Aniversário de Casamento

Era nove de setembro de 1869. Aquela data era importante para John. Há 10 anos conhecera a sua esposa Deméter. E há exatos dois anos depois eles se casaram. Desde então, todos os anos ele seguia o mesmo ritual, dedicado e romântico que era. Todas as noites que precediam a data em questão, ele voltava do trabalho e fazia os preparativos em segredo para surpreender sua amada.

Naquela noite não foi diferente. A esposa havia o ignorado o dia inteiro, talvez estivesse naqueles dias ou tivesse acontecido algum problema que não estava disposta a falar. Após se deitarem, John aguardou Deméter pegar no sono e se preparou para a sua fuga rotineira. O marido deu uma última olhada nela para ver se não a tinha acordado, levantou-se da cama, vestiu seu paletó preto e chapéu de aba reta e partiu para o centro comercial da cidade. Gostava de caminhar, principalmente à noite, por isso não se incomodou em chamar um cocheiro.

A lua cheia despontava em meio ao céu parcialmente nublado, como se disputasse com as trevas pela soberania da noite. O aroma da dama da noite preenchia a atmosfera com a sua doçura típica. As ruas estavam vazias e um sereno gelado caía e cobria o chão iluminado pelas tochas nos postes deixando um rastro de estrelas estendidas como um tapete úmido sob os seus pés.

Deméter amava crisântemos rosa e John sempre passava na Floricultura Loddiges Nursery para comprar um buquê para ela. Este ano comemoravam bodas de bronze (8 anos). Entrou na loja, deixou algumas moedas em cima do balcão e pegou as flores mais bonitas que conseguiu encontrar, deixando o estabelecimento em seguida sem trocar nenhuma palavra com o vendedor.

A solidão podia ser acolhedora às vezes, mas não deixava de pensar no quão diferente aquele quadrante era sem a agitação incentivada pelo deus Sol. O Rio Tâmisa parecia sereno como nunca; resquícios da era vitoriana podiam ser vistos a toda a volta enquanto atravessava a Tower Bridge. Um leve arrepio causado por uma lufada de vento fustigante o despertou de seus devaneios e acabou percebendo que não estava sozinho.

- Noite agradável, não acha John?

- Pois não? Ah, sim, claro. Desculpe, estava distraído.

- Londres é uma bela cidade, não me admira.

- Verdade. Mesmo eu tendo vivido aqui há tanto tempo não consigo me desvencilhar deste sentimento de nostalgia, como se estivesse revivendo algo que se perdeu em algum momento. – Fez uma pausa, como se realizasse algo – Espera, como sabe o meu nome? Nós nos conhecemos?

- Oh, querido, está no seu crachá preso ao paletó.

- Ah, puxa, devo ter me esquecido de tirar. Que constrangedor. Poderia me dizer o seu nome?

- Quer mesmo saber? Isso importa? Nós somos dois espíritos velhos vivendo fora de seu tempo. Aproveitar os prazeres da noite é tudo o que nos resta.

- Bem, na verdade eu sou casado, sabe. Desculpe se pareceu que eu estava flertando com você ou algo assim.

- Aham, sei. E cadê a sua aliança?

- A minha aliança está aqui, oras. Verificou a mão por reflexo, só para confirmar o óbvio, mas se surpreendeu ao não encontrar a joia. – Onde foi que eu deixei? Será que eu tirei quando cheguei em casa do trabalho mais cedo? Droga.

- Está tudo bem, Sr. Casado. Acredito que ainda seja cavalheiro o bastante para fazer companhia para esta pobre moça, não? Poderia me acompanhar até a minha casa?

- Certo, acho que não será um problema. Só não posso demorar muito por que a minha esposa...

- Tá bom, tá bom. Dê-me aqui a sua mão e venha comigo.

