OS PRIMOS

Um dois, três, primos só se dividem por eles e pela unidade. Então, tudo que acontecer entre a gente fica entre a gente disse com voz estrepitosa e mandona quem parecia pouco aplicada em matemática. Até eu aprendi com a professorinha da escola primária que números primos são aqueles maiores do que um e possuem somente dois divisores, ou seja, são divisíveis por um e por ele mesmo. Foi bestagem tentar desconsertar o que não tinha conserto. Se não me calo, perdia os incisivos com tabefes. Olhe aqui, jeca, o número um aqui sou eu, a quem todos devem respeito. Engoli o então tá, sacerdotisa de araque, como Galileu Galilei se engasgou com eppur si muove, depois de obrigado a renegar, diante da Inquisição, a tese de que a Terra se move em torno do Sol e não o contrário. O irmão, o outro primo, nem disse sim nem não, todos o viam tonto como um sol que girasse em torno da terra…

Os primos desta confraria vinham passar as férias de julho e de final de ano na propriedade de meus avós, encravada no povoado de Prainha, na Pedra do Frade, onde criavam umas cabeças miúdas e plantavam, além do algodão e milho, o arroz e feijão do de comer. Adeus sossego era o mote dos adultos dito, à boca pequena, quando se anunciava a chegada das crianças. Até os gatos, cachorros e galinhas perdiam o tino com as reinações da dupla. Respeito aos mais velhos, quem via? Toma educação menino, Deus castiga menina malcomportada, tomem jeito. Pobre vovó, nem a cabo de vassoura conseguia por ordem na casa, quando eles chegavam… Corre, aparta a briga, estão se matando. Fazendo pouco-caso aos apelos, meu avô espichava o olho em outra direção, como se dissesse que se matem, quem pôs filhos no mundo cuidem… Minha mãe era quem, foi não foi, dava bons puxavantes nas orelhas, sob a censura de minha avó. É filho dos outros, isso não se faz… Ou faço isso ou eles jogam fogo na casa e põem a perder uma filha que não é dos outros, é minha… Eu gostava do bafafá, ruge-ruge, do fuxico e, assumindo a sonsice, me desviava dos carões da avó e dos puxões de orelha da mãe.

A notícia da chegada daquelas pestes trouxera meu avô, que, não estando no cabo da enxada, preocupado com a campinagem, preparando o solo, ou cuidando de bicheira dos animais, ia à cidade quengar, como dizia minha avó. Recado repassado do que fora recebido da voz truncada pelo único telefone instalado na cidade, os adultos se benziam, eu, ao contrário, já no início do mês começava a ensaiar histórias mal alinhavadas com as quais pensava impressionar os primos da cidade que chegariam dali a uma semana.

Deixa de matutice, jeca, isso é coisa do mato, quem acredita isso? E logo minha estória de trancoso era engolida por uma narrativa de verdade verdadeira e de tirar o fôlego da jeca que não conhece nada de nada. Caipora, mula sem cabeça, Saci Pererê, isso é lenda, jeca, nem assombração existe, isso é coisa de gente grande para assustar os meninos e deixar eles em paz…

Na fascinação pelos cangaceiros, o primo alinhava uma série de histórias pavorosas que não se sabe se eram partes do mundo da lua em que vivia ou da realidade extraída de livros e revistas que levava aonde fosse e folheava compulsivamente. Certo dia, Lampião e dezesseis cabras chegaram a um sítio na noite de núpcias dos filhos de dois fazendeiros que eram amigos dos macacos. Os dezesseis cabras fizeram tudo com a noiva donzela e com as mulheres novas e velhas que saracoteavam na festa. E pensa que foi só isso? Se eram ruins com as mulheres, faziam pior com os homens. Castrou o noivo e todos os homens foram obrigados a ficar nus em pelo e os cabras introduziram velas acesas no rabo deles, enquanto a cabroeira encachaçada dançavam com as mulheres nuas, fazendo mangoças. Quando foram embora usaram nas testas dos homens e nas bundas das mulheres um ferro de marcar gado com as iniciais V. L. (Virgulino Lampião) entrelaçadas. Os cangaceiros fizeram o que fizeram, por que certo delegado, que fizera safadeza com mulher e filha de um deles, era o padrinho de casamento. Daí se aproveitaram para se vingar do fazendeiro e do delegado que foi esfolado vivo, depois de ver o que fizeram com a mulher e as filhas... Aconteceu algo parecido lá em Fortaleza, não foi? Ah, sim, foi. Foi quando um rabo-de-burro entrou de noite numa casa onde dormiam a mãe viúva e sua filha, assim do teu tope, e repetiram tudo aquilo que os cangaceiros fizeram com a noiva donzela e as mulheres na festa. Tudo de dançar nu pelado? Vai dizer que não sabe o que é tudo, jeca!

