Barril de Pólvora - Parte I

"Vou contar uma história que aconteceu de verdade e que eu inventei agorinha” (Jards Macalé,“O Amuleto de Ogum” 1975)

Ninguém mais se lembrava de quando havíamos comido pela última vez. Foram quase quatro dias de fritação. E faltavam somente mais dois tiros. O cristal já estava no fim. Logo iria começar a rebornóia. Em sua última carreira, Walter Pesadelo, que tinha ficado o tempo todo num revezamento frenético entre lâmpadas e canoas de papel alumínio, sentiu uma pontada na nuca.

A maratona de cristal havia começado na quinta-feira, logo depois de eu ter me encontrado com Pesadelo na saída da fábrica. Eram oito e meia da noite. Saímos dali direto para a estação de Shinjohara, onde cruzamos um iraniano que nos passou quatro sacas de cristal por trezentos dólares. Comprei quatro litros de rum numa conveniência 24 horas e fomos para o apartamento do China, no Iwata Danchi, em Toyohashi.

Comecei a empreitada numa lâmpada quebrada, depois, lá pelo segundo dia sem colocar a cara pra fora, comecei a cheirar e não parei mais. Fiquei uma semana sem aparecer na fábrica. Naquele tempo, já nem me lembrava há quantos anos repetia essa mesma cruzada: maconha, rum, cocaína, saquê, cristal. As coisas estavam cada vez mais estranhas. E minha reputação andava abaixo de rabo de porco. Pesadelo costumava dizer que o rum era cubano. Só que, pelo tamanho da ressaca, aquilo não passava de água, gelo e gasolina. Mas o excesso era tão grande que ninguém sentia gosto de nada.

Janeiro de 2008. Lei do cão. Inverno, assassino. A comunidade brasileira no Japão assistia as comemorações pelos cem anos de imigração japonesa. Jornais, TVs, sites e revistas davam destaque aos festejos. E o que já era moda, virou uma epidemia. A culinária, a tecnologia, as curiosidades exóticas, os centros urbanos, os templos, os pontos turísticos, o Monte Fuji. Durante um ano, só se ouviam coisas boas, lindas e belas sobre o Japão. As atenções estavam voltadas somente para o espetáculo visual proporcionado por um país moderno, rico, pitoresco. Um verdadeiro exemplo de gestão pública.

Mas, em meio a tanta festa, sempre tive a impressão de que faltava alguma coisa. Pois quase nada foi dito sobre as conseqüências ocasionadas por esse movimento migratório que acaba de completar cem anos. Será que os problemas enfrentados pelos japoneses, em 1908, não estariam se repetindo agora, com os brasileiros, em 2008? Discriminação racial, exploração da mão-de-obra, falta de assistência médica, jurídica, consular. Nenhuma palavra também sobre a educação capenga que os jovens nikkeys são obrigados a engolir, seco. Por falta de opção, milhares de crianças brasileiras têm que freqüentar escolas medíocres, com professores improvisados, onde estudantes de vários níveis se misturam numa mesma sala.

Anualmente, os bancos Bradesco, Banco do Brasil, Itaú e ABN, embolsam milhões de dólares em juros e taxas de remessa, apesar disso, o que eles fazem em benefício da comunidade brasileira no Japão, além de organizar coquetéis de luxo para encher a pança de babacas, papagaios, chumbregueiros, dondocas e puxa-sacos? E o dinheiro doado por centenas de empresários nipo-brasileiros para bancar uma suposta “festa da imigração”? Nem sinal.

Ao mesmo tempo, parte considerável dos veículos de comunicação dedica um espaço cada vez mais ínfimo aos filhos, netos e bisnetos de japoneses que fizeram o caminho inverso. E, aqueles que se arriscam em algum tipo de cobertura, mostram apenas o que já se sabe: fábricas (através de um olhar estereotipado), lojas de produtos brasileiros nos lugares mais remotos do Japão, operários bem sucedidos e, principalmente, a dificuldade na adaptação (que sempre recebeu uma abordagem folclórica, beirando o ridículo. Como se fosse um processo positivo).

