Naquele tempo...
Naquele tempo era tudo muito diferente. A cidade ainda era pequena e as pessoas cultivavam um pouco de inocência e humildade para algumas coisas. Por isso tudo, eu não poderia ser diferente. Tinha muita simplicidade mas gostava de alguns luxos que a cidade oferecia e que graças ao meu marido, que Deus o tenha, podia pagar. A viuvez me acompanhava há quase dez anos e, sinceramente, só fazia luto mesmo por satisfação àquela sociedade ao mesmo tempo simples e observadora, pra não dizer outra coisa... pois antes de morrer meu marido já estava distante mesmo. Já havia me acostumado com a solidão, mas como era mulher decente permanecia num casamento de fachada. Todos elogiavam. Mas entre as quatro paredes, só nós sabíamos a fórmula para tantos anos juntos. Simples, conversávamos apenas o essencial. No fundo eu sabia que deveria ser muito grata a ele por prover a casa e eu nunca precisar sair para trabalhar fora. Afinal, não era rico mas tínhamos nossas regalias de cidade pequena.
Num dia qualquer decidi deixar a viuvez. Quem quisesse falar que o fizesse. Agora era a minha vez de viver. Já tinha curtido quase dez anos de luto com idas e vindas a mercadinhos, igreja e farmácia, padaria, banca de jornais. Agora era a hora de algo novo. E como diversão em cidade pequena, ainda mais nos anos idos, era coisa inocente, eu estava mais do que decidida. Semana passada tinha visto um cartaz do Baile da Primavera que acontecia todos os anos, no último sábado do mês de setembro. Faltavam apenas duas semanas mas resolvi ir mesmo assim. O que mais me chateou foi não saber o que era pior: ir sozinha ou acompanhada (se acompanhante tivesse). Mas sabe de uma coisa? Iria sozinha. Mesmo que fosse para ir olhar as pessoas dançando, as novidades da moda em vestidos e sapatos, cortes e penteados, enfim. Era o meu momento, então, o resto não importava.
Há muito tinha visto um belíssimo modelo de vestido numa revista. Pena que a loja que o oferecia ficava na cidade grande, muito longe. Até daria tempo de ir comprar, mas não valia a pena... resolvi mandar fazer um igual, talvez de outra cor. Na revista, azul marinho. No meu anseio, dourado... Comecei a busca pela costureira. Essa seria a parte mais difícil. Bastaria fechar o “contrato” com qualquer uma que a cidade toda estaria sabendo que eu estava confeccionando um vestido. Mas decidi e fui. Chegando na Dona Adelaide, senhora muito faladeira e cheia de razões pelos problemas com filhos e marido, fui direta ao assunto.
_ Dona Adelaide, quero saber se a senhora apronta esse vestido pra mim em duas semanas.
Foi um Deus nos acuda. Dona Alelaide desembestou a falar. E olha que medi e contei todas as palavras que iria dizer milhares de vezes antes para evitar esse ocorrido. Mas não deu certo, tudo bem. Depois de diversas reclamações de falta de tecido, tempo e aviamentos e excessos de dores, chateações do marido e filhos aceitou.
_ Esse aí é azul marinho, né? Mas o da senhora vai ser preto né?
_ Não. Dourado.
Se naquele tempo fosse fácil como hoje, eu juro que teria tirado uma fotografia da cara da malvada da costureira quando eu confirmei para ela que meu luto tinha acabado. No fundo tenho certeza que a língua de Dona Adelaide chega chamuscava para perguntar se o vestido era para o baile, mas sei também que ela deixaria essa pergunta para uma ocasião mais propícia, tipo quando eu estivesse na porta, já me despedindo. Dito e feito:
_ É para o Baile da Primavera?
Só balancei a cabeça em sinal afirmativo e fui embora sem olhar para trás. Podia sentir os olhinhos dela loucos de curiosidade e a cabeça repleta de milhares de perguntas para me fazer. Um prazer vigoroso me percorreu a espinha por tê-la deixado curiosa. E me deu forças para agüentar duas semanas de olhares curiosos e até perguntas infundadas só para saber a verdade.
E foi assim mesmo. Ainda fui umas cinco vezes na Dona Adelaide provar o vestido. Em uma das vezes, ela ainda perguntou tão baixinho que eu quase fingi que não escutei:
_ Dourado mesmo?
