Cartas ao próximo prisioneiro

"Se encontrares esta carta, saiba que já morri, senão por outra forma de escapar dessa prisão, encontrei esta, sequer sei se isso me trará paz. Dedico esta carta ao próximo prisioneiro de minha horrível sela. Não tenho nada a lhe deixar senão palavras em um papel escondido. Leia com toda a atenção do mundo, lhe deixarei a descrição da prisão que há tempos detém homens e mulheres. Quantos já não passaram por aqui? Quantos já não padeceram? Mas para sua própria humilde esperança, alguns escaparam."

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- Da descrição desta velha prisão e exortação ao próximo

Parando para pensar agora, sempre estive nela. Não me lembro bem como entrei, só sei que estava lá por trás daquelas frias grades. Eu refletia enquanto via o mundo, tudo parecia tão longe. As grades me separavam de todos os outros seres, em mim só restava uma vontade e um simples erguer de braços que transpassavam-nas. Tinha vezes em que eu podia jurar que estas grades estavam velhas demais para aguentar as minhas tentativas de fuga, porém ao final eu constatava que estavam mais firmes do que nunca.

Esta maldita prisão, seu chão sujo, as grades geladas como os invernos ao Sul, a solidão de dentro da cela, vi tudo apenas através de uma simples janela. A prisão me manteve ali por tanto tempo, quem sabe eu mesmo não tenha me acostumado com ela?

Foram várias as vãs tentativas, nunca consegui sair dali. Eu sequer sabia se sairia um dia.

O que posso lhe dizer é: quando você fica ali por muito tempo, aquela prisão até começa a fazer sentido. Rogo a ti, não caia nessa ilusão, é uma armadilha cruel que vai lhe fazer sair da realidade e pensar que aquela solidão durará para todo o sempre. Espanque as grades! Deixe suas mãos em carne viva socando aquelas malditas grades, não preste atenção na dor, use-a como motivação, esmague sua carne ali, deixe o sangue correr ao chão, respingar em sua face, lhe cobrir de vermelho, quebre os ossos da sua mão. Bata naquelas grades como se estivesse com toda a raiva do mundo empoleirada em seu cérebro, fervilhando seu corpo inteiro. Vá, quebre tudo!

Não, não faça como eu, que fiquei ali por tanto tempo. Não faça como eu, que permiti que aquelas grades me prendessem – e como elas prenderam. Não permita que aquele carcereiro sujo - maldito carcereiro - lhe diga o que pensa sobre as situações, cuspa na cara dele, xingue-o, nunca lhe dê ouvidos, as palavras dele amaldiçoam e lhe quebram em mil realidades diferentes. Quando sair daquela prisão, faça o favor a mim e a tantos outros, mate o carcereiro. Aquele ser não é humano, não possui coração ou carne, e é por isso que entra em nossas cabeças com tamanha facilidade. Se disfarça como ovelha, mas é um lobo faminto, faminto por destruir o seu futuro, ele ama ver cada minuto da podridão de um moribundo entre aquelas grades. Ele vai te olhar, vai sorrir, aqueles olhos vazios irão te fazer tremer – oh, como você irá tremer. Ele vai dizer todas as coisas possíveis para te fazer acreditar que o seu mundo está acabado, e não se engane, ele é escritor desde a tenra idade. Esse maldito carcereiro tem palavras mais realistas do que qualquer outra pessoa da qual você já ouviu.

Você vai parar em dado momento, vai pedir justiça, quem pode sofrer tal pena da qual sequer sabe-se por quanto tempo irá ficar trancafiado? Será tudo em vão! Por isto, não gaste saliva, quebre as grades! Saia desta prisão que não possui intervalo. Esta prisão que te limita a tudo.

Esta maldita e velha prisão é escura. Lá sopra o vento da morte, ele passa pelas grades e frestas, portas e janelas, e constantemente soará a sua canção: memento mori. Ventos imprestáveis! Quantas vezes já não me deixastes louco. A todo momento ele entrava na cela, lambia minha pele com seu frio e soprava a morte aos meu ouvidos. Foi assim que pensei “Realmente, tudo está acabado”, me rendi, e assim padeci ali como tantos outros. Essa prisão é viva, você perceberá com o tempo. Seria loucura se não fosse! Ela se adapta a cada prisioneiro, faz o pobre coitado sofrer perfeitamente, quase como uma obra de arte, ela imprime teus medos em sua mente, canta sua decadência.

