O FUNDO DO POÇO TEM PORTAS

Alfredo sempre foi de acordar-se cedo, ao romper do dia e pôr-se porta a fora. Há três anos, no entanto, essa rotina sofreu um revés. O horário de pular da cama continua o mesmo, a trajetória é que mudou. Antes, deslocava-se de sua bela casa para o trabalho. Agora, ele deixa a pequena quitinete, onde vive só, num bairro pobre e dirige-se, a pé, até a praça Sete de Setembro, no centro da cidade. Senta-se sempre no mesmo banco e lá fica, triste, pensativo, corroendo mágoas e rancores, dos quais sua mente está cheia. De vez em quando levanta-se, dá umas voltas pela praça e retorna ao seu banco, onde permanece até que o despeça o final do dia. Então, levanta-se e põe-se a caminhar lentamente. É o regresso para casa.

Sempre mergulhado em pensamentos que o prendem ao passado, Alfredo nunca fala com ninguém, não percebe ninguém. Não percebe nada. Um dia, foi despertado por uma voz suave e melodiosa que pedia licença para sentar-se ao seu lado.

- Claro, o banco é público. Senta e fica à vontade, respondeu sem olhar para seu interlocutor.

Durante cinco minutos houve silêncio, quebrado, afinal, pelo visitante:

- Eu te conheço.

- Não é novidade. Muita gente me conhece, respondeu de má vontade, com clara intenção de pôr fim a conversa.

- Mas eu te conheço de uma forma diferente. Há tempos te observo e te analiso. Algo está te fazendo muito mal e tu sofres, eu sei. Posso ajudar-te a encontrares um caminho de volta para a vida, se assim o desejares. Meu nome é José.

- Ninguém pode me ajudar, José, portanto não adianta insistir. Qualquer conversa me incomoda.

Algo, no entanto, fez com que Alfredo olhasse para seu visitante. Tratava-se de um idoso, de olhar tranquilo e sereno, cabelos brancos, desgrenhados e longos, singelamente vestido. Inspirava confiança. A enorme sensação de bem-estar que invadiu a alma de Alfredo, também lhe trouxe paz. Sentiu, até, que poderia dividir com o estranho sua triste história e assim o fez:

- Meu nome é Alfredo, trinta e cinco anos, divorciado. Aos vinte herdei de meu pai uma pequena empresa têxtil, fabricante de toalhas, na qual trabalhei desde a adolescência, sempre na condição de executor. Quando meu pai morreu, tive que assumir todas as responsabilidades, o que me acarretou compromissos com os quais não estava habituado a lidar. Emília, minha namorada, inteligente, determinada, ambiciosa, formada em administração, passou imediatamente a me assessorar. Casámo-nos. Em pouco tempo ela tomou as rédeas de todo o negócio e a empresa começou a crescer. Sua competência era inquestionável e eu confiava nela, tanto que me acomodei no trabalho braçal. Era o que eu sabia fazer, além de assinar, sem ler, tudo o que ela me pedia que assinasse. Contratou um novo administrador, o Joelson. Os dois passaram a gerir os negócios como se fossem os reais proprietários e eu não me incomodei. Pelo contrário, via com bons olhos a empresa se diversificar e crescer. No entanto ambos saíam muito a sós para tratar de negócios. Às vezes precisavam viajar juntos e eu não me incomodava. Um dia cheguei a casa mais tarde e encontrei os dois dividindo um momento íntimo. Estávamos casados havia quase dez anos. Questionei Emília sobre a situação e ela foi direta:

- Esta casa é minha, está no meu nome e a empresa também não é mais tua faz tempo. Comprei-a, não lembras? Do valor combinado, ainda deve restar uma parte na tua conta, se já não gastaste tudo. Vai lá e vê.

- Mentira, não te vendi nada. Eu sou o proprietário, é minha herança. Só permiti que dirigisses os negócios porque és minha esposa, nada mais. Esta casa compramos juntos e a registramos no teu nome, é verdade, mas com o dinheiro da venda da casa de meus pais. Agora, Joelson, saia. Quero conversar a sós com minha esposa.

- Joelson fica, respondeu Emília, taxativa, agora lê estes documentos, todos assinados por ti.

Peguei os papéis e os li estarrecido. Eram a prova incontestável de que tudo estava em nome de Emília e já fazia tempo, como ela disse.

E ela continuou, cruel:

- A empresa é o que é hoje, graças a mim. Tu sempre foste um zero à esquerda, nunca fizeste nada, além de trabalhar como um empregadinho vagabundo qualquer. Até que fui generosa, pagando-te mais do que ela valia quando comecei a administrá-la. Agora some daqui. Tuas roupas estão todas aí nessas malas.