Como eu ia saber o que era tudo, se minha mãe não se empatava em contar as coisas da vida e de minha avó só ouvia a descompostura dada em meu avô, ah, lá se vai, vai pra feira, nada, vai é procurar bruaca e voltar azedo de puta e de cachaça. Bruaca, azedo, puta, e nada para mim era a mesma coisa. O que ouvi da prima, no pé do ouvido, sobre o tudo me deixou alarmada e sem pegar no sono por alguns dias temerosa de que um cangaceiro ou um rabo-de-burro entrasse lá em casa e pegasse a mim e mamãe, deixando cada uma com barriga de comer melancia. E que diacho era rabo-de-burro? E como um cangaceiro ou um rabo-de-burro colocava uma melancia inteira numa barriga? Se quiser, ele te mostra, quer? Fico enciumada, mas deixo…

Tudo isso foi da vez anterior. Nesse tempo, também, houve a tentativa de mostrar como. Deixa ver se tem, tem o quê, pelo lá, lá onde, lá jeca, embaixo do umbigo. Vê aqui tá cheio, ele também, baixa o calção. Mostro nada, mostra sim, já que viu os nossos. Não pedi pra ver, mas ficou de olho arregalado na intenção de ver, tem que mostrar, senão mando ele te pegar e mostrar como a melancia entra inteira na barriga da mulher. Et voilà. Naturalmente correu um friozinho pela espinha, fiquei transida, mas como não tinha tendência ao suicídio, nem queria melancia se enramando na barriga, e já que entrara na ditadura do bordão, forçada a escolher, optei pela escolha que me deixou enrubescida, mas viva. Diacho de compromisso!

Depois daí, não sei por que, eles passaram muito tempo sem vir, dando sossego aos velhos e à minha mãe, até que a casa foi surpreendida com a novidade de que eles estavam chegando. Chegaram e bem diferentes da última vez em que contaram a história do cangaceiro e do rabo-de-burro e da época em que curiaram o que não deveria ser curiado, nem por parente, aderente, qualquer gente… A prima já quase moça em nada se parecia com o anjo pálido de outrora e já ganhava os ares das moças que vinham adquirindo o hábito de frequentar as praias de Fortaleza, onde morava. O primo, também mudado, mas ainda vivendo em seu mundinho da lua, carregando livros e revistas de cangaceiros. Ele era mais novo do que ela. E mulher se formava mais rápido, não era o que diziam? E vai crescer quando, nanica? Recebendo este elogio, eu a recebi entre os braços, demonstrando muita alegria em ver os dois.

Desta vez, minha mãe não sei se previdente, colocou cada um num quarto separado, diferente de quando os três ficavam juntos em um só, bagunçando a noite toda. Não sei se a observação coube à mãe deles, mas que vi, vi, que ouvi, também, ouvi, minha avó conversando com minha mãe. Estão impossíveis, disse a mãe deles, é bom não deixar juntos… São más influência, fique-se de olho, principalmente, nela, não é boa bisca. Má influência para o meu caráter, hein?

Dia seguinte, depois de testada sobre a solidariedade do um, dois, três, primos, os segui nas reinações com os ouvidos cheios de qualquer coisa, qualquer coisa, mesmo, você me diga, tá ouvindo? Não faça besteira, senão o couro come. Era de acontecer algo bem sério, mesmo, pois nunca vira minha mãe tão avexada com os primos e preocupada comigo. Vem, jeca, vamos ao banho na lagoa. A lagoa ficava no meio da propriedade e davam ela como parte das histórias de cangaço por estar encravada no meio de um pedregulho que servia de bom esconderijo para quem fugia dos macacos. A novidade é que o primo com a alma presa no cangaço tinha verdadeira admiração por Cara de Anzol, um dos cangaceiros mais audazes do cangaceirismo nordestino. Com fama adquirida antes de Lampião, ele era acostumado a castrar soldados e esfolar vivos delegados de polícia, não deixando a salvo delatores e fazendeiros-coronéis que de baraço e cutelo dominavam as pequenas povoações nos sertões onde praticavam os crimes mais bárbaros contra a população humilde.