Preguiça por parte da imprensa? Falta de informação? Ou uma tentativa covarde de esconder a comunidade brasileira no Japão em sua face mais aguda: Drogas, assassinatos, adultérios, alucinações, loucos, alcoólatras, viciados em pachinko, desemprego em massa. Frustração. Abandono. Falta de perspectiva.

Um barril de pólvora, prestes a explodir.

UM

Dois anos numa fábrica em Kosai - a cidade mais fedorenta do Japão - é tempo suficiente para transformar qualquer pessoa num suicida iminente. Aqui, ninguém escapa de disputar uma vaga no time de personalidades que faz a fama da província de Shizuoka como uma das sucursais preferidas do capeta. Após seis meses de inverno, tenho certeza: O inferno é branco. E o diabo, tem olhos puxados.

Às vezes, a rajada de vento é tão forte que o cortiço oferecido pelos sangue-sugas das empreiteiras parece que vai desmoronar a qualquer momento. De madrugada, a explosão de vento na parede de papelão que protege o alojamento é a pior das torturas. Num impacto forte o suficiente para enlouquecer até os mais vacinados. Certa vez, em pleno janeiro, quando os termômetros não conhecem outro número que não seja o zero, vi um operário sofrer uma crise nervosa às quatro horas da manhã e sair aos gritos, completamente nu, na rua deserta, coberta de neve, desafiando Deus e o Diabo.

A maioria dos pesadelos que vizualizei em Kosai, eram quase sempre precedidos pelo caminho de bicicleta até o Inferno Hamanako, onde eu trabalhava, numa fábrica de auto-peças que abriga quase mil brasileiros. O trajeto, que poderia ser feito em até cinco minutos, chega a levar quase trinta. Pois o vento que rasga a face– fazendo congelar dos pés a cabeça – é capaz de aniquilar qualquer tipo de esperança, qualquer tipo de sonho, qualquer tipo de alegria, qualquer tipo de sentimento, qualquer tipo de amor próprio que uma pessoa ainda conserva dentro de si.

Quando o diabo aparece, liderando uma nevasca, é preciso lhe morder as orelhas, chupar lhe o sangue, arrancar lhe as tripas. Isso, durante seis meses. Quem passa uma temporada de inverno no Japão, corre o risco de se esquecer quem é, quem foi, de onde veio e para onde vai, mas, principalmente, se estará vivo quando vier o próximo, branco, pálido e coberto de neve: O inferno.

Para quem vive no exílio, o efeito de uma dor tem o dobro da potência normal. O peso das coisas, sobretudo as perdas, parece excessivamente maior. Conheço poucas pessoas que não sofreram de forma agressiva com uma perda sofrida fora do país de origem. No caso do Japão, a convivência dentro de uma fábrica é quase como uma guerra não declarada. Geralmente, as piores notícias são as melhores, pois a desgraça alheia gera meses de assunto. A torcida é para que cada operário recém chegado à fábrica (o famoso soldado raso), tenha o mesmo fim da maioria: frustração, raiva, mesquinharia. Aqui, ninguém confia em ninguém, mas, frente a frente, são todos amigos íntimos. É preciso entrar no jogo. Os fracassados, conscientes do fracasso, são os que vivem mais tempo numa fábrica. Quem chega limpo, fatalmente acaba se sujando. É o instinto de sobrevivência.

Poucas vezes ouvi algum operário dizer que buscou refúgio no Japão apenas pelo simples prazer de uma aventura. Em geral, a maioria deles já chega aqui com cicatrizes profundas, obscuras, incuráveis. São muitas as histórias de perdas, falências, problemas familiares, fugas, dívidas, ilusões. Todo esse histórico – principal responsável pela vinda dos brasileiros ao Japão - é automaticamente escondido ainda no aeroporto. Muitas vezes, após o primeiro ano de prisão numa fábrica, os mais seqüelados começam a perder todo o parâmetro que um dia tiveram, ou, criam outros, ainda piores. A guerra, é contra um inimigo invisível. E, o melhor a fazer, é não fazer nada. Pois mesmo aqueles que se esforçam para ter uma convivência amigável, sincera e silenciosa, acabam tendo que lidar com as milhares de balas perdidas no tiroteio.

