CARNE INSOSSA

Em discurso complementar ao proferido pela promotoria que tentou convencer os jurados com a ilusão da verdade, o assistente da acusação, usou o Tribunal do Júri como picadeiro de suas palhaçadas e, como de praxe, arroubado pelas próprias tolices, proclamou que há casas em que todo dia é dia de Páscoa, não pelos membros guardarem a data santa, mas deixarem de comer a carne por ser insossa, frase ambígua e desconectada da tese defensiva.

Se não tivesse sido formulada para insuflar a claque presente ao Tribunal mais interessada nas pantomimas do que em apreciar uma atuação digna da prática do direito, o fato desnudaria o desconhecimento do autor de que até metáforas e analogias necessitam de um contexto que ajude o interlocutor a entender o sentido que se quer apresentar, o que vale, até mesmo, para uma frase de espírito.

Não era a primeira vez que o palhaço provinciano, fazedor de pilhérias maldizentes, tentava quebrar a seriedade do Tribunal e a concentração do oponente com intimidações verbais, feito uma espécie de ouriço-cacheiro a soltar continuamente seus espinhos em apartes e comentários. Casos da espécie se repetiram às dezenas, sempre do modo esperado e do mesmo ensaiado imprevisto. Não representando ninguém, representava a si mesmo como vendeiro clowd, atuando em um balcão de palhaçadas.

Desta feita, porém, a defesa não permitiu que ele levasse vantagem pela provocação, vencendo-o pelo silêncio, afinal, circo só pega fogo quando se dá atenção ao palhaço. Na seção de julgamento no plenário do júri não revidou, ignorando por completo a insinuação maldosa, pontilhada por chispas partidas dos olhos miúdos de estrabismo inverossímil e do riso disfarçado na boca de maracujá murcho coberta por ralo bigode tingido pelo fumo. A tempestade de gargalhadas esperada não passou de chuvisco em terra seca. Poucas vezes se viu o avatar de sei lá o quê tão desconcertado como nesta em que o silêncio foi escudo contra a intimidação. Com a sentença absolutória, prevalecendo a tese defensiva, o viu engasgar com o prato de carne insossa temperado com o sal da vingança.

O irônico e desajustado assistente da acusação gastava muito das horas de desocupação promovendo maledicências e facecias. Numa destas lhe atribuíra o apodo de carne insossa. O apelido injurioso pegara não só nele, mas cobria também seus familiares: a esposa e um sobrinho. Moço de bom caráter, uma grande construção humana abrilhantada nos bancos da Faculdade de Direito do Ceará e que, desde a formatura, atuava com sucesso na advocacia criminal, sob a tabuleta de “Sosa e Sosa, Advogados Associados”, na larga seara do direito penal. Tio e sobrinho descendiam de uma família portuguesa vinda de Sosa, vila e sede da freguesia portuguesa homônima de Sosa do município de Vagos, cujos membros, sabe-se lá quando, alteraram o sobrenome para a designação da vila.

O escritório onde exerciam a profissão situava-se nas proximidades da Praça Clóvis Beviláqua, frente ao Palacete da Faculdade de Direito, e a poucos quarteirões do Fórum Criminal de Fortaleza, onde o júri se realizara e ele fora destratado com a alcunha, jogada maliciosamente. Sentira o golpe, não o demonstrando, entrementes, para não inflar o ego daquele zombeteiro, que acumulava êxito nos casos, estimulando as desavenças, criando casos em que os adversários, aceitando o debate, caiam em suas esparrelas.

Sentia-se duplamente satisfeito, por colocar o zombeteiro de volta ao esgoto de onde não deveria ter saído, fazendo prevalecer a tese jurídica defensiva, contrariando a aposta do assistente da acusação e por desviar-se do achaque, apesar de se remoer com a risadaria da molecagem, costumeira corte do tal Mão de Gengibre que abandonara o Plenário com o rabo entre as pernas, como sói acontecer aos vira-latas de rua. Passa Rex, arreda que eu vou passar, pensara, sendo discreto até nos pensamentos, quando recebera os cumprimentos protocolares do vencido.

Sob a aparência casmurra, indiferente ao requinte da vida aristocrática, escondia-se uma pessoa muito discreta, mas atento as coisas. De tipo aquilino, parecia um gavião de asas cortadas a andar sobre as ruas de calçamento, abrigado do sol e do sereno, pelo chapéu panamá e terno simples, mas bem apanhado adquirido na A Cearense, “A casa que cresce diminuindo os preços”, e que nas encomendas oferecia cafezinho e suco e na entrega um alfaiate para na residência do cliente dar os últimos acertos na peça, se necessários. Manquitolava apoiado em bengala de metal e cedro curta, amenizando o esforço sobre a perna direito, carcomida por grave artrose que o fazia deambular. Sua saúde parecia não merecer grandes cuidados, não diferindo muito das pessoas octogenárias como ele.

