A Última Noite

Uma noite de chuva, recaiu na lavoura. Sobreveio ao Crepúsculo da noite o véu negro que apaga as chamas da aurora. Um gume de brilho intenso cortou a imensidão do firmamento, enquanto as nuvens cinzentas choravam, e as árvores decrépitas gemiam e rangiam num espetáculo fúnebre. O negrume frio e mortiço daquela noite fria e agourenta por um instante empalideceu. A trombeta do fim do mundo parecia ecoar, alarmando, dos confins da terra, aquela grande profecia anunciada. Todos os ponteiros do relógio em meu pulso se cruzaram, alinhados para o seu último trabalho. O que será isso que eu ouço? Talvez um riso abafado? Um soluço solitário no escuro? Que som melancólico será esse que massacra o meu peito e arrebata todo o meu ser? Ao longe ouço os badalos de um sino, um ruído brônzeo, seguido de perto por batidas de cascos contra a terra. Seriam os Cavaleiros do Apocalipse trazendo o fim da minha miséria e sofrimento?

A Água cai. Água sagrada. Água que escorre, lava, purifica, encharca, alaga tudo ao meu redor. Nela eu me perco, me derreto, liquefeito. Sozinho, mergulho em suas profundezas através do olhar, inebriado pelas ondas Impetuosas, violentas, ardilosas, imprevisíveis. Chuva que corre e escorre pelas minhas mãos, pelo meu rosto, e corpo, como nas veias percorre o meu sangue vermelho e vivo. Venha, água, caia sobre mim, e em retorno a ti farei uma oração. Tu que esconde as minhas lágrimas, misturadas com o esterco e a lama, afoga a minha tristeza, me ensina a correr contra o vento, que assobia e embala a sua dança suntuosa, harmoniosa, firme, livre... Livre... Livre de rancor; livre-nos da cor rançosa do ódio e da vaidade. Traga atrás de si o Arco Íris junto ao Alvorecer, se torne o orvalho e o perfume da manhã após a tempestade!

Do pó a terra, da terra ao pó.

No chão sob meus pés, fico a encarar meu reflexo na superfície, sob o clarão dos raios lívidos - uma sombra translúcida/opaca, hesitante, intransigente, sem rosto; Apenas uma massa mal definida, sem caráter, expressão difusa, que está prestes a esvanecer a qualquer instante. Efêmera. Uma gota de chuva, uma lágrima, um abalo sísmico. Outra gota, e a imagem some por inteiro, revelando no espelho a minha verdadeira alma. E quando me dou por mim, todas as imagens na superfície se tornam Nada. E do nada, a chuva parou. A ira Divina apaziguou. A vida na terra não acabou. O apelo velado, sombrio, triunfou. Nada. Silêncio. Nenhum som, nenhuma cor, nenhuma luz. Nenhum calor. Nenhum amor. Só o Vazio. Frio. O tempo pareceu congelar enquanto a expectativa de tudo o que era vivo era tangente, sufocante, e inundou o espaço infinito. Os Céus e terra aguardavam seu destino apreensivos.

Porém a hesitação do criador só durou um breve instante. Como se contemplasse pela última vez o fracasso de sua criação, retumbou no ar o seu último grito pelos quatro cantos da Terra, e então... o fim. No início veio a luz, e logo depois as trevas reinaram. No espaço de um átimo de segundo, uma solitária gota de chuva caiu dos céus quebrando o silêncio mórbido que se instalou, ilusório. E logo depois caiu outra, e mais outra, e mais outra, e mais outra. Sem piedade. Não, a tempestade não iria passar. Jamais irá passar. Adentrei minha casa vazia, e de lá fiquei a fitar pela janela. Encarando o vazio. Tão absorto que estava, em minha mente obtusa, quase esqueci que eu era eu e a água, era a água. Mas a chuva também era água. E eu me desfazia em nada, que na água, nada. Eu era eu e a água... Água. A chuva era a água. Eu era a água. A chuva era nada. Eu era eu... Eu era nada... Nada era eu... Nada era nada...

Arthurx
Enviado por Arthurx em 29/12/2022
Reeditado em 31/12/2022
Código do texto: T7682295
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