A cor da pele
— Lá vem ela, a negrinha enxerida, metida a besta.
— Não sei quem ela pensa que é.
— Vai embora procurar tua turma, esta escola não é pra você.
— Cabelo de arame.
Era sempre assim. Eu fazia de conta que nem era comigo. Passava com minha cabeça erguida e com meus livros debaixo do braço. Estava acostumada a ouvir frases desse tipo desde que me entendia por gente. Muitas vezes me perguntando, será que eu era gente mesmo? Às vezes achava que não. Fugia do sol , como o diabo da cruz. Temia ficar mais preta ainda.
Estava naquela escola porque minha mãe havia conseguido uma bolsa de estudo através de sua patroa. Era uma das melhores escolas da cidade. Eu odiava ter que frequentá-la, porém, ao mesmo tempo, precisava me agarrar ao que pudesse aprender ali, antevendo as possibilidades, que talvez, a vida viesse a me oferecer. Adorava estudar, ler, escrever. Sonhava com um futuro melhor, mesmo duvidando que um dia conseguiria conquistar um lugar nesse mundo que me parecia tão cruel para pessoas, que como eu, eram marcadas pela cor da pele. Por este motivo aguentava calada as humilhações, os chistes, convicta de meu não pertencimento àquele escola, aliás de nunca pertencer a lugar algum. Sentia desde sempre a rejeição, como se as portas nunca fossem se abrir para mim. No entanto, a minha persistência, e minha determinação em provar para o mundo do que seria capaz, não esmoreciam. Meu desejo ardente de vencer era maior que tudo isso. Eu aguentaria.
A dor vinha cada vez forte e em intervalos menores. Mas eu aguentaria. Não podia mais evitar. Como não conseguia evitar também que esses pensamentos se intrometessem em minha mente numa hora tão imprópria. ‘Lá vai a Clara que é escura. A preta que pensa que é branca”. Riam os colegas ao me ver passar.
Eu ouvia aqueles trocadilhos irônicos com referência ao meu nome e à cor de minha pele e ficava com verdadeiro ódio da minha mãe. Como é que uma mãe coloca um nome desse num bebê que nasce da cor de um pedaço de carvão. Sinceramente, eu não entendia. Eu só pensava que ela devia me odiar, só podia ser isso. Muitas vezes achava que os colegas tinham uma certa razão em fazer chacota de mim. Se a minha própria mãe parecia ser preconceituosa, por que não os outros?
Quantas vezes, quando era criança, no banheiro, sozinha e de porta trancada, não passei água sanitária em minha pele até cansar e deixá-la quase em carne viva na esperança de vê-la mais clara! Aquilo era uma tortura. Nada acontecia. Até que cansei.
Cresci, me formei, me casei, porém, continuei na luta por pertencimento, por ser aceita. Morávamos em um condomínio fechado no fundo do quintal da casa da patroa. Quando eu saía as mulheres mal me olhavam, viravam-me o rosto ante a menor tentativa de aproximação. Muitas vezes achei que elas se sentissem “ameaçadas” com a minha presença no meio delas. Talvez por ser dona de um corpo bem feito, uma característica das mulheres negras, e por ter um rosto de feições finas, “feições de mulher branca”, como escutei muitas vezes. Isso mexia e mexe comigo desde sempre. Infelizmente, sinto bem no fundo de meu ser que o preconceito racial nunca deixará de existir e isso me deixa muito triste e infeliz, sobretudo neste momento de minha vida em que me sinto mais frágil e vulnerável. Meu marido sempre fala para que eu ignore tudo que ainda escuto pelas costas, mas não é fácil sermos menosprezadas por causa de nossa cor, vivermos sempre na defensiva tendo que saber lidar, e nem sempre conseguindo, com o amontoado de injustiças, preconceitos e humilhações. É difícil não sermos valorizados pela nossa capacidade intelectual, pela nossa beleza interior. Por sermos gente.
Neste momento, sinto um chute enorme empurrando meu ventre volumoso, confesso que estou muito feliz, sim, mas não posso impedir que uma tristeza e um certo medo me invada o coração. Senti-me culpada quase todo o tempo em que esperei, pensando na responsabilidade dar à luz a mais um ser humano que com certeza vai sofrer nesse mundo tão cruel e desumano. Não quis saber o sexo de meu bebê, mas rezo para que seja um menino, quem sabe com a cor do pai. Acho que homens sofrem menos. Um grito forte e agudo ecoou pelos corredores da maternidade.
Nessa manhã clara de verão, numa sala de parto, uma trouxinha escura foi colocada sobre o peito de uma mãe.
Acabava de chegar ao mundo mais uma mulher.