Poucas vezes usara a bengala para fazer prevalecer seus pontos de vistas, vergastando a ignorância dos adversários, já que tinha verdadeiro horror às cenas. Abjurava os bate bocas no plenário do júri, duelando intelectualmente com pessoas sem escrúpulo tal o adversário de hoje ou na vida privada. Aos colegas tratava com respeito, embora não se vergasse diante do desconhecimento jurídico e na vida privada agia segundo as regras sociais. A esposa, apesar de bem mais jovem, aceitara, dir-se-ia que até mesmo introjetara em si o modo de ser do marido, acostumando-se ao recato, vivendo sem ilusões numa chácara alheia às confusões do centro da cidade, situada no bairro em formação do Benfica, lugar de comércio morto.

Na pequena e agradável vivenda no meio de um jardim bem cuidado, separado da rua por um gradeamento de ferro recebiam poucos amigos nos salões que se abriam apenas nas comemorações festivas que envolviam invariavelmente os aniversários do patriarca. Esses jantares comemorativos eram sempre concorridos, devido à excelência da esposa na cozinha. O apelido carne insossa, invocava uma presumível castidade dos membros da família Sosa. Segundo o fanfarrão, “eles eram tão discretos, tão discretos, que duvido que algum deles já se tenha temperado com o sal do amor”.

O bígamo, casado e amancebado a diversas mulheres, animália reprodutora de uma penca de filhos, irresponsavelmente espalhados pelos bairros pobres de Fortaleza, e num acanhado município perdido do meio das matas paraenses, fizera insinuação descabida pela primeira vez à esposa, estando esta presente no Fórum onde fora testemunhar a competência do marido. Na ocasião, levara uma senhora descompostura da mulher honesta que com classe o enfrentara, o que certamente o fizera com despeito propagar o apelido carne insossa.

Porque em seu vulgar instinto não metera o focinho em carne insossa a seu paladar de abutre, embora bem temperada com as especiarias do caráter e do pundonor, pusera-lhe o apelido carne insossa, que chegara aos demais. Acostumado aos maus cozidos de pedaços em pelancas já aprovados por açougueiros e ambulantes sobrestados em suas mulas ordinárias, topara pessoa séria e engolira em seco sua peçonha...

Rememorando o fato, valorizava mais ainda a vitória conquistada no plenário do júri. Sentiu imenso prazer em vergastá-lo diante da trupe desordeira. Mas, quem já era recatada por natureza, assumira um recato até maior, e apesar de guardar ainda todos os traços bonitos de sua mocidade, arrumava-se em modelos comuns sem o chic das sedas francesas barradas e estampadas usadas pelo “grand monde” cearense, e que pouco lhe realçavam os encantos femininos. Nunca lhe apanharam envolta nas musselinas dos vestidos de noite ou trepada em sapatos combinados de pelica e camurça ou nas plataformas inspirados numa cantora de sucesso portuguesa… As saias invariavelmente escondiam as batatas das pernas, que se ocultavam ademais em meias de seda.

De beleza madura e ímpar, ao longo dos cabelos castanhos podia se ver poucos fios de cor branca. A pele quase uma porcelana não se maculava pelas manchas dos rouges e dos pós de bonina e os lábios carnudos sempre esse arredavam dos batons da moda que giravam em torno da paleta vinho ou roxo, contornado pelo preto.

A vida do casal seguia um curso pacato, ordeiro, ordinário, marasmo que levara o tio à conclusão de que o único erro em Voltaire estava em considerar o tédio como o pior de todos os estados. O tédio, ao contrário, é a expressão suprema da ordem imposta ao mundo pelos elementos… O sol nasce de manhã, o sentinela do 10º BC inveja o galo e toca a corneta, os bondes esquentam os trilhos de ferro antes do sol, tudo harmonizado, segundo o tédio… O sentido do fraseado a mí me gusta la tranquilidad, pelo menos uma vez, se viu abalado. Numa dessas conversas de boca de noite o assunto veio à baila, sabe-se lá, de onde, já que não temos filhos, por que não ajudamos certo sobrinho meu, filho de uma irmã necessitada que mora no interior e dizem ser bastante talentoso e que me pretende seguir nos passos da advocacia?

Decorreram poucas semanas entre a conversa e a chegada à Chácara do Benfica de um jovem franzino, coberto de encabulamento, quase sem voz, o que à a primeira vista desmerecia a adjetivação que lhe atribuíam. Esse meio quilo de gente, parece um sebite mudo, como isso poderá dar certo na advocacia? Se não dissera à mulher, pensava baixinho, como era de seu feitio, receoso de ele mesmo ouvir o próprio pensamento. Mas, e ele não era dissimulado também por educação?

