VISITA (IN) DESEJADA

Acabara de acordar e antes de começar a fazer o café, ouviu a voz grave e áspera gritando lá do portão:

-Liana! Oh Liana!

Sobressaltou-se ao reconhecer a voz e fez um muxoxo de desânimo. Aquela chata faladeira de novo.

– Já vou - respondeu gritando.

Prendeu rapidamente os cabelos brancos desgrenhados com uma pequena tiara marrom, que era de plástico, mas parecia de madeira, e foi claudicando pela casa e se equilibrando da melhor maneira possível com os gastos e doídos ossos de idosa longilínea. Os sintomas do reumatismo, o desânimo e a fera que teria que enfrentar ao abrir aquela porta acompanharam seus passos lentos pela casa. Preferia morrer a enfrentar tudo isso junto. Cruel expectativa. Sem contar aquela dor na coluna que não a abandonava. Foi arrastando a pantufa colorida, presente do filho, que lhe oferecia a maciez do conforto e a ausência de ruídos.

Abriu a porta e lá estava ela, a mulher alta dos cabelos curtos acaju, sua visita de quase todas os dias, maquiada demais para uma segunda de manhã. O que escondia algumas rugas de setentona, a sombra sobre as pálpebras formando um interessante contraste com os olhos azuis. Não era tão alta, tão morena nem tinha modos tão conservadores no trajar e nos gestos quanto a anfitriã, mas se pareciam um pouco.

-Bom dia Marlene, entra - destrancou o cadeado do portão que rangeu como em protesto e como quem conhecia bem a visita que chegava e não tinha em boa conta.

Foram para o interior da residência. As duas a passos lentos se arrastavam pela casa passando por entre os móveis antigos, os falsos tapetes persas, em direção à cozinha, local de maior intimidade, onde os verdadeiros amigos são recebidos.

A visitante toda serelepe parecia agitada e falava de forma rápida.

-Nossa, Liana você comprou geladeira nova?

-Nada menina, essa era do meu filho ele comprou outra e passou essa para mim. Aquela vermelha antiga estava muito ruim. Essa é chic porque é a tal da foste fria.

-A ta! Boa mesma é a que eu comprei mês passado. Comprei a vista Kirtidta? É moderna demais precisa ver. Também o Marcinho vive para agradar a mãe.

-E foi cara?

-Ah se foi, mas sabe como é, ele ganha bem. E olha as coisa ta muito cara. onde que esse mundo vai parar? O preço dos trem disparou. Eu acho que o povo mais pobre vai até passar fome. A gente vai no supermercado e fica pasmado de ver. Imagina quem não tem condição. Mas a sua geladeira é bonita também, essa mesma serve.

- Pois é, eu pensando em comprar uma nova e o Lucas me deu essa. Tô muito feliz.

-O Marcinho tá trocando os move lá de casa. Liana, mas ele comprou só coisa boa. Comprou um sofá macio que só. O meu era igual esse seu, com esses braços assim cheio de contornos, coisa antiga, de napa, nem usa mais, agora é um trem confortave, macio precisa ver. Um fogão de seis boca, esse seu é de quatro né?

-É Marlene, o meu é bem velho, está precisando trocar também.

-Troca boba, cê vai ver o tanto que é bão. Compra um igual o meu.

- É to juntando dinheiro.

-Meu fio comprou tudo a vista, agora tem tv de cinquenta polegadas, udiscrim, não é assim de tubo pequena igual a sua. - E Marlene que se jactanciava sem perceber o olhar de ódio que podia secar-lhe toda a carne.

-E por falar no Marcinho como é que ele tá?

-Tá bão. Ele tá lá com aquela muié . Sabe como é. As vezes a pessoas se encalacra. Mas cá pra nós não gosto de falar mal dos zôto, longe de mim fofocar ce sabe que não gosto, mas eu acho que ela tem outro. Aquilo pra mim é cobra cascavel. Eu falei umas coisas para ela e a sabonetona não gostou. A gente tem que falar a verdade.

-Mas reza e pede a Deus pra iluminar pra tudo dá certo. - E aquilo alarmou a amiga, a passividade da outra, só podia ser aquela songa monga. Imagina ficar quieta diante das coisas erradas?

-Falar nisso e o seu Lucas não vai casar não?

-Acho que o Lucas não tem muita inclinação para isso não. Acostumou a morar sozinho.

-Ele anda muito com o Edson, né, aquele lá é assim esquisito. É bem delicado. - Arc que o veneno exalava pelo ar.

-Ai Marlene!

-Nossa Liana cê viu as Guerra como é que tá? Que loucura! O Irã, Islã, Israel, sei lá. Esses resbolado. Não entendo essa bagunça. Os trem lá na casca de gaza. Ataque da União Soviética.

-An!!!?

– Jesus poderoso segura o satangoso.

-Credo Marlene!

-Nossa o mundo tá no fim mesmo só bomba e tiro. Um hora explode tudo. É o Pocalipise mesmo.

