RAZÃO PARA VIVER
A praia estava deserta e o mar agitado, como poucas vezes o virámos. A tarde caminhava rápido para o fim e as poucas pessoas começavam a ir embora. Convidei Elisa, para que também deixássemos o local, mas ela queria ficar mais um pouquinho. Mariana, nossa filhinha de três anos, estava tão feliz, brincando na areia, que dava pena interrompê-la.
- Mais meia hora, está bem?
- Ótimo, respondeu ela, é tempo suficiente para tirarmos umas selfies lá de cima daquelas pedras. E apontou com o dedo os paredões, alguns metros dali, nos quais as ondas enormes batiam escandalosamente.
- Muito perigoso, querida, melhor tirarmos fotos aqui mesmo, não achas?
- Tomaremos bastante cuidado. Mariana fica na areia, envolvida com seus castelos, sem perigo. Vamos?
Como eu sempre fazia todas as vontades dela, fomos. Cobrimos Mariana de recomendações, deixámo-la com seus brinquedos e nos dirigimos para as pedras. A escalada não foi fácil. Lá encima estava assustador, molhado e liso. As ondas batiam tão alto, que também já estávamos molhados. Abraçamo-nos, tiramos a primeira selfie, depois mais algumas, em várias posições; olhamos para nossa filha, que brincava tranquila, e começamos a nos movimentar para descer. Elisa escorregou e eu não consegui segurá-la. A última imagem de minha amada esposa, que ainda hoje me tortura, é aquela em que a vi sendo engolida pela enorme onda, sem que nada eu pudesse fazer. Depois... só a imensidão turbulenta. Olhei para nossa filhinha, que, indiferente à tragédia que se abatia sobre nossas vidas, brincava tranquila, e refreei o impulso de atirar-me às aguas traiçoeiras.
Quando o socorro chegou, chamado por alguém que presenciara o terrível acidente, eu continuava sem saber o que fazer, impotente, pasmado. As buscas tiveram início e persistiram por alguns dias, porém infrutíferas. O corpo de Elisa jamais foi encontrado.
Daquele dia em diante, perdi a vontade de viver, esmoreci; mas tinha Mariana, que dependia de mim. Ela era meu único alento, por ela eu viveria, embora não mais o mesmo. A partir de então, passei a trilhar uma rotina exaustiva e excruciante. Durante o período da manhã, minha filha ficava na escola e à tarde na casa da vó paterna, onde permanecia até às vinte horas, quando eu chegava do trabalho e ia buscá-la. Aos domingos íamos à praia. Não poderia negar a ela esse prazer, que tanto lhe fazia feliz. Nessas oportunidades, enquanto ela brincava, eu me perdia em pensamentos, olhar fixo na imensidão e revivia os mais lindos momentos ao lado de Elisa, não obstante me assaltassem, impiedosos, também, os mais dolorosos, marcadas por aquele dia fatídico.
Assim foi durante um ano.
Certo domingo, por que chegamos um pouco mais tarde, demos com a praia repleta, o que nos acarretou uma busca por espaço. Encontrado, por fim, o local onde passaríamos a tarde, abrimos nosso guarda-sol e Mariana espalhou seus brinquedos da maneira que pode. O tempo foi passando, ela brincava e eu olhava para o mar, esquecido da vida. De repente, um pressentimento ruim me arrancou sobressaltado do devaneio. Olhei em volta e não vi Mariana. Procurei-a e não a encontrei. Entrei em desespero. Perguntei para todo mundo, chamei pelo nome dela, gritei. Pedi socorro aos guarda-vidas, mobilizei pessoas, revirei a praia. Em vão. E a tarde principiou a morrer... As pessoas cansaram de colaborar na procura e foram deixando o local, com pena de mim, mas foram saindo. O problema não era delas. E a noite chegou... Os guarda-vidas suspenderam as buscas, com a promessa de que continuariam no dia seguinte.
Eu fiquei. A noite toda procurei, desnorteado, corroído por maus pressentimentos.
As buscas no mar, na terra, em todos os lugares foram retomadas no dia seguinte e continuaram durante duas semanas. Recorri às mídias sociais, às emissoras de rádio, de televisão e não encontrei minha filha.
Assim, envolvido, já quase sem conexão com a realidade, fui me perdendo cada vez mais nas entranhas de uma procura insana, em detrimento do trabalho, até ser demitido.
Sem emprego, as dificuldades financeiras bateram-me à porta. Logo me vi sem luz, sem água, sem gás, sem dinheiro; no entanto recusei terminantemente qualquer tipo de ajuda de familiares ou de amigos. Estava absolutamente só e na rua, por ter sido despejado do apartamento cujas prestações deixara de pagar.