Nesta velha prisão não há descanso, não há pausas para comida, sequer existem banhos. Ficará preso como um imprestável. Se encontrará caído na sua própria sujeira. Não deixe que isto aconteça, não fique ali por tanto tempo. Tantos foram os que já ficaram, alguns perderam-se neles próprios e na loucura que a prisão insinuava. Deixaram as palavras do carcereiro adentrarem seus ouvidos juntamente com os ventos que preenchiam o terror sob seus sentidos. Ainda restam prisioneiros por aí, em algumas alas é possível ver e ouvir os gemidos das pobres almas.

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- Das minhas palavras aos constituintes

Oh construtor desta velha prisão, arquitetou o sofrimento dos homens que aqui estão. Colocou as colunas imponentes, adicionou suas grades geladas, ergueu as paredes que lhe trancafiaram a vida, e por fim acabou preso nesta mesma masmorra. Que irônico.

Oh carcereiro, zombeteiro, que com suas palavras oprime o prisioneiro, seu destino recairá por fim ao mesmo do oprimido. Será preso igualmente, pois a prisão é viva, ela o puxará quando menos esperar, vai apodrecer aqui igualmente, junto aos outros dos quais julgava impotentes.

Oh diretor da prisão, que segura todos os prisioneiros com sua forte mão. Viu toda a injustiça aqui causada, viu o sangue inocente que jorrava. Infeliz diretor, também será o próximo. Esta prisão também acomete suas presas pela idade, e a sua já não mais é tenra, já não possui a jovialidade antiga, esta prisão perceberá seu cabelos grisalhos e por fim lhe iniciará a providência. Mais um presidiário.

Oh irmãos de prisão, tantos que aqui estão, aqueles todos que também sofreram a opressão, aqueles que perderam sua humanidade. O brilho nos olhos já não existe, a força já não lhe encontra. Dedico-vos estas pobres palavras, pois deixarei vocês eternizados ao menos neste velho pedaço de papel, e nesta tinta que juro – enganando a mim mesmo – que não é meu sangue.

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- Aos meus familiares

Bem sei, e vocês também, desde minha infância eu já pairava por aqui, meus olhos sempre encontravam este lugar sombrio. A vida prosseguiu e aqui vim parar. Agora, em minha pequena existência, venho-vos pedir desculpas póstumas. Eu deixei que esta prisão me cercasse. Vocês tanto me avisaram, oh queridos familiares, mas mesmo assim eu insisti. Eu disse, o carcereiro tem palavras doces, eu o via pelas grades, mas ele dizia que tudo é temporário. Maldito carcereiro, não mentiu em suas palavras, pois ele sabia que falava da vida, e não de minha estadia na prisão. Sabia que seria derradeira minha queda, que em algum momento saborearia a visão do meu eu em desespero encarando a realidade de que ficaria para sempre por este lugar.

Gostaria de ter dado ouvidos aos conselhos de minha velha tia, tanto me avisou e observou meu aprisionamento. Deixei-a em lamentos. Tanto sei que decepcionei minha mãe, ela jamais verá meu eu se engrandecendo. A velha prisão me cercou, eu já não tinha chances.

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- Das minhas palavras aos que estão lá fora

Peço encarecidamente a seja lá quem estiver lendo isto, se escapares desta prisão assim como meu conselho lhe instrui, leve estas póstumas palavras às pessoas de fora.

Oh pobres e inocentes almas, oro para que jamais conheçam todo este horror. Jamais lhe entrem a vista todo este sofrimento. Exorto-vos ao fato: Esta prisão pega qualquer um, portanto, que ande alerta. Não deixe de viver, não deixe de tentar, não deixe o medo lhe sufocar as vontades – contanto que estas vontades não façam mal a você ou a outros. O medo, ele é o mensageiro desta prisão, nos momentos em que sentir sua presença pairando em locais dos quais não fazem sentido, em momentos decisivos, é ali onde ele vem começar a lhe colocar as algemas.

Sempre que duvidarem de si, lembrem: Se não tentares, não sabereis. Meditem nestas palavras, mantenha em mente e isto lhe dará força para fugir do comissário.

O princípio da dúvida em si é o início do seu processo de aprisionamento. Não duvidem disto, pois quem diz estas palavras é um moribundo defunto que deixou a prisão lhe segurar para sempre.

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- Das minhas palavras a mim mesmo

Agora, não deixarei que esta prisão também tome isto de mim. Me darei as honrarias póstumas. Saberei que, mesmo neste estado de plena derrota, eu mantive meu caráter. Todas estas palavras significarão, senão para mim mesmo, minha própria justificativa de que fui uma boa pessoa. Mesmo em meio a podridão de minha sela, encontrei a empatia. Esta é uma dádiva dos sofredores e solitários, nós jamais queremos que outras pessoas passem pelo que passamos.

