era muito sabido, qualquer assunto de história, se estivesse ainda vivo, me explicaria. Mas nunca explicou, porque nunca nos falamos muito.

Porém, lembro com muita nitidez da sua voz ao telefone - Oi, Gigi! - meio rouca, puxada, voz de gordo. Era o vovô Gordo e, nas poucas vezes em que fui à sua casa, em Laranjeiras, visitá-lo, lembro-me de que gostava de pular em cima de sua barriga, comer pizza que ele próprio fazia e tomar água de coco dos coqueiros do seu jardim, um lindo e enorme jardim ao redor de uma casa alta, com cômodos muito grandes. Não sei se eu que era pequena demais na época e os quartos cresciam de tamanho, mas a casa era realmente imensa para mim. O teto da sala era todo trabalhado, com detalhes de uma arquitetura que não se encontra mais nas construções de hoje; também eram vistas essas curvas esculturais nas janelas e, nas varandas, as grades não eram retas, mas desenhadas, o que aviva-me a memória sempre que passo em frente às casas coloniais dessa redondeza.

Foi essa lembrança que eu cultivei, timidamente, ao conversar com o Senhor Paulo. Essa mesma fala, dos saberes de história, foi a que Paulinho, o filho do meio, me disse, interrompendo, oportunamente, uma das suas explicações sobre uma aquarela com a paisagem do Rio de janeiro, no século XVIII, de Thomas Ender, um dos artistas e cientistas europeus que vieram ao Brasil na Missão Austríaca junto com a princesa Leopoldina.

Com uma risada, o avô do meu namorado me contou sobre o tempo em que se formou.

- Veja bem, eu fui criado pela minha irmã mais velha. Por isso era muito solitário. Mas solitário é diferente de solidão, eu era apenas solitário, entende? Com quinze anos, então, fui estudar na Escola Naval, num internato e, com dezenove, já estava formado. O meu superior tinha me deixado no comando de um navio com cento e dezesseis tripulantes, olhe, eu com dezenove anos. - e ria, abrindo um sorriso tão verdadeiro quanto o seu passado. - Tomando conta de um navio. Acabado de me formar. - suspirava, navegando em seus próprios pensamentos - E hoje me sinto tão velho que, às vezes, penso ter composto a Real Academia dos Guardas Marinha.

No álbum, não tinha fotos de sua formatura, apenas da casinha em Botafogo - lugar ainda naquela época antigo, na mesma rua de casas conservadas em que ficava a antiga casa da avó, onde Seu Paulo foi morar quando casou-se - das crianças, que eram cinco, pequenas, e do casamento das filhas. Porém, numa caixa que Dona Leda abrira pela ocasião, em meio a muitas outras fotos mais pretas e brancas, estava uma dele com a farda bem passada e o rosto liso, sempre os mesmos óculos perdurando no nariz, e uma postura de, agora, comandante da Marinha. Na verdade, jamais gostou muito de ser da Marinha. Tinha raiva por passar Natais tendo que conter revoltas de comunistas insatisfeitos com o governo ditatorial, em vez de estar sentado à mesa com sua mulher e filhos a comer a ceia. Dona Leda, nessa época, muito religiosa, sempre cumprindo seus deveres como cristã, claro que teriam de ir à missa de Natal na Igreja Católica. Porém, depois da morte de uma amiga muito próxima, ela deixou de acreditar.

- Mas você não acredita nem em Deus? - perguntou Zaine, namorada de Rodrigo, um dos netos, ao fim do almoço.

- Às vezes sim, às vezes não. É o que acontece quando a esperança de uma pessoa vai embora, correndo. Talvez nem a esperança, mas a vontade de viver, a alegria por pertencer ao mundo.

- Porém - disse Paulinho, o filho do meio - ninguém pede para descer do céu.

- No mesmo dia em que Leda teve o derrame, essa amiga dela morreu. Elas eram amigas desde o maternal e vizinhas de muro, tanto que minha mulher foi madrinha de um dos seus filhos. Os dois, até hoje, são muito ligados a ela. Sempre telefonam para saber como vai e, de vez em quando, aparecem aqui. São laços que foram cultivados desde muito tempo, amizades fortes que atravessam gerações. Eu não contei de início para ela. Esteve durante um tempo em coma e, quando acordou, não conseguia falar direito. Esperei recuperar a fala para poder dizer. Foi quase como um segundo coma.

Não riu, nessa hora, o Senhor Paulo. Nem todas as lembranças são felizes, dignas do seu sorriso. Por causa desse derrame, Dona Leda perdeu o movimento de uma parte do corpo... e uma parte da alma. Quem não perderia? Essa parte fora embora com sua alegria de viver, a magia com que sempre regeu a casa e os filhos, a esperança, se for essa a virtude, de continuar bem. Contudo, bem vendo, ela conseguiu dar a volta por cima de uma etapa que seria a sua morte lenta, pois sua magia voltou, mesmo que com menos intensidade do que antes, mas trazendo junto um sorriso que se pode facilmente ver em seu rosto, a qualquer hora. Fala-se que a velhice traz de volta os tempos da mocidade. Talvez seja culpa, e uma bela culpa, dos álbuns de fotografia.

- Eu conheci a Leda muito jovem. No início o pai dela não gostava de mim, imagine! Um moleque, que ainda por cima jogava futebol, - enfatizava essa parte - só podia ser ordinário. Era muito engraçado, a avó rezava, todo dia, um terço inteiro para eu desaparecer da vista dela. No entanto, nos casamos, tivemos cinco filhos e hoje está todo mundo ai, já crescido, já quase velho também.

Giovanna Carloni
Enviado por Giovanna Carloni em 06/08/2008
Reeditado em 06/08/2008
Código do texto: T1116438
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