Não vejo diferença nenhuma entre uma fábrica e uma prisão. Pois sempre foi dito que o objetivo original da cadeia é reabilitar o cidadão antes do retorno dele à sociedade, mas, todo mundo sabe que isso não tem (e nunca teve) chance nenhuma de acontecer. Ainda mais se tratando do sistema penitenciário brasileiro. Numa fábrica é a mesma coisa. Os loucos ficam cada vez mais loucos, os mentirosos cada vez mais mentirosos, os ladrões muito mais ladrões, os alcoólatras muito mais alcoólatras, os drogados muito mais drogados, os depressivos muito mais depressivos. Ninguém se regenera. As chances são nulas, limitadas. O ar está impregnado. As nuvens nunca estiveram tão negras. Rancor, ódio, negativismo. Se Deus existe, com certeza ele passou longe de uma fábrica. E, se o Diabo existe, foi dele a benção que carimbou o passaporte de 350 mil brasileiros que hoje vivem nas senzalas high-tech dos samurais engravatados do século XXI.

DOIS (Natsu = Verão)

O La Barca, em Toyohashi, é o paraíso das filipinas. Um cenário muito bem montado onde se misturam salary-men, shachoos (presidentes de empresas), mafiosos e operários. Território livre na exploração derradeira de alguns otários que freqüentam a barca. Basta prestar atenção na cara de satisfação das vagabundas quando um trouxa mostra a carteira entuchada com notas de dez mil. As filipinas nunca estavam sozinhas, sempre existia algum leão-de-chácara para cagüetar aquelas que se aventurassem numa trip de sexo grátis. É claro que em outras partes do Japão muitas delas levam uma rotina independente além da vida noturna. Mas não no La Barca, onde as únicas que sobravam para o resto da matilha esfarrapada de cães sarnentos - como eu - eram as muito feias, ou, muito velhas.

Naquela noite, como sempre, a concorrência estava agressiva: um baralho de putas marcadas. Eram dez caras para cada filipina. Sendo assim, a solução foi encarar uma do banco de reservas - gorda, oxigenada, sinistra - que dançava La Gasolina como se o mundo fosse acabar antes da música. Além da feiúra (quase indecente), da pele oleosa, e do cabelo ensebado, o que mais me chamou atenção foi o vestido, um azul prussiano bem colado que dava a mesma sensação de quando a gente vê um jornal velho embrulhado numa peça de coxão-mole.

Arrastei a gorda para um canto, perto do banheiro. E, sob a escuridão da maloca, começamos a nos lamber. Saímos da Barca num estado completamente deplorável, além da conta. A última coisa de que ainda me lembro é de um táxi que nos levou até o apartamento dela, perto da parada do bonde, em Undokoen-mae. No dia seguinte, olhei a cara da gorda com a luz do sol refletindo pela janela e não acreditei. Era muito mais feia do que eu pensava. Para completar, caiu a ficha de que era segunda-feira, e eu estava desempregado. Arrumei minha mochila, bebi um resto de iougurte aberto na geladeira e fui para estação de trem enquanto a filipina dormia, entregue.

Desci em Kosai, e fui até a casa de um amigo, perguntei se poderia ficar até que arrumasse um trampo. Ele não gostou muito da idéia, mas, como não tinha opção - já que me devia uma grana -, acabou concordando. Na mesa, entre embalagens de bentô (marmita típica japonesa) com restos de comida apodrecida, achei uma revista em português e listei algumas empreiteiras.