Aos que sofreram algum dia e fizeram mal a alguém posteriormente, digo-vos: mereceram tudo que lhes foi causado. Sequer sofreu de verdade, na verdade foi fraco, injustificado. Ficará na sua própria podridão sem honra alguma, e sequer cairá no esquecimento, virará exemplo do que não fazer, exemplo de exímia vergonha estampada para todo o sempre na história. Condenado a ser a falha da humanidade.

Por fim, a mim mesmo, sei que tentei. Mas não tentei o suficiente. Se tivesse o feito, estas grades não estariam em minha frente, o carcereiro já não mais vagaria com vida, o diretor já seria rebaixado e, ao arquiteto que fique a queda de seu próprio castelo sob seus ossos, pois também pereceu nesta prisão.

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- Das minhas reflexões e poesias que escrevi

Título: A prisão, a todos persegue

Esta prisão persegue a todos. Desde o afortunado até o simples. Ela não faz distinção em nenhum detalhe, a prisão é cega, todos estão a mercê de seu comissário. Vi de todo tipo por aqui, empresário; funcionário. A celebridade; o fã. O escritor; o leitor. Portanto, façamos o favor a todos, evitemos julgamentos, eles são a chave da prisão. A prisão segue onde os julgamentos estão, e se todos julgamos, todos maquinamos para que a mesma faça seus prisioneiros, incluindo nós mesmos.

Título: O cair e a insignificância de todo humano

Aos solitários que vocês verão nesta vida, deem sua humilde atenção sincera. Estes estão à beira do aprisionamento, e um dia, todos conhecem a solidão. Ao bonito, o tempo destroi seu templo de proteção e expurga todos os que antes lhe desejavam. Ao rico, as traças destroem seu dinheiro, os corruptos consomem, seus filhos lhe sugam cada grama de ouro e por fim, perceberá que está sozinho. Ao famoso egocêntrico, se não perceber a temporariedade de seu império, cairá de uma montanha, vai se encontrar esmagado pela solidão sem que ninguém jamais lhe dê o valor que antes achava que possuía por direito. Ao político corrupto, sua falha para com a humanidade será lembrada para sempre, seu império cairá, sua cabeça rolará perante os pobres a quem deixou na miséria e tanto enganou, e então ali, nos teus últimos suspiros, sentirá a solidão lhe penetrar a alma, gelada, só lhe restou a vergonha. Aos insensíveis, o tempo lhes despedaçará cada relacionamento, sequer restará família, terá uma celebração na morte, será forçado a observar lentamente a felicidade de cada um dos quais humilhou.

Ninguém resta nesta vida, que não conheça ao menos uma vez a solidão. A solidão por sua vez lhe encaminha ao comissário, e então, começará a entrar de forma lenta e gradual na prisão.

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Título: Desolação

Das penumbras mais dançantes

às penas de um coleiro,

da dança da desconhecida moça,

da névoa ao nevoeiro.

Do coaxar dos pequenos sapos,

dos gemidos dos prisioneiros.

Das minhas velhas suplicações,

das palavras do carcereiro.

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Título: Ilusão

Valente o dito cujo,

forte como um marinheiro,

sonhador como o jovem marujo,

aqui jaz um prisioneiro.

Mora nas ilusões,

fraqueja ao ambiente,

fraco os corações,

pobres prisioneiros inocentes.

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Título: Ilusionismo

As badaladas em minha mente

seguem o palpitar do coração,

como anuncio honroso,

aí vem a ilusão.

Modifica minha percepção,

extrai a realidade,

humilha meu coração,

quebra minha vaidade,

esconde o meu ver,

mente à minha verdade,

prisão, velha prisão,

de súplicas à antiga maldade.

Morei aqui por muito tempo,

já não me resta a jovialidade,

sou velho moribundo,

arrastando-me sob a mortandade,

desperdicei minha vida

temendo a liberdade,

prisão, velha prisão,

tomou de mim minha vontade.

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Título: Ao medo, um poema

Do que você tem medo?

O que tanto teme?

O não acordar de manhã cedo?

A escuridão em sua forma solene?

Pequeno jovem sofredor,

diga-me, que tanto teme?

Encarar a falha de sua vida?

O olhar daquela Irene?

As crianças cirandam a cirandinha,

então vamos todos cirandar,

já não demos meia volta

por medo da volta e meia encarar.

O anel tu não me destes

esperei e não entregou,

o amor que tu sentias

o medo lhe apagou.

Por isso, Dona Chica,

nunca entrastes nesta roda,

não disse o verso tão bonito,

e sozinha foi-se embora.