_ Sim.
E estava ficando lindo o danado do vestido. O que aquela costureira tinha de chata tinha também de mão boa com roupas. E olha que não fazia tantas, pois cobrava caro e ocasiões como esta para se usar esse tipo de roupa eram raras. Eu diria que estava no sangue daquela mulher.
Seu Genaro era dono de uma lojinha que vendia de tudo um pouco. Ele percorria as cidades próximas em busca das coisas para vender por lá. Eu sabia que ele não teria um sapato como eu imaginei, então resolvi encomendar. Graças ao bom Deus, naquela cidade ainda viviam algumas (uma ou duas) pessoas de atitudes discretas e Seu Genaro era uma dessas pessoas. Expliquei direitinho como eu queria o meu sapato e passados alguns dias, já estava com a encomenda por lá. Como o destino é uma coisa que a gente não escolhe, passou pela loja Dona Lívia, colega de ministério da igreja, na hora que estava pegando o famoso sapato. Famoso sim, pois por isso, no outro dia, todo mundo sabia que sapato bonito eu havia encomendado com o Seu Genaro.
Seu Genaro, homem sério, só embrulhou e recebeu o dinheiro. Mas quando eu me virei para ir embora escuto aquele grito de gralha:
_ Não sabia que agora o senhor vendia coisa tão bonita e chique Seu Genaro.
_ Bom dia, Lívia! A tarde deixo na secretaria da igreja os paninhos que levei pra lavar. Falei.
_ Eu não estarei lá. Vou provar o vestido que mandei fazer pro Baile da Primavera, mas pode deixar com a Cíntia....
Afirmei com a cabeça e saí pois sabia que aquelas duas palavras “Baile da Primavera” poderiam render horas de conversa. Foram propositais. Mas acenei para não parecer, além de tudo, deseducada.
Tudo pronto, vestido, sapatos, acessórios, cabelo penteado, perfume suave. A entrada no salão deveria ser o mais discreta possível. E foi. Consegui entrar atrás de um casal de jovens desconhecido. Devem ser novos na cidade. Resolvi acompanhá-los e quem sabe sentar na mesma mesa que eles? Até agora tudo certo. Parecia até que eu estava com eles. Conversavam amigavelmente sem parar. Parecia até que não tinham notado a minha presença ou então sua conversa era mais importante.
Fiquei um bom tempo sentada ouvindo a música, observando os convidados, a maioria, conhecidos. Muitos vinham de cidades próximas, afinal, o Baile da Primavera tinha fama nas redondezas. Sentia alguns olhares em minha direção e depois para a cadeira ao lado, como se procurassem meu acompanhante. Algumas conhecidas ainda acenavam com um sorrisinho no canto dos lábios. Eu retribuía a todos com um sorriso largo. Dona Mirtes era daquelas senhoras que acreditava que o luto deveria ser uma característica pessoal de uma viúva para o resto de sua vida. Por isso, ao passar por minha mesa, de braço dado com seu marido, arrebitou o nariz e fitou o lustre no alto do salão. E eu que pensava que esse tipo de reação iria me ferir enganei-me profundamente. Nada me incomodava, ao contrário, me sentia enlevada naquela atmosfera de música, coquetéis e croquetes servidos por garçons muito bem apessoados e educados.
O casal a minha frente voltou. Tinham ido tomar um ar ou algo mais na varanda. O homem pediu licença e saiu. Nessa hora que me certifiquei que haviam me visto. A moça ficou sozinha e me olhava. Tomou coragem e perguntou:
_ A senhora está sozinha?
Bem, até o momento parecia que sim. Mas afirmei com a cabeça, pois ela parecia tímida, mas hospitaleira. Aproximou seu lindo rosto do meu, onde pude ver o meu reflexo no brilho dos seus olhinhos (ficou bonito meu vestido) e falou:
_ Nós estamos em lua-de-mel. Viajamos de carro e quando vimos o cartaz do Baile, resolvemos ficar alguns dias.
Apenas sorri.
_ A senhora vem sempre ?
_ É a primeira vez.
Nesse momento senti que pela primeira vez ela caiu na real que talvez eu fosse uma mulher sozinha. Mas não me importei, virei para o outro lado e contemplei alguns casais dançando. Em seguida o marido dela chegou e a pegou para dançar.