Aquela mulher estranha entrelaçou o seu braço ao dela e juntos cruzaram a ponte em direção ao centro da cidade. Ela era jovem e alegre, bastante comunicativa. Mesmo que estivesse desconfortável no início, John logo relaxou os ombros e se deixou levar pela situação. De alguma forma ela lembrava a sua própria esposa de anos atrás, na época em que se conheceram. Aquele jeito altivo e desprovido de pudor era raro para uma britânica. Ao menos nunca tinha conhecido alguém como ela. Isso o fez se sentir culpado. Talvez não estivesse sendo um bom marido afinal. Com a rotina do trabalho quase não a via mais durante o dia e à noite, quando chegava do seu escritório de advocacia, ela já se encontrava em repouso e quase não se falavam. No fundo ele sabia que era algo tolo de sua parte esperar que um simples presente fosse remediar a situação, mas não podia deixar de se agarrar a isso.

A moça parou subitamente de andar e quase fê-lo perder o equilíbrio. Ela mal tentou esconder uma risadinha com o embaraço do companheiro. E para tentar se safar, falou:

- Chegamos. Gostaria de entrar?

- Querida, me desculpe, mas eu realmente não posso. O nosso papo estava muito agradável com certeza, mas...

- Ora, deixa disso. Vamos, vamos! E praticamente empurrou John para dentro de sua casa, fechando a porta atrás de si.

- Quer beber alguma coisa?

- Eu... Eu não bebo, sinto muito.

- Sei. – Pegou uma garrafa de Whisky, e dispôs dois copos na mesa em frente ao sofá da sala de visitas. – Com ou sem gelo?

Quase não se podia notar qualquer malícia naquele gesto, talvez ela só não tivesse ouvido muito bem o que o outro dissera.

- Eu pensei que tivesse lhe dito que... Ah, esquece. Sem gelo, por favor. Mas somente uma dose! Ouviu? Só uma dose.

- Yes, sir.- bateu continência, divertida.

John suspirou, e não disse mais nada. Enquanto bebia, se atentava aos detalhes nos mobiliários da sala. Era tudo muito simples, mas extremamente limpo e bem cuidado. Chamou-lhe a atenção um porta-retratos na cômoda de madeira maciça no canto esquerdo, próximo a uma das luminárias. Já esteve naquele local antes, só não se lembrava de quando.

- O quê foi?

- Não, nada. Aquela foto... Onde você a tirou?

- Ah, foi só uma viagem que fiz com o meu marido há alguns anos. Foi tirada na França. Tá vendo aquele barquinho lá no fundo? Estávamos próximos ao canal de Suez.

- Espera, então você também é casada? Onde está seu marido?

- Calma, bonitão. Meu esposo se foi há alguns anos. Sou viúva.

- Sinto muito, meus sentimentos.

- Está tudo bem. Mas, agora que me fez lembrar de coisas tristes, vai ter que beber mais uma dose dupla comigo. Você não tem o direito de recusar. Fez uma pausa. Anda, passa esse copo pra cá. - E encheu o copo.

Não sabia precisar quanto tempo havia se passado, mas decerto passou dos limites na bebida e mal conseguia ficar de pé.

- Tá tudo bem, eu connnnzigo iiir pra casaaaa.

- Desse jeito aí, sem chance. Achei que fosse mais durão no quesito bebidas. Acho que me enganei.

- Não sei do que voxê está falando. Eu só tô canxado. Só preciso dormir um poquinho.

- Ok, Sr. “Canxado”, vou te levar para sua cama. Vem comigo.

A jovem pegou John pelo ombro e demonstrando ser mais forte do que a frágil constituição fazia parecer, praticamente o carregou até o seu quarto de hóspedes – um cubículo com uma cama de solteiro como único móvel. Tirou seu paletó e o protegeu do frio com uma coberta que emanava um cheiro de lavanda. O cheiro junto a seu toque macio e delicado foi a última coisa de que John se lembrou ao acordar no dia seguinte acometido pela ressaca.

- Ai! Minha cabeça.

- Bom dia pra você também, querido. Espero que não tenha babado muito no meu cobertor.

- Mas, que... Onde eu estou?