Cara de Anzol e seu bando, depois de emboscarem uma tropa e matar uma ruma de soldados, perseguido, correu pras bandas do Ceará, e dizem que veio dar na Pedra do Frade, mais especialmente na povoação da Prainha, perto das terras da vó. É da história, ele se escondeu numa gruta d’água e aposto que acho a botija, atrás daquela cortina d'água.

Corria à boca miúda a existência de uma gruta formada na propriedade, a partir do trabalho de lençóis de água subterrânea, que escavaram a rocha e quando o teto do rio subterrâneo ficou muito fino, e entrou em colapso, fazendo surgir uma gruta. O primo devia ter ouvido alguma coisa dos avós ou de algum morador do lugar. Nunca ninguém deu no buraco do rio, como chamavam os antigos. Mas, do mundo da lua e teimoso, o primo, depois de asseverar que cangaceiro era bicho esperto, por que Cara de Anzol viria se esconder por estas bandas e depois nunca mais ser achado, fazendo grande chibungo, afundou no pé do pequeno salto.

Os fios d’água despenhavam de baixa altura, mas depois de rebojar numa bacia escavada na rocha pelo caudal milenar, formava um estreito e remansoso córrego de poucos mais de um metro de largura, mas que supria de água boa parte da propriedade. Na bainha da cortina d’água havia pedras de vários tamanhos que foram removidas uma a uma pelo atilado primo. Depois de reduzir um horror delas, pediu ajuda para mover uma maior. Retirado o obstáculo, a água fez forte correnteza para dentro da fresta que se abriu e depois se estabilizou, não baixando o nível, como se além da abertura houvesse a gruta tão procurada. Não vai, pode se afogar. Vai, é homem ou o quê, não vai, vou dizer a mamãe, diga e morre na hora, se quebrar o compromisso… Atendendo à sacerdotisa de araque, o primo embiocou na água buliçosa e demorou um bom bocado de tempo. Quem conseguia segurar a respiração tanto tempo? O coração bateu acelerado, se ele morre minha mãe me tira o couro… Morre nada, tu não conhece ele. Só tem o jeito de besta, vai voltar.

E voltou, vindo à superfície com algo que mostrava como um troféu. Vê esse osso é da costela de Cara de Anzol ou de outro cabra do bando, lá embaixo parece um cemitério, tem muitos ossos na água e no piso de pedra. Muita garruncha e pistolas enferrujadas, facas e vestuário, um horror de coisa do cangaço.

É só trancar o folego, mergulhar e nadar um pouco pra chegar na gruta, não é grande coisa, mas tem um bom espaço. Não, vou, vai sim, se ele foi e voltou, não tem risco. Vou lá ver esqueleto de defunto, fico sem dormir. Deixa de besteira esse osso deve ser de algum animal morto, tu já viu osso da costela de gente? Então, mergulha. E foi assim que descobrimos o buraco do rio e que ficou em segredo sob o compromisso do um, dois, três, primos. Tinha alguns ossos, mas fui convencida de que não eram humanos e para passar o medo eles empurraram o resto das carcaças por uma pequena abertura e logo a caverna estava livre dos ossos e nós fazendo conjecturas sobre o que poderia ter se passado ali.

O primo não esquecia o tal Cara de Anzol. E para fazer medo inventou que viu alguma coisa fantasmagórica e mergulhamos apressados e na saída eles caíram na gargalhada. Onde já se viu fantasma, jeca? Ele te fez medo para nós voltarmos. E lembre-se, se contar para alguém tu desaparece da face da terra como Cara de Anzol desapareceu até dos cordéis de feira. E como os mosqueteiros gritamos a caminho de casa, um dois, três, primos, só se dividem por eles e pela unidade. Para nós quer dizer que tudo que aconteça entre a gente ficará eternamente entre a gente, assustando os passarinhos que amedrontados, arribaram com a nossa algazarra.

Não voltando tarde, minha mãe apenas perguntou e como foi, foi bom, normal, sim, sem novidade. Minha mãe me conhecia, e por isso vivia dizendo dona onça é muito sonsa, mas teria pensado que, se tivesse acontecido alguma coisa, não era assim nada de tão grave, então vão se lavar que o jantar está para sair. No jantar o primo quis assuntar sobre a passagem de cangaceiros pela região, dizendo meu avô que nada aconteceu por aqui, essas histórias de cangaceiro é coisa de gente metida a cavalo do cão, tu não deve contar isso, passa por mentirosa, e logo eu que não tinha nada a ver com a história paguei o pato. Ou melhor, o pobre do pato é que pagou feio, pois suas partes nadavam no alguidar de barro onde a comida foi servida.