Superados os anos de estudo, o sobrinho diplomara-se com honras, recebendo notas espetaculares durante todo o curso, enchendo de orgulho o casal que o recebera como se filho fosse.

Nos umbrais do Fórum, voltara-se ao ouvir uma expressão de regozijo em timbre de voz muito conhecida, Parece que alguém hoje apreendeu que até pedaços velhos de carne insossa pode se transformar muito bem em prato de culinária sofisticada, não é, tio? E abraçados, tio e sobrinho iniciaram a caminhada rumo a Chácara do Benfica, Se vieram andando e com estas caras, sou de adivinhar que alguém engoliu um bom pedaço de carne insossa, e um abraço do tamanho do mundo envolveu primeiro o velho advogado de quem tirou o paletó, e em seguida seu sorridente secretário que já se desfazia de seu chique terno de listra da última moda. E a boca carnuda escorregara das faces do tio para as do sobrinho, estreitado entre as correntes dos braços. O jantar sai a poucos minutos, e é especial, pois já sabia o resultado… Banhem-se e venham à mesa, feita a advertência, empurrou os dois pelo corredor, com as mãos ajustadas às respectivas cinturas.

Esta galinhola está excelente, tia, elogiava o sobrinho, estendendo a mão para o alguidar, no que foi contido pelo tio, culinária é uma ciência, assim como a forma de comer. Modos, meu rapaz, modos, meu rapaz. Repetia sempre a última frases quando queria se fazer enfático. Não ouse em pegar as asas da galinha com as mãos. Quando os deuses desciam sobre a terra, não se alimentavam de outra forma. Tio os deuses se alimentavam com perdizes.... É mais nenhum deles sabia que não se deve preparar galinhola ou perdiz muito cedo, pois seu aroma ainda está por se desenvolver, e se assim fosse, com perdiz ou galinhola sabe o que os deuses teriam, se não tivessem essa deusa que é tua tia para lhes cuidar dos alimentos? E os três em uníssono: Carne insossa, e caíram os três na gargalhada.

Mais com pouco, o sobrinho anunciou que comemoraria o feito no júri com os rapazes do escritório, afinal o sucesso dependia muito da equipe. Depois de ter visto passarinho verde naquela tarde qualquer comemoração é desculpa para sair, vais se transformar em um grande rabo de saia, te cuida viu, rapaz, te cuida, viu rapaz? Tem muitas doidivanas doidinha doidinha pra te botar um chocalho, ora tia, só se eu fosse doido deixaria essa vida da qual hoje muito me apraz…

Enquanto se dirigia ao Café Richie, rememorou o fato a que o tio aludira. Quando um pouco atrasado o que quase nunca ocorria o tio apelava para um táxi que o ajudava as pressas a atravessar aqueles poucos quarteirões e estacionar à frente do foro. Foi num dia daquele em que tudo conspira para um resultado inesperado que pode modificar o futuro de uma pessoa que acontecera. O tio já estava com um pé no estribo do carro quando se lembrou de que deixara no quarto um documento importante para a audiência de hoje. Vai-te ao quarto e pega o documento, rápido, rapaz, rápido, rapaz. Atendendo ao pedido de urgência, não batera à porta do quarto, como de costume e no abrir da porta, deparou-se com a tia, dirigindo-se ao banho, como nascera. Desculpe-me, tio pediu o documento e esqueci-me de bater, desculpe-me… Não tem de quê, não se desculpe, o documento está aí na cabeceira. Não esboçou nenhum gesto de timidez, não se cobriu e sem se fazer de rogada, dirigiu-se ao banho, e talvez pelo olhar ainda aprisionado nas bandas dançantes sob os quadris, da porta do banheiro olhou para o sobrinho bastante atrapalhado que demorou alguns minutos para se mexer… Retirou-se da inércia, saiu da paralisia com o aviso da buzina. Que te deu rapaz, vamos perder a audiência, vamos, motorista, avexa-te, avexa-te. Esquece o dito de Pedro Segundo, desta feita, toque com toda pressa a geringonça sobre o calçamento.

Na tardinha daquele dia, de volta à chácara, o tio o censurou em sua forma habitualmente calma. Não sei o que deu nele que hoje que passou o dia aluado... Bateu à máquina uma petição com uma porção de erros, quando não esquecia o carbono e voltava ao zero, não saiu um minuto do mundo da lua, tresvariando. É bom dá um breque nesse fuxico com a bibliotecária do fórum, aconselhou o tio. Viu passarinho verde, com certeza... E não se sabe se fingindo ou não o ciume, a tia emendou com um, é deve ter visto algo que não consegue esquecer... Coisa da idade, coisa da idade, enfatizou a tia, usando a repetição verbal do marido, emendando em sequência uma enigmática citação do Eclesiastes: Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. ... Tempo de amar... Omnia tempus habent, Omnia tempus habent, o tio avesso à religião, traduziu a seu modo o que a esposa a seu ver pretendia dizer, Publius Vergilius Maro, não está na Bíblia, graças a Deus, graças a Deus que Publius Vergilius Maro, não está na Bíblia... Deu um sorriso amarelo e avisou que sairia por umas horas, vou ao O Café Globo comemorar com os rapazes do escritório. Ao Café Richie, é? Ele tem fama de ser o ponto de encontro de muitos passarinhos... Ah, tio, para, boas noites, volto no horário de sempre.