Minha primeira tentativa foi numa fábrica de auto-peças. A entrevista, retardada. Os testes, ridículos. Um deles: "Dividir 52 cartas de baralho em quatro bandejas. Você tem dois minutos". Depois, uma entrevista com o tantousha, uma espécie de atravessador das empreiteiras. Fiquei quase um mês à espera de uma vaga. No apartamento, mais quatro operários dividiam um espaço ocupável para dois. Para economizar (e lucrar sob o preço do aluguel), as empreiteiras amontoavam os solteiros num só lugar. Eram dois quartos. Beto Vaqueiro, 58, ocupava um deles sozinho. Tinha direito, pois morava lá há quase dez anos. O resto, dividia o mesmo quarto. Cheguei em pleno verão, vácuo quente de agosto. Vaqueiro controlava o ar-condicionado. Nós, um ventilador de chão. Vaqueiro era foda. Ninguém podia ir ao banheiro enquanto ele dormia. Dez anos cumprindo pena numa fábrica o transformaram num dinheirista rabujento. Juntava dinheiro neuroticamente. Queria comprar um sítio no Rio Grande do Sul. Trabalhava sete dias por semana. Doze horas por dia. Nunca tirava férias. Tinha apenas dois vícios, os programas Globo Rural que alugava pirateado numa loja de produtos brasileiros e as corridas de F1. Faltava ao trabalho apenas um domingo por ano, para assistir o Grande Prêmio de Suzuka, em Mie. Sempre voltava com um boné, um carrinho em miniatura e o casaco da escuderia onde tivesse um piloto brasileiro correndo. Poucas vezes fui testemunha de um sorriso do vaqueiro e, em todas, o motivo era sempre o preço do iene quando baixava em relação ao dólar. Fora isso, era cara feia e reclamação o dia todo.

Além do Vaqueiro, estavam no apartamento Diogo "Santinho", 22, três anos de Japão, Ricardo "Panda", 26, um ano de pena, e Adriano "Surf", 25, quatro anos de prisão. Cada um com seu estilo.

Santinho juntava dinheiro para fazer publicidade. Gostava de rock inglês e fazia compras de roupa semanalmente. Dizia que quando fosse rico teria um apartamento somente para colocar seus armários. Toda semana, voltava para casa com a sacola cheia. Tênis Nike, Adidas, chapéus, calças, bonés e camisetas. Tinha roupa comprada há três anos sem nunca ter sido usada. Já cheguei a ver Santinho numa loja de Nagoya com cinco chapéus na mão. Gostava de cinema moderno. Matrix. Hollywood. Efeitos especiais.

O mais calado de todos era Panda. Amava carros velozes e mulheres gordinhas. "Um dia ainda volto de Ferrari pra minha cidade", repetia, como um mantra. Panda era de Presidente Prudente (SP), e mandava a maior parte do salário para a mãe investir numa sobaria na cidade. Namorava Roberta, operária na mesma fábrica, viciada em sorvete. Matava um litro de Hagën-Daz no almoço e outro no jantar. "Gosto mais das gordinhas porque elas sempre tem comida em casa". Panda não desperdiçava nada. Qualquer coisa que se abria na frente dele era gol. Vocabulário predileto: tecno, carros e gordinhas.

Na contra-mão, Adriano "Surf". Saia do expediente noturno numa fábrica de auto-peças direto para o pico. As praias de Kosai e Toyohashi são o destino preferido dos surfistas brasileiros que moram na região de Tokai. Adriano pensava em onda o dia inteiro. Antes de chegar à praia, passava no apartamento para ver pela internet qual delas estava com a melhor ondulação. Shiomi. Long Beach. Arai. Praia da Bica. Conhecia todas. Sabia descrever cada tipo de onda. Nunca passava o inverno no Japão. Cada ano era um pico diferente. Austrália. Nova Zelândia. Indonésia. Ilhas Fiji. Como leitura diária, revista Fluir. Viajava. Queria conhecer o mundo com sua prancha de surf. E só. "Quem sabe um dia eu compro uma pousada na minha cidade, Ilha Comprida, o pico mais doido do litoral sul de sampa".

Dentro do apartamento, eu tinha fama de mané. Meu apelido, "Da lua". Ninguém acreditava nas minhas histórias de jornalismo. Achavam que eu tinha sérios problemas psicológicos. Em pouco mais de um ano, passei de jornalista promissor a comprador de cerveja. "Ô Da lua. Vai lá na conveniência buscar uma cerva pra nóis".