Aquela noite foi uma das mais mal dormidas de minha vida. Cangaceiro virava pato, pato com cara de anzol, pato que virava cangaceiro com bico de pato e os dois se misturando me perseguiam, e eu, sem escapar, terminava engolida pela pequena abertura por onde passaram os ossos que ficaram boiando no caldo de pato no alguidar de minha avó… De manhãzinha, amanheci enferma, com essas coisas de mulher como disse de cara triste, para não sair com eles, mas aonde fossem, saberia muito bem onde procurar, se cismasse segui-los. Algumas horas depois de eles sumirem, a curiosidade me empurrou e fui atrás, dando na lagoa. Ninguém à vista, mas sabia que estavam ali. Mergulhei e quando busquei ar, enxerguei os dois no fundo da gruta. Entregues às carícias, esqueceram-se de toda e qualquer precaução, e não me viram embasbacada com o que fui apurando, à medida que a vista ia se acostumando à semiobscuridade. Estavam se movimentando, se esfregando, se torcendo, emitindo ruídos e rumores que não deixaram dúvidas, de que estava presenciando o exemplo prático do significado de tudo e como as melancias iam inchar os buchos das mulheres…

Despertei do sono da inocência pelo som vibrante das paixões, ecoando sobre o canto da melodia das águas. A professora de catecismo, se ao menos imaginasse que irmãos pudessem fazer aquilo que os cangaceiros fizeram na festa e o ladrão fez com a mãe e filha do meu tope, lá em Fortaleza, persignando-se e esconjurando mil vezes, diria cheia de incredulidade, vão se banhar na gruta de fogo de satanás, e com razão, pois, até eu, não tinha dúvida de que iriam virar toicinho derretido nas labaredas eternas, por conta do pecado mortal…

Sem fazer barulho, mergulhei e saí correndo, justificando que não os tinha visto, quando mamãe perguntou cadê eles? Pelo resto do dia e da noite a febre voltou e fui proibida de brincar com eles nem hoje, nem amanhã e queira Deus nenhum dia mais… Ao chegarem, me vendo acamada, desconfiaram. Jeca, tu viu alguma coisa? Se viu fale, ou então vai se calar para sempre. Tu foi à gruta, balancei a cabeça afirmando, viu, balancei a cabeça confirmando novamente, contou a alguém, balancei a cabeça negando. E desfiaram uma história sem pé nem cabeça. Não eram irmãos coisa nenhuma. Antes de o falecido marido da tia ter se ajuntado com ela, já tinha passado por duas uniões. Ele não podia ter filhos e adotaram uma menina, a mulher morreu e ele se juntou a outra que igual a ele não podia ter filhos e como tinham uma menina adotaram um menino. Não é incesto, pecado mortal, coisa nenhuma. O marido de tua tia morreu e ela ficou cuidando de nós… Essa história era para ser um segredo de família, mas nós descobrimos. O um, dois, três para ti é uma coisa e para nós significa bem mais. Pra tu é só não conte a ninguém e para nós, eu (um) te (dois) amo (três). Pergunte a tua mãe. Pergunte a teus avós, se não é verdade que não somos parentes?

E eu ia lá ser doida de teimar com mãe e avós querendo desvendar segredo de família? Mesmo assim, sonsa, sonsa, perguntei com cara de besta, mãe por que eles sendo irmãos são tão diferentes? E eu sou natureza pra saber, respondeu perguntando e desconversou, nada dizendo depois disso, mudou o assunto. E eu fiquei fazendo conjecturas. Já tinha ouvido ela dizer que fulana pula cerca e por isso os filhos têm caras diferentes. Será que minha tia pulava a cerca? Pular cerca? Isso também era novo. Vovó se eu tivesse irmão ele seria parecido comigo? E que história é essa de irmão, menina? Como tu vai ter um irmão se tua mãe é viúva? E ela não pode casar de novo, não? É poderia, mas ela não pode mais ter filhos… Como é que não se pode mais ter filho, depois de ter um? Mas se eu tivesse era parecido, não era? Mamãe e tia não é uma a cara e o focinho da outra? Não foi desta vez também que quebrei o segredo. Mas, logo depois, ouvi as duas numa cochichada danada, o que será que essa menina andou ouvindo, será que eles descobriram e contaram? Sabem o quê, contaram o quê, e a pulga mordeu atrás da orelha… E eles lá, me contaram nada? Nem precisou cruzar os dedos nas costas, não estava mentindo… Antes de vencidas as férias, a mãe deles chegou ao sítio e carregou os dois que antes de irem foram à gruta e vi sem surpresa, conhecendo os dois, que a bagagem da chegada voltava muito mais cheia… São bugigangas pegas por aí, pra lembrar dos avós…