Como um autômato, vaguei. Um dia, de repente, vi-me na praia, de olhar fixo no mar, esperando, talvez, que ele devolvesse minha esposa e minha filha. Seus corpos não foram encontrados, portanto poderiam estar vivas e voltariam para mim. Passei a viver ali. À noite dormia num barracão de pescadores, durante o dia olhava para o mar. Esperando... sempre esperando.
Por muito tempo, não sei quanto, esperei e, então, parti. Acho que já não esperava mais nada. O mesmo tempo que me dera uma razão para viver, embaralhara minha mente, apagara minhas lembranças e eu andei. Andei muito, de um lugar para outro, sem parar. E os meses passaram... e os anos passaram... e eu envelheci. Minhas pernas enfraqueceram...
Um dia parei para descansar numa grande praça, cheia de gente, de uma cidade qualquer, quando o milagre aconteceu: Mariana estava ali, chorando, a poucos metros de mim, exatamente como quando a vi pela última vez. Minha mente rodopiou num turbilhão e começou a lembrar. Mas as lembranças emergiam esmaecidas, embaralhadas.
- Mariana, gritei e corri para ela, que se assustou ligeiramente.
- Não sou Mariana, respondeu, sou Elisa. Mariana é minha mãe e eu estou perdida dela. Pode me ajudar a encontrá-la? Ela está no parquinho.
Mariana? Elisa? Meu Deus, as duas! E respondi:
- Claro, Elisa, eu te ajudo a encontrares tua mãe. Onde fica o parquinho?
- Não sei.
Uma pessoa que presenciava a cena, respondeu:
- A um quilômetro daqui há um parque infantil. Posso leva-los lá.
Aceitei a ajuda. Ainda sem nenhuma clareza sobre o estava acontecendo, começamos a caminhar, eu conduzindo Elisa, que, por alguma razão, confiou em mim. Ao avistarmos o parque, percebemos que havia um grande alvoroço de pessoas procurando pelos arredores. Uma mulher em lágrimas, que chamava por Elisa, nos viu, correu ao nosso encontro e abraçou emocionada a menina. Então, olhou desconfiada para mim:
- Quem é o senhor?
A pessoa que nos conduzira até ali, adiantou-se na resposta:
- A garotinha estava na praça central, só e chorando. Disse que havia se perdido da mãe, que estava no parque. Pediu ajuda a este senhor e eu os trouxe.
- Mãe, falou Elisa, apontando para mim, ele se enganou e disse que eu era Mariana.
A fala de Elisa provocou um choque em Mariana.
- Qual é seu nome? perguntou, com um sotaque carregado do inglês, olhando fixamente para mim.
- Fernando José Pereira, respondi.
- Não é possível! Meu Deus! Por que o senhor confundiu o nome de minha filha?
Contei-lhe sobre meu passado, conforme a mente embaçada me permitia. Ela entendeu tudo e jogou-se em meus braços aos prantos:
- Meu pai! O senhor é o meu pai! Graças a Deus que o senhor está vivo! Obrigada, meu Deus! Muito obrigada...!
Mariana tinha quatro anos quando a perdi e ainda guardava lembranças vivas do que acontecera, conforme passou a relatar:
- Naquele dia, enquanto o senhor permanecia distraído, afastei-me e me perdi. Comecei a chorar e pedi ajuda a uma mulher que me tomou pela mão, prometeu me ajudar a encontrá-lo e deu-me um chocolate. Comi um pedaço e dormi. Acordei-me dentro de um avião, entrei em desespero e novamente posta para dormir. Quando voltei a despertar, estava no colo de uma mulher estranha, já fora do avião. Ela percebeu que me acordara, pôs-me no chão e deixou que eu caminhasse livre, ao seu lado, por uma rua muito movimentada. Algum tempo depois, ela parou em frente a uma vitrine e se distraiu, eu aproveitei e fugi, pensando que poderia voltar para casa. Perdi-me novamente. Chorei. Um casal encontrou-me e a mulher fez-me perguntas que não entendi. Levaram-me para sua casa, onde viviam a sós. Não tinham filhos e me adotaram. Quando completei quinze anos, manifestei o desejo de vir para o Brasil, com o pensamento de reencontrá-lo. Meus pais adotivos, que sempre me amaram e faziam de tudo para me verem feliz, concordaram. Vieram comigo e ajudaram-me na procura. Durante cinco anos o procuramos, de todas as formas possíveis, em todos os lugares, até que localizamos seus familiares, que me desanimaram. Disseram-me que também o haviam perdido e que jamais conseguiram reencontrá-lo, possivelmente porque estava morto. Acreditei e pus fim nas buscas. Casei-me e tive uma filha, à qual batizei com o nome de minha mãe. Agora, porém, quando já não havia mais nenhuma esperança de revê-lo, reencontrámo-nos da maneira mais inusitada possível e aqui estamos, com muito tempo, ainda, para reconstruirmos nossas vidas e sermos felizes.
Vamos para casa?