Estranhei a nossa mesa permanecer vazia até aquele momento. Havia três lugares vazios, afinal eles vendiam os ingressos por casal, então, acreditei que um lugar talvez ficasse vago e outro casal chegasse.
Mais alguns minutos passaram e chegou Seu Florindo e Dona Amélia, donos do Hotel Central, um hotel antigo da cidade, talvez o pioneiro. Estavam muito bem arrumados. Pena que a cor do vestido de Dona Amélia não combinava com o seu tom de pele. Talvez algo mais forte lhe caísse melhor, mas tudo bem. Cumprimentaram-me gentilmente. Eram pessoas muito finas. Dona Amélia não teve filhos, assim como eu. Mas Florindo tinha um do seu primeiro casamento, que morava com eles. Talvez o rapaz chegasse para ocupar a cadeira vazia ao meu lado.
Mas o tempo foi passando e o rapaz não chegou. Já perto da meia-noite, escuto um “com licença” ao meu lado e vejo Seu Genaro sentar na cadeira até então vazia, reservada em meus pensamentos para o filho de Seu Florindo.
Não sei explicar bem porque mas nesse momento fiquei encabulada. Não tinha passado pela minha cabeça que alguém sentaria ao meu lado, quanto mais um homem sozinho, solteiro. Mas deveria deixar isso para lá também.
Ninguém mais conversava na mesa. Talvez porque a música estivesse um pouco mais alta agora. O casal de jovens saía e voltava para dançar. Seu Florindo e Dona Amélia não trocavam palavras e também não saíam para dançar. Eu é que cantarolava baixinho alguma música, de vez em quando.
_ Gostou do sapato?
_ Como?
Que susto! Depois de tanto silêncio Seu Genaro virar para mim e perguntar se gostei do sapato foi uma surpresa. Acho que até aquele momento nem me lembrava de sapato, quanto mais que fora ele quem o vendera para mim.
_ Gostei sim.
Achei a pergunta meio seca e grosseira mas respondi. Como eu deveria esperar que ele me perguntasse?
Mais um longo tempo passou sem que ninguém falasse nada. Apenas o casal de jovens começou a se animar e trocar beijos e abraços apaixonados. Tinham direito, afinal, estavam em lua de mel. Seu Florindo e Dona Amélia enfim resolveram levantar para dançar. O casal agora ria alto. Eu já estava quase tomando a iniciativa de ir embora com eles, quando Seu Genaro me surpreende novamente:
_ Quando precisar de mais alguma outra coisa, por favor, queira contar comigo.
Dessa vez ele foi mais simpático. Fiquei pensando algum tempo no que ele acabara de falar para responder alguma coisa. Não sabia o que responder. Não tinha intenção nenhuma de comprar um sapato novo ou algo assim tão cedo. Quando percebi que já fazia um tempo deseducado entre a pergunta dele e a minha falta de resposta, apenas falei:
_ Obrigada.
O jovem casal levantou-se, pediu licença e se retirou do salão. Realmente, para quem estava em lua-de-mel, o Baile já estava começando a tornar-se tedioso. Eu já estava quase partindo atrás deles, assim como cheguei, quando escuto atrás de mim a voz estridente de Dona Lívia:
_ Boa noite, boa noite, boa noite. Estão gostando do Baile?
Como assim? Por que ela perguntou para nós dois como se estivéssemos juntos, ou como se fossemos uma só pessoa? Ainda olhei a volta para ver se Seu Florindo e Dona Amélia estavam na mesa mas ... não. Era para nós dois mesmo: eu e Seu Genaro. Numa tentativa de me desprender da minha vergonha, não respondi. Seu Genaro, discreto como sempre, fez que sim com a cabeça. Eu não respondi. Fingi que não era comigo e apenas pedi licença e levantei da mesa em direção ao banheiro.
Minhas mãos suavam frio. Tentei não me entregar àquela situação que sabia, que esperava que acontecesse. Me preparei durante duas semanas para isso e agora não poderia vacilar. Olhei no espelho do banheiro, retoquei a maquiagem, ajeitei o cabelo e a roupa e voltei para a mesa. No caminho de volta, percebi alguns olhares, inclusive o de Seu Genaro, como que desesperado a me pedir desculpas por algo que ele não tinha feito. Sentei delicadamente no meu lugar, virei para o lado dele, sem olhar nos seus olhos e perguntei:
_ Quer dançar?