Jarro de Vagalumes
Uma folha caiu do galho seco em meio aos destroços da cidade. O vento lá fora soprava muito forte, trazendo consigo a desolação de uma área completamente devastada. O barulho de explosões estourava ainda por todos os lados, e às vezes ouviam-se gritos esparsos silenciados logo em seguida pelo flagelo da morte. A vida era escassa e miserável. E em meio ao caos, escondido no fundo de um porão, estava uma criatura surrada e mal vestida que se encolhia, sozinha, perdida. Era a inocência em sua forma mais pura. O garoto trajava uns poucos trapos, sujos, rasgados, tinha cabelos louros desgrenhados, e semblante triste, mortiço. Dois redondos e brilhantes olhos azuis espreitavam na escuridão enquanto suas mãos protegiam o seu precioso tesouro: Um pequeno frasco de vidro com insetos luminosos, minúsculos pirilampos cintilantes.
A fome era a única que estava sempre ao seu lado, e fazia seu estômago se contorcer. O brilho místico daqueles seres de luz eram a única coisa que o mantinha preso a realidade. Eram tão bonitos... Seres de luz presos em seu próprio mundo fechado e protegido. Sua mãe lhe disse uma vez que dentro de cada coração existia uma chama que queimaria e afugentaria qualquer mal em momentos de necessidade, desde que ele seguisse o que era certo. O que ele tinha feito de errado? Por que a sua mãe, seu pai, e sua irmã maior o abandonaram? É por que o seu fogo apagou e ele não percebeu? É por isso que tudo à sua volta queimava e se desfazia em cinzas? Incluindo até mesmo as pessoas? Se pelo menos pudesse ser como um desses vagalumes incandescentes e espalhar a sua luz pelo mundo, nada disso estaria acontecendo. A culpa era toda sua. Só sua. Com certeza iria para aquele lugar que o seu pai chamava de inferno, onde os meninos maus eram castigados pelos seus pecados. Mas o que era um pecado? Ele não sabia ao certo, mas sabia que era uma coisa ruim. Será que não deveria ter nascido? Nascer era um pecado? Querer brincar na rua, jogar bola, correr, sentar no chão e querer falar com outras crianças era pecado?
Há alguns dias atrás teve um menino que se feriu durante uma brincadeira, tropeçou e caiu. Ele saiu chorando e correu até um homem fardado o acusando de estar com judeus. Ser judeu era algo ruim? Os judeus eram maus? Os seus pais correram até o garoto em seguida e escaparam pelas vielas do gueto. O pai era alemão, e a mãe judia. A irmã puxou a mãe e tinha cabelos escuros, como o breu e a pele bronzeada. Infelizmente não puxou os olhos azuis do pai. Quando os homens de farda chegaram na casa onde moravam, encontraram apenas a menina que logo foi levada por eles, arrastada pelos cabelos, para um campo de concentração Nazista. O restante da família se escondeu na casa de um parente próximo, e lá ficou por alguns dias, porém os seus pais acabaram sendo denunciados por uma vizinha que era a melhor amiga da sua mãe e tiveram que deixar o garoto sozinho no fundo de um porão, à própria sorte, enquanto se entregavam na esperança de que ao menos a sua semente pudesse sobreviver. O pequeno nunca tinha ouvido a sua mãe chorar antes, e agora ela gritava desesperada, e parecia se debater, implorando para que deixassem sua família em paz, pois não tinham feito nada de errado. Depois de levar vários socos e pontapés, os adultos foram levados para um destino que ao garoto era desconhecido, mas do qual, dentro do seu coração sabia que não nunca mais iriam voltar.
E então, enquanto tentava lembrar o rosto de seus pais, um raio de sol escapou por uma fresta recém aberta na piso superior. Ouviu batidas e sons de botas batendo contra a madeira velha e quebrada. Prendeu a respiração e se lembrou do que sua mãe havia dito antes de partir, suas últimas palavras: “Meu filho, aconteça o que acontecer, fica quietinho e não deixa ninguém te ver e nem te pegar. A mamãe te ama muito. Desculpa...”. Mentirosa. Se amava ele de verdade, por que não o levou junto? Odiava ela e não queria vê-la nunca mais. Nunca mais... “Mamãe...”. Deixou escapar um sussurro e logo ouviu duas vozes se aproximarem. Será que eles ouviram? Droga, por que tinha que desobedecer os seus pais? Era um mau menino, e merecia ser punido. “Mamãe, papai, me perdoem... Eu nunca mais faço nada de errado, nem vou machucar ninguém. Eu prometo. Vou ser um menino bonzinho”. Enquanto prendia a respiração, o primeiro soldado se aproximou com uma lanterna presa a uma metralhadora. “Estranho, eu pensei ter ouvido algo”. “Deve ter sido a sua imaginação de merda, seu fedelho. Termina logo isso daí que eu preciso beber uma.” O segundo soldado saiu e o primeiro continuou procurando, até que enxergou uma fraca luz verde azulada atrás de alguns caixotes no fundo. O soldado olhou pra cima para ver se o companheiro tinha ido embora, e foi até o fundo do porão, com a arma empunhada. A criança estava tremendo de medo e abraçou o pote junto ao seu corpo, enquanto segurava as lágrimas. “Homens não choram”, dizia o seu pai. Ele era um homem. Não iria chorar, não importa o que aconteça! A poucos metros de distância o cadete então disparou: “Ei, você aí, apareça! Se não eu vou atirar!”. O pequeno não sabia o que fazer e se lembrou da oração que os seus pais o ensinaram. Ajoelhou e começou a rezar para o homem que ficava lá no céu. Pedia para que o fogo no seu coração acendesse de novo e o mal se dissipasse diante de si. Quando o soldado finalmente o avistou, ficou parado, encarando o moleque por alguns instantes. Suas mãos tremiam, e o suor escorria pelo rosto. Parecia tão assustado quanto o outro e além disso não parecia ser muito mais velho do que ele. Era uma criança também. Ele parecia hipnotizado por aquela luz tão vívida e radiante. Abaixou a arma por um instante e se aproximou lentamente. O menino esfarrapado mantinha os olhos fechados e as mãos unidas ao peito, sem largar o seu tesouro. Após um silêncio que parecia durar uma eternidade, o pequeno soldado soltou um suspiro de admiração e largou definitivamente a arma no chão. Sentou-se ao lado do outro e ficou parado com os olhos faiscando, encantado. Quando abriu as pálpebras, não via mais nenhuma intenção hostil. O que se via eram apenas duas crianças, unidas pelo acaso e ligadas pela mesma curiosidade e desejo pueril tão fascinante e própria dessa idade. Eles não eram meninos maus, ou tinham sequer cometido qualquer pecado. Eram apenas vítimas. Vítimas do egoísmo perverso com o qual os adultos os cercaram. Eles eram a luz, pequenos vagalumes de esperança em um mundo imerso em perdição e trevas.