- Na minha casa tirando uma soneca depois de beber e perder as estribeiras?

- Oh, Deus. Desculpa ter te dado tanto trabalho. Que horas são?

- É Hora de fazer compras. Vai vir comigo até a mercearia?

- Espera, eu preciso ir... A minha esposa deve estar preocupada me esperando. Hoje é o dia do nosso aniversário de casamento. Não posso deixa-la sozinha.

- Ok, mas a sua esposa não come? Ou ela vai comer esse buquê de flores que você está segurando aí?

- Mas, que diabos! Eu dormi com isso o tempo todo?

- Aham. Tem sorte de não ter esmagado elas. Tenho certeza de que a sua mulher não gostaria nada disso. Aliás, você tem um belo gosto para flores. São crisântemos, não?

- Sim, são. São as favoritas dela.

- Sim, são mesmo.

- O que disse?

- Ah não, nada demais. O seu casaco está pendurado ali perto da porta, junto com o chapéu.

- Obrigado.

Aprontou-se rapidamente e tomou o copo de leite puro oferecido gentilmente pela anfitriã. Em seguida pegou seus pertences e se dirigiu a saída.

- Olha eu nem sei como te agradecer por ter cuidado de mim. Lamento ter causado qualquer inconveniente.

- Não foi incômodo nenhum. Sério. Fazia tempo que não me divertia tanto. Sabe, essa sua esposa é uma mulher de sorte. Você é um bom homem. Tenho certeza de que se encontrarão novamente e serão muito felizes.

Aquelas palavras ecoaram como pelo espaço e o atingiram como navalhas penetrando a pele e atingindo diretamente o coração. Não sabia de onde vinha aquela sensação, mas um sentimento de urgência o tomou de sobressalto.

- Desculpe, eu preciso ir. Mais uma vez obrigado... Qual o seu nome mesmo?

- Depois de tudo você ainda pergunta?

Uma força sobrenatural o sobrepujou e deixou prostrado no chão. Uma dor profunda no peito atentava contra a sua própria existência.

“Depois de tudo, você ainda pergunta?” Onde ele tinha ouvido aquelas exatas palavras? Aquilo não podia estar certo. Levantou-se com dificuldade e saiu andando cambaleante pelas ruas de Londres, desnorteado. “Eu preciso ir para casa”.

Pediu auxílio para as pessoas em volta, pois o mundo girava ao seu redor e não sabia onde estava indo, mas ninguém parecia notar sua presença, distraídos demais com suas atividades diárias. Talvez julgassem que era apenas um bêbado. John se esforçava para fazer o caminho de volta até encontrar novamente a ponte com a sua vista panorâmica e famosa que atraía turistas do mundo todo. Debruçada na borda em meio ao fluxo constante de gente, estava a Deméter, sua mulher.

O brilho nos seus olhos voltou e ele conseguiu se endireitar e se pôs a atravessar rapidamente a distância entre eles.

- Querida, que bom te ver hoje pela manhã! Hoje eu tirei o dia de folga para podermos ficar juntos. Espere! Veja! Eu trouxe essas flores para você. Crisântemos rosa, a sua cor favorita! Pode pegar, é para você meu amor! Amor? O que houve? Por que não está respondendo? Querida, olhe para mim. Desculpa eu não ter estado com você ontem à noite, mas é que... Bem, algumas coisas aconteceram, então só consegui voltar agora. Mas, te garanto que está tudo bem comigo. Eu sei que ultimamente não tenho sido um marido muito presente, mas o trabalho exige muito da gente, sabe. Eu faço tudo o que posso para estar com você sempre, é só que... Querida? Por favor. Só olhe para mim. Olhe para mim, só um instante. Eu juro que...