-Terrível. não é amiga? Mas deixa eu te contar uma coi…

-Ah Liana nem te conto. A Doroteia fia da Dona Parecida que agora tá morando com uma muié. Comadre esse mundo tá virado mesmo. O povo perdeu a vergonha. Mas eu nem falo, não tenho nada com isso. Não sou de falar da vida de ninguém, nunca tive esse costume, agora que o Zé Maria trai a Zurmira, isso trai, tem uma menina novinha que ele sustenta lá no bairro São Sebastião. Igual o Nilton, a mesma coisa, uma hora a bomba explode. O NIlton vereador, o mesmo safado diz que tá envolvido numa corrupção danada, uns esquema lá com o prefeito. Eu falo que o mundo tá virado de cabeça pra baixo, mas eu não digo nada.

-Pois é Marlene nós não somos fofoqueiras né?

- A Alzira tá com câncer e a filha sem juizo fica só na gandaia. Tá grávida agora. Agora olha se pode outro fio pra mãe doente cuidá.

-Eu tenho dó dela.

-Liana ocê ta calada hoje quase não fala nada.

-É que…

-Ah outra coisa, ontem eu fui lá no posto de saúde. Eu xinguei demais lá, eles não marca minha consulta, eu precisando e não marcam, mas também com aquelas porcaria de médico que tem lá, ta igual o hospital só tranqueira.

-Eu também tô esperando…

-Atendimento, pode esquecer o trem lá demora demais.

-Ah ontem eu briguei com a Elza. Ela fez umas fofoca de mim. Oh muié faladeira, ela fala de todo mundo, faladeira e barraqueira só caça confusão. Pus ela no lugar dela. Ela a dica e a Sandra que vieram se meter na conversa. Eu falei poucas e boas. Eu vou te contar, nessa rua só tem malandro, gay sapatão, só gente ruim. OH lugarzinho difícil! Gente boa igual eu e ocê é difícil por aqui.

-Só sobrou eu de amig…

-Você é do coração.

-Eu vou te falar uma coisa Marlene…

-Nossa esse tapete heim Liana, ce lava ele de que jeito?

-Uai eu…

-Menina eu vou te ensinou um jeito de lavar, um produto muito bão pra passar em móveis sofá tapete - esses moveis seu vai ficar tudo novo, vai melhorar bem a coisa por aí.

E os venenosos olhos de serpente deslizavam por todos os cantos, foram pousar sorrateiros pela estante da sala, desdenhando os bibelôs bregas, acompanhados de expressão de terror subiam pela paredes escandalizando-se com os quadros de mau gosto, voltavam para cozinha com o piso descascado e era pura reprovação. Veneno cruel.

E a outra se encolhia diante da minuciosa inspeção. - Essa mulher que não vai embora!

E as horas foram comendo e amargando o sabor dos ponteiros.

-Vou fazer um almoço e você almoça comigo Marlene.

-Não, eu agora estou almoçando só em um restaurante. Ele pega marmitex pra gente. E não quero te atrapalhar foi só uma passadinha rápida para colocar a conversa em dia. Eu vou indo amiga. Amanhã eu volto.

-Tá certo, foi um prazer recebê-la - Ah se foi!

- Gosto muito da sua casa Liana - Não parece.

-Tudo de bom, fica com Deus

-Com Deus também e obrigada pela visita. Eu acordei triste, então fez bem conversar - Uma verdade. Momentos de civilizada interação (isso distrai e inerva, captura atenção alivia e apurrinha) também acabam, deixando um pouco para amanhã,

-Amanhã eu volto.

-Volte sim - Aff.

Mas na porta o papo ainda rendeu um pouco mais. Por fim, Marlene resoluta decide-se

– Agora vou mesmo

E no último ato daquela peça a anfitriã:

-Vai não querida, tá tão bão cê “í”.

Eram duas idosas que se amam e também se odeiam. Adoram trocar as figurinhas, fuxicar fofoca e negar que o fazem. E mais ainda adoram intimamente xingarem uma à outra, nesses insultos que acontecem apenas no pensamento. Amo-te, odeio-te. Te quero aqui e te quero longe… Mas uma que ouse morrer para ver o pranto e a dor da outra aflorar. O estranho fenômeno do te amo e te odeio que permeia todas as relações humanas tão propensas a cair nas garras da contradição. Que destilam os venenos e as ternuras colhidas ao longo de suas existências com as misérias e as glórias que lhe foram possíveis acumular. Eram peças do inconfundível quebra-cabeças do existir que nos antolha um mosaico de tipos e formas e de possibilidades pendendo para o bem e para o mal, e nos faz constatar ao observar as peças que nada têm do bem nem do mal, apenas se movem de acordo com as possibilidades e os encaixes possíveis. Se equilibrando sempre nessa corda bamba do viver. Cada um faz o que pode com suas alegrias e dores. Nem vilões nem heróis.

E a mulher se foi, satisfeita por descarregar tudo aquilo, e pela acolhida da amiga, embora tenha sentido uma certa hostilidade no olhar. Engraçadinha a brincadeira no final. O que será que ela quis dizer? Ah e teve aquela palavra mais áspera Também ela não falava quase nada, talvez não quisesse conversar. E vai ver que ela não estava tão feliz assim com minha presença... Ah mas estava sim ela sorriu para mim com os cantos da boca.

Também pensativa a dona da casa ficou olhado lá do portão a vizinha se afastar. Seu inconsciente dizia:

Coitada dessa bruaca, quanto e que doce veneno!