RABISCOS
O velho mendigo entrou na lanchonete.
- Xispa, xispa! Tá querendo espantar os meus clientes? Xispa! -
Dizia o rechonchudo padeiro bigodudo enquanto o empurrava sem delicadezas para fora do estabelecimento na frente de todos os clientes.
O mendigo tirou um caderninho do bolso e fez um rabisco...
Uma adolescente que vira a cena transtornada saiu berrando com padeiro, falando sobre capitalismo, moralismo e outras coisas que tinha aprendido no mesmo dia na escola.
Entregou então ao pobre miserável o que restara do seu misto e o resto de seu refrigerante:
- Tem mais que a metade! – disse a menina ainda ofegante.
- Muito obrigado minha filha, Deus lhe pague!
Passando pela frente do parque quase foi atropelado por dois garotos de bicicleta que propositalmente colocaram o mendigo em sua rota:
- Cuidado aí ô Velhote! – disse o menino loiro.
Nem tinha dado tempo de recobrar seu equilíbrio quando o outro que vinha logo atrás passou:
- Sai da freeente! – berrou o garoto com traços orientais.
Por muito pouco não lhe acertaram.
O mendigo tirou o caderninho do bolso e fez mais dois rabiscos...
Um dos guardas responsável pela segurança do parque correu em sua direção:
- Malditos moleques!!! Sempre causando problemas! O senhor está bem???
- Estou bem sim! Muito obrigado bom rapaz. Deus lhe pague!
Continuou seu percurso parque adentro. Tinha seu trajeto todo projetado. Ainda tinha muito trabalho a fazer hoje.
Passou do lado de um jovem homem que passeava com duas meninas e um cachorro troncudo que parecia que a qualquer momento arrebentaria a coleira, tamanha a força com que puxava seu dono. O rapaz começou a gritar:
- Peeega! Pega ele Touro! Vai! Homem mal, homem mal!
Os berros se confundiam com as gargalhadas e a proximidade se tornou perigosa. Não fosse o mendigo dar dois passos rápidos para trás teria sido alcançado pelos dentes do cão feroz. Uma das meninas se dobrou inteira de tanto rir. A outra, provavelmente sua namorada, gritou com ele e saiu andando na frente. Isso fez o homem esquecer do mendigo e sair na direção da mulher proferindo pedidos de desculpas.
O mendigo tirou o caderninho do bolso. Mais dois rabiscos.
A cena se repetiu durante toda a tarde.
Rabisco atrás de rabisco.
Quando o sol começou a baixar parou. Tirou o caderninho do bolso e começou a conferir seu trabalho. Lá estavam vários nomes. Centenas deles. Alguns riscados. Esses perteciam às pessoas que o xingaram, humilharam, mal trataram...
Os outros estavam inalterados, sem rabisco nenhum. Exatamente do mesmo jeito que tinham sido escritos na noite anterior. Já sabia o nome de todos que cruzaria seu caminho naquele dia.
Decidiu que estava na hora de ir embora, estava exausto pelo dia de trabalho.
Tirou aquelas velhas roupas sujas e malcheirosas e olhou para todos os lados antes de abrir suas belas asas de penugem branca e sair voando elegantemente em direção ao céu.
Hoje o trabalho tinha sido muito proveitoso.
E seu chefe ficaria muito satisfeito...
(08/01/08)