Meu primeiro emprego pós-jornalista foi numa fábrica da Suzuki. Em duas semanas de trabalho havia envelhecido pelo menos uns dez anos. Aos 26, nunca tive problemas de coluna, mas foram necessários apenas cinco dias carregando eixos de carro para que ela nunca mais fosse a mesma. A primeira fase da transição começa pelos pés. Prego na artéria. O instinto mais rápido é fugir. Não tem por onde. Após a semana inicial, as dores no pé dão um tempo. Aí entra em cena outro drama: a coluna. Insuportável. Punhalada. Na linha de produção, meu cargo se resumia em tornear o eixo, que pesava cinco quilos. No fim do dia, parecia que pesava vinte. Cada eixo deveria ser torneado em oito máquinas, eu tinha um minuto e meio. E como os tornos ficavam somente num lado, era obrigatório usar o braço direito. Sendo assim, ao final do dia, o corpo pesava para um lado só. Dores indescrítiveis.

Caminhar de volta para casa se torna uma missão quase impossível. Consegui levar até a segunda semana, até que, numa madrugada de sexta-feira, um dos chefes (Carnicinha), começou a me tratar como escravo do Rei. Carnicinha era tão calhorda que quando algum operário pedia luvas de borracha para segurar a peça, fervendo, ele reclamava. Mais um pouco e alguém socava o eixo na lata dele. Além do cheiro de carniça (por isso o apelido), o hálito de Carnicinha tinha um aroma semelhante ao de um rato morto em chão de cozinha alagada. Sem falar na cara fechada, marrenta. Constante. Comportamento comum na maioria dos chefes japoneses. Estrangeiros são quase sempre tratados como ignorantes, sub-raça, inúteis.

Ao final do turno de doze horas, o corpo está totalmente acabado. Qualquer vontade de fazer alguma coisa extra, produzir, elaborar, colocar a criatividade em prática se torna impossível. Até o banho fica difícil. O único desejo é cair em sono profundo. Nem a fome bate direito. O andar é de bêbado, cambaleante. Trabalhar em fábrica é, talvez, uma das invenções mais massacrantes já inventadas. Operários destruídos, desdentados, sorriso negro, fracos. Fio de uma vitalidade sem nexo. Temporada perdida. Criatividade zero. Sangue nos olhos e alma de barata. Valor humano reduzido a zero. "A guerra é dentro da gente". A luta, é contra os ponteiros do relógio. Muito Difícil. Poucos resistem.

Fiquei três semanas na Suzuki. Trinta anos em um. O contorno em volta dos meus olhos parecia um buraco, negro e profundo. A coluna, completamente fodida, denunciava o grau máximo da tolerância corporal. E mesmo sem um puto no bolso, numa madrugada de segunda-feira, disse ao chefe que precisava ir ao banheiro, peguei minhas coisas no armário e nunca mais voltei. Antes de sair, peguei uma lata de graxa e joguei na estante onde a chefia guardava os índices de produção.

Sem emprego, fiquei duas semanas fritando no apartamento. A penúria era tão severa que eu não perdoava nem os restos de cerveja que a turma do surf jogava fora. Era tanto lixo que transformaram até a privada em tambor de reciclagem. Às vezes, a vontade de fumar me deixava com aspecto de retirante, circulando entre restos, à procura de alguma bituca mais gorda.

E era só neguinho vacilar que eu passava a mão no maço inteiro.

Mas quando já estavam todos fora de órbita, largados pelos cantos da quitinete, é que eu fazia uma investida para recolher os canudos de papel alumínio que eles usavam para fumar cristal.

Eu abria os canudos, raspava os restos de “porcaria” que ficavam grudados, jogava numa outra canoa laminada e segurava a fumaça até sentir as primeiras estocadas no pulmão. Nos finais de semana, essa era minha única forma de arranjar alguma distração. Aos poucos, fui me tornando um vira-latas. O junkie do junkie, o lixo do lixo.

Kosai - 01 de Junho de 2008

Danilo Nuha – Começou trabalhando aos nove anos de idade como jornaleiro e balconista de bar. Foi açougueiro, limpador de fossa, descarregador de caminhão e operário em fábricas japonesas. Formou-se em jornalismo, tem 25 anos e atualmente é um jornalista desempregado que trabalha como metalúrgico no Japão.