Peguei as duas malas e saí, jurando entrar na justiça no dia seguinte e pôr os dois na cadeia. Um ódio paralisante corroía-me as entranhas. No dia seguinte fui ao banco, verifiquei minha conta e constatei um depósito de cento e cinquenta mil reais. Uma quantia ínfima, em relação ao valor real da empresa. Mesmo contra a vontade, vali-me daquele dinheiro “sujo” para comprar a quitinete onde moro. O que sobrou, guardei para custear inicialmente minhas despesas e pagar os serviços do advogado que sempre cuidou dos negócios de meu pai. Gastei tudo sem ter conseguido reaver meu patrimônio. Certo dia, ao acordar-me, dei com um envelope sem remetente, que havia sido empurrado por debaixo da porta. Dentro havia três mil reais. Suspeitei da origem e imediatamente pensei em queimar tudo, mas refreei o impulso. Estava completamente sem dinheiro e sem perspectiva de onde tirá-lo. Queimei apenas o envelope. A partir de então, a mesma importância tem aproveitado a cumplicidade da noite para entrar em minha casa, sempre da mesma forma. Sem possibilidade de vitória na justiça, segundo meu advogado, vislumbrei na loteria uma possível alternativa de deixar o fundo do poço. Passei a apostar duas vezes por semana. Assim foi durante um ano, até preencher a última cartela e desanimar. Guardei-a na carteira sem pagar e a carrego comigo, como um fio de esperança, talvez. Dessa forma, derrotado, com o coração cheio de mágoa e rancor, embora livre da pérfida Emília, vim para cá. Acredito que passarei os meus tempos restantes vindo todos os dias para esta praça. Até já me apropriei deste banco. Agora, o senhor já conhece minha história. Ainda acredita que pode me ajudar?

- As possibilidades nunca deixam de existir, meu amigo. Tua ex-esposa e a empresa, sabes como estão?

- Nada sei a respeito dela, nem quero saber.

- Para começar, meu caro, tu não estás livre da Emília, muito pelo contrário. Estás mais ligado a ela do que jamais estiveste e agora de forma negativa. Ninguém com a mente repleta de mágoa e rancor está livre para nada. Esses sentimentos tóxicos te mantêm preso ao passado, de forma que não consegues fazer nada no presente que signifique uma esperança de nova vida. Para te livrares dessas amarraras, é imprescindível que arranques Emília e a empresa de dentro de ti. Só assim, será possível agires com clareza, construíres metas e as perseguires sabendo o que fazer. A meditação diária será útil na construção desse caminho e, se aceitares e eu te ajudarei. Quando não sentires mais nada em relação a teu passado, estarás livre para iniciares uma nova história; então, poderás ir à lotérica pagar essa cartela que guardas preenchida.

Os dois ficaram amigos, passaram a se encontrar diariamente na praça, manter longas conversas e exercitar a meditação. Esse procedimento ia, aos poucos, fazendo um bem enorme a Alfredo e o transformava em um novo ser.

O dia do último encontro chegou. José informou ao amigo que sua missão estava cumprida e que precisava partir. Na sequência, olhou-o firme nos olhos, virou-se e, sem mais palavras, começou a caminhar lentamente. Sem tempo de esboçar reação, Alfredo apenas acompanhou com o olhar o amigo que, misteriosamente, a cada passo desaparecia um pouco mais, até sumir completamente. Sem entender o enigma, ajoelhou-se e chorou; depois voltou para casa, cabeça erguida, passos largos e seguros, confiante. À noite, vasculhando um jornal à procura de emprego, descobriu que Emília perdera tudo. Gananciosa, só pensava em expandir a empresa de qualquer forma. Para começar, precisava de uma nova sede. Mesmo com o mercado em recessão, a fábrica produzindo pouco e vendendo menos ainda, ela investiu mais do que poderia. Para agravar, Joelson aplicou-lhe um grande golpe e fugiu. Resultado: estava falida e morando de favores na casa de uma amiga.

A descoberta não alterou minimamente a paz de Alfredo. Não sentiu nada em relação ao infortúnio de Emília, nem raiva nem pena. Estava curado. E este novo Alfredo era um homem corajoso e seguro, certo de que nada mais o impediria de chegar aonde quisesse. Então, lembrou-se da cartela. Chegara a hora de ir à lotérica, o que fez no dia seguinte bem cedo. Havia sessenta e cinco milhões de reais acumulados.

Ele fora único ganhador.

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 18/07/2023
Código do texto: T7840206
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