Démeter encarava impassível o horizonte, enquanto o Sol nascia. A aurora refletida nas margens do rio Tâmisa era provavelmente uma das imagens mais belas que o pincel de Deus se ocupou em toda a sua criação. Uma profusão de tons vibrantes que variavam do vermelho ao amarelo, junto ao céu de um azul profundo e limpo que pronunciava um dia belo e ensolarado pela frente. O dia parecia estar sorrindo e dando boas vindas a todas as almas nesta Terra, mas a esposa de John não se movia. Ao invés disso, começou a chorar enquanto segurava algo entre suas mãos.

O rapaz ficou paralisado, não sabia o que fazer diante daquela reação inesperada. Será que o rancor guardado pela esposa era muito mais profundo do que supunha?

- Querida eu... E no que proferiu essas palavras ele estendeu o braço e compreendeu imediatamente o que acontecia. Olhou para o objeto nas mãos de Démeter e viu que era a sua aliança. Ante essa visão recuou alguns passos.

- Não...

Ele se lembrou de algo. Uma memória que não queria ter encontrado, ou melhor, não deveria ter.

- Não faça isso...

A mulher, então, sorriu enquanto apertava com força a aliança do amor da sua vida em suas mãos.

- Não, não, não! Não faça isso, por favor! Você não precisa disso! Pelo amor de Deus, não!

A pessoa à sua frente parecia a angústia encarnada, o olhar antes perdido estava resoluto. Parecia ter encontrado a paz há tanto perdida após a morte do marido 5 anos atrás. Depois que ele partiu, sua vida nunca mais foi a mesma. Viajavam juntos, faziam compras juntos, viviam grudados um no outro. Até que um dia em uma viagem para a França, enquanto a esposa posava para a foto, John se afastou demais procurando o melhor ângulo e caiu da ponte, deixando a câmera com a última memória feliz de suas vidas para trás. Ele não sabia nadar e o resgate acabou vindo tarde demais.

- Alguém ajude! Por favor! A minha mulher! Pelo amor de Deus!

Não podia ser ouvido pelas pessoas em volta. Ninguém poderia ajudar. Consciente disso, caiu de joelhos enquanto via a sua esposa subir a beirada e abrir os braços. Em breve estariam juntos novamente. “Não, não agora! Ainda não!”

- Escuta! Você se lembra daquele dia em que nos conhecemos? Foi aqui mesmo nessa ponte. Eu estava caminhando à noite cansado da minha vida com um monte de pensamentos ruins, tentando esfriar a cabeça, quando você apareceu me dizendo o quanto a noite estava bela. Você se lembra? Ela parou de se mexer. – E daquela vez quando eu passei dos limites e bebi demais, você me levou para a sua casa e nós falamos um monte de besteira e depois fizemos amor pela primeira vez naquela cama de solteiro no quarto de hóspedes? Céus, nunca que eu me esqueceria daquele aroma de lavanda no seu cobertor.

A mulher de John abaixou os braços, ainda em cima do muro.

- Tudo o que passamos juntos, até o último momento... Aqueles foram os anos mais felizes da minha vida e, sinceramente, não me arrependo de nada. Graças a você eu vivi exatamente como eu queria até o último segundo. Então, por favor, faça o mesmo por mim. Viva intensamente, arranje um novo amor e viva a vida que nós sonhamos em ter. Não se preocupe comigo. Dessa vez eu partirei, em paz. Mas, você, precisa seguir em frente. Um dia nos veremos de novo, mas esse dia pode esperar. Promete para mim que vai viver por nós?

Um silêncio gritante se impôs entre os dois e o mundo pareceu cessar momentaneamente a sua rotação. Então, como que por um milagre, ela vira o rosto para o lado e diz para o nada.

- Depois de tudo você ainda pergunta?

E assim que ela lança essa resposta em direção ao vento, ela desce e logo é acudida por dois policiais que se aproximaram e a tiraram de perto da beirada. Mas, antes que pudessem guia-la em direção a ponte, ela se desvencilhou e se abaixou. No chão, havia um buquê de flores. Eram Crisântemos cor de rosa, as suas preferidas.

Arthurx
Enviado por Arthurx em 29/09/2023
Código do texto: T7897437
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