Rio memória

Saudade é uma palavra que só se traduz em versos. Na poesia a saudade é capaz de transpor o tempo e o espaço.

Lia saindo da sombra do interior da Candelária, ofusca-se com o sol em seus olhos. Debaixo de um azul imaculado, o calor de Fevereiro ardia a capital fluminense.

O centro do Rio de Janeiro era novo de novo. As antigas ruas de paralelepípedos, os postes de iluminação à gás, paredes e monumentos sem as marcas de tribos urbanas. Todas as construções eram de uma novidade saudosa. Mergulhado no silêncio que pairava nas ruas próximas a catedral, ninguém a transitar por lá. Nem o canto dos beneditinos se ouvia do Mosteiro de São Bento.

Abraçando o sol, Lia atravessa a praça. Com um novo frescor na pele, segue numa lenta caminhada pela Rua Primeiro de Março. Com todas as janelas e portas fechadas a sua volta, ela contemplava o vazio de uma via sem volta.

Aos poucos, aflorando do silêncio, ela percebe uma música cadenciada. Estava próxima à Rua do Ouvidor. A música se intensificava e junto com ela uma vibração de reconhecimento fazia seu coração se animar. Uma vontade de ver de novo, de dançar de novo, de brincar de novo.

A cidade na esquina da Rua do Ouvidor, antes silenciosa e vazia, abre-se numa apoteose. Vindos do Paço uma turba alegre vai transmudando o silêncio em festa. As janelas antes fechadas, abrem-se saudando a música que passa na rua – seria o choro ou samba ? Das janelas escancaradas rostos mascarados aparecem. Era o rancho carnavalesco.

Lia revive as alegrias de tempos passados e seu coração lhe aperta o peito. Uma multidão numa profusão de felicidade descendo a rua do Ouvidor contagiava tudo ao redor. Eram muitos rostos - muitos conhecidos, muitos anônimos. Da música que ouvia reconheceu Ernesto Joaquim cantando “Pelo Telefone” e “Donga”.

Nobres, plebeus e índios Tamoios se misturavam. Lia vê no meio da multidão sombras do passado - Men de Sá acompanhando Dona Leopoldina e Dom Pedro II. O filho de Carlota Joaquina, apaixonado pela arte da fotografia, conduz uma câmera pendurada no pescoço registrando tudo numa eternidade presente.

No enquadramento da lente do Imperador, Chiquinha Gonzaga sorria cantando o “Abre Alas” ao lado de Noel Rosa. De mãos dadas com uma baiana, Cartola e Nelson Cavaquinho cantam para a mulata sambar. O Bando de Tangarás avança sem Noel que ficou para trás. Pixinguinha tocava acompanhando Coelho Neto em “Cidade Maravilhosa”. Bem atrás deles vinham Leila Diniz de abraços dados com Renato Russo instigando o povo para a revolução. Não a revolução contra franceses nem a garrafadas, mas a revolução da alegria.

O cheiro da lança perfume toma conta do ambiente. Uma chuva de confetes e serpentinas alcançavam os cabelos de Lia. Os que caíam no chão voltavam soprados pela brisa para acima dos telhados.

Cortejado por um cordão de pastorinhas vinha o profeta Gentileza distribuindo flores, sorrisos e palavras de amor. A palavra profetizada no meio do povo bendizia o amor.

Um bêbado, amparado pelo equilibrista, lutava para ficar de pé e não perder a festa. Estes dois quase derrubam Vinícius e Tom que esperavam a garota de Ipanema passar. Lia estava fascinada com o colorido das fantasias. Arlequins e pierrôs pajeavam as belas columbinas. Anjos, demônios e orixás evoluíam no meio dos foliões. Moças e rapazes passavam cantando e puxaram quem estivesse ao redor.

Com uma mão estendida para ela, Lia viu seu pai lhe sorri – “não fica aí parada, vem brincar com a gente”. O velho sambista do morro arrastada a filha para o meio da folia e juntos giravam, riam e dançavam. As janelas permaneciam abertas. De uma delas Lia viu o pernambucano Manuel Bandeira com um caderninho na mão dando testemunho do carnaval que se emoldurava a sua frente. Em outra, Machado de Assis estava mais contemplativo. Espectadores da cultura e cotidiano registrando em sua arte os costumes do carioca.

O Rio de Janeiro na saudade de Lia era a cidade da alegria. A alegria do Carnaval permanece eterna onde tempo e espaço não existem. Pessoas amadas e que há tanto tempo ela não via estavam lá também. A eterna capital do Brasil resplandecendo numa manhã de Domingo de calor e carnaval, fez Lia rejuvenescer. Sentia-se livre e feliz. Os dias tristes de doença acabaram.

Enquanto estava na Candelária orando pela sua querida cidade o coração de Lia parou. Pedia a São Sebastião que intercedesse ao Senhor piedade aos seus filhos mais carentes. Seu povo que desce das favelas para realizar o maior espetáculo do mundo na Marquês de Sapucaí é o mesmo que morre nas mãos da violência das ruas asfaltadas de hoje.

Lia, negra velha e lutadora, viveu até o último dia animada pela fé em Nossa Senhora da Penha. Desejava que sua cidade um dia acordasse num lindo dia de carnaval. Neste dia não haveriam ricos nem pobres, negros ou brancos. Haveriam só cariocas. A casa de branco era de todas as cores. Felizes e amados cantando as belezas do lugar germinou entre o mar e a montanha. De lá o Senhor de abraços abertos vela dia e noite a cidade maravilhosa.

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Texto incluso no e-book Sete por Sete – Contos e Crônicas.

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Domm Paulo
Enviado por Domm Paulo em 05/02/2008
Código do texto: T846475