Decorridos alguns anos, meu avô trouxe a notícia que deixou todos aparvalhados, a mãe deixou recado que os meninos sumiram, caíram no mundo sem deixar rastro ou notícias. Soubera, também, lá de onde ia caçar bruacas, que Fortaleza estava assombrada com uma dupla de salteadores com trajes da época dos cangaceiros que atacava com violência o comércio e as mansões da Aldeota. Os boatos eram que podiam estar se escondendo em algum lugar da Prainha. O mundo tá virado mesmo, os assaltantes são um homem e uma mulher, vestidos de Lampião e Maria Bonita, onde já se viu mulher se meter nisso?

No último roubo, realizado numa casa de família rica, eles arrombaram a residência e fizeram coisas que somente os cordéis mais chulos dizem que os cangaceiros faziam com os fazendeiros. O marido amarrado teve uma vela acesa lá nele na parte de trás e ficou vendo o homem e mulher fazerem tudo com a mulher e a filha. O azar deles é que alguém conseguiu chamar a polícia e a mulher foi baleada, mas, mesmo assim, conseguiram escapar ao cerco, fugindo em uma moto, levando vultosa quantia em dinheiro. Tomaram a direção da Pedra do Frade, estando um batalhão inteiro procurando por eles na povoação de Prainha, como disse o locutor do programa policial…

Com a chegada da polícia, a Prainha apresentava-se em ebulição nunca vista nem nas quermesses da padroeira. Por toda parte fervilhavam soldados das tropas da Capital e da Pedra dos Frades. No sítio chegou uma turma perguntando se viu isso, viu aquilo, alguma coisa estranha aconteceu nos últimos dias, pode ajudar na busca, conheciam alguém assim e assado, ficassem de olho e tomassem cuidado com desconhecidos. Nessa noite minha mãe cochichou muito com os pais dela, e não foi difícil deduzir sobre quem conversavam.

Aquela história marmotosa eu conhecia de cor e salteado, e bem depois de a tropa ter saído de Pedra do Frade, com as mãos abanando, uma na frente e outra atrás, garantindo ao povo que os fugitivos deveriam estar refugiados, quem sabe, até no Amazonas ou Pará, fui à lagoa e vi o espelho d’água quase coberto pelo tapete de flor-de-lis sagrada das águas. No mais, nada tinha sido alterado, desde a última vez que ali estive com os primos. Os macacos não puderam adivinhar o retiro, e mesmo se suspeitassem, nem assim poderiam descobri-lo e menos ainda penetrá-lo, pois além das plantas aquáticas que tomaram de assalto grande parte da lagoa, a massa de água aumentou de volume, caindo numa cortina espessa, graças às chuvas fortes que o generoso São José enviou, desde meados de março.

Certificando-me que ninguém estivesse à vista, e nada pudesse ver quem não visto vadiasse por ali, pois o mato ao redor também tinha crescido e a lagoa praticamente ficara praticamente oculto, mergulhei sob o platô de onde caía a cortina d’água. Como da vez em que vira os primos fazendo tudo, fiquei estupefata, vendo os dois corpos enlaçados e mais ao fundo uma moto com uma bolsa na garupa.

Havia obrigação de delatar, feito um coronel que depois seria virado pelo avesso na ponta das peixeiras afiadas ou deveria cumprir o compromisso do um, dois, três, primos, assumido com eles? Eita, a decisão difícil do que fazer, que não fazer deixava o quengo em rebulício, até que decidi devolver a entrada da gruta a seu estado original, recolocando as pedras removidas, até deixar a passagem para o buraco do rio imperceptível.

Meses depois, terminaram os estudos na escolinha da Prainha, e como a tia remoesse a solidão em Fortaleza, convenci minha mãe que eu devia morar com ela e cursar a tão sonhada faculdade, a senhora não quer que eu seja gente? E como vai pagar os estudos, tudo é tão caro, ora, mamãe, o mundo mudou, posso arranjar emprego…

Na semana da viagem, a exemplo dos primos, fiz a última visita à gruta de onde saí cheia de confiança para enfrentar qualquer contratempo na cidade grande… E o resto está registrado na memória, guardado para enredo de um livro que penso escrever, com personagens e locais fictícios… Por enquanto, formada no mundo da pedagogia, não poderia surpreender minha mãe e apagar o largo sorriso que se abriu por trás do ó minha filha, estou tão orgulhosa....