Naquela viagem, feito o caminho a pé, foi costurando tudo o que passara à mesa. A Tia que tal qual o marido era tudo, menos religiosa, quis em suas observações passar duas mensagens. Uma voltada ao passado viu algo que não esquece (e como havia de esquecer o que não mais lhe saía da cabeça?) e a outra, ao futuro. A perturbação estava às claras e ela sabia muito bem, afinal deixara ver em seu corpo o que na mulher presenteara a natureza, sem fingir nada, querendo ser vista, sem empatar olhos gananciosos de apreciar o que sobressaia de sua pele branca, imaculada..

À luz das estrelas, rememorou cada curva, cada protuberância, cada alteração de cor, cada risco das veias azuis finas marcando a curvatura dos seios, das coxas roliças, movendo-se abaixo dos quadris redondos… O passarinho visto, ao contrário do verde aludido pelo tio, tinha a aparência de uma graúna, pousada sobre a areia branca de praia… A outra mensagem, seria uma promessa? Afastou o pensamento malicioso quando se viu envolto no lufa-lufa provocado por gentes jovens e velhas que falavam alto e se confundiam na promiscuidade alegre e interessante das cadeiras de palinha do Café Richie.

Com os diabos, vociferou um dos rapazes, aí vem Mão de Gengibre, feito gambá atraído pela cachaça… Cambaleante, aproximou-se provocando os rapazes sentados em torno da mesa, na calçada do Café, especialmente, o sobrinho de quem o vencera horas antes. Garção, garção, trás aí um tira-gosto de tripa torrada para o advogadozinho tirar o gosto de carne insossa… Ou será que botou creme na carne insossa nas noites de trovoadas, quando o dono não está e o gato solta as unhas e sente que a carne não é tão insossa assim? Não era à toa que diziam que ele envergonhava a advocacia, não só pelas alpergatas e pelo paletó de brim claro encardido, usados diariamente, mas pela falta de decoro. Paredes têm olhos, e como gatos veem até na escuridão...

Não leve em consideração o que diz, está bêbado, ponderou um da turma. Passou uma boa hora prestando atenção no que os amigos falavam, tentando colher qualquer referência ao assunto há pouco ventilado. Depois estendera as boas noites, sem atender aos pedidos de Vamos, fica mais um pouco, amanhã é sábado, podemos esticar a noitada.. É melhor que não, vou dormir... Ninguém o convenceu a ficar. No caminho de volta viu-se apreensivo. Fortaleza era uma capital provinciana, quase uma cidade interiorana onde todos escavavam a vida alheia e se serviam da falta de privacidade para enxovalhar a honra de um de outro.

O que a lavadeira teria espalhado pela cidade? Ela servia a muitas casas e uma delas, como revelara fazendo um fuxico, era uma das casas mantidas por Mão de Gengibre para uma de suas manteúdas. A mulher, coitada, toda escambichada de parir, vive numa penúria de pedinte, enquanto a outra tem vida nababesca, e reparte os cobres que ele dá com os amigos… E rapariga tem amigos, “”cumadi”, eu hein? Também, feio a valer, com feiura de espantar, deitar com esse pai de chiqueiro, só nos cobres, só nos cobres… E tu, “comadi”, com ar de princesa manhãzinha cedo, e logo com esse chuvisqueiro, é novidade. Cadê o horror aos trovões e relâmpagos? E meu “cumpadi doutô” que fim leva?

O cadê saiu com um levantar de sobrancelha que parecia um bigode de olho cofiado pela desconfiança, quando soube ter ido o “cumpadi doutô” sozinho a Baturité defender uma causa. Arre, e o menino não foi? Por ordem dele, ficou, cuidasse de mim, se um trovão assustasse. Foi ordem e ordens nesta casa se cumprem. Dando uma rabissaca, saiu direto para pegar a roupa de cama no quarto do sobrinho e da tia.

Se os amigos maldaram qualquer coisa, sustentaram a cara com estoicismo, mas, que o que fora insinuado, possivelmente já caíra na boca do povo, ou, pelo menos, na de Mão de Gengibre, que na mesa do Café Richie destilou o fel do maldizer nos ouvidos de quantos ali estavam e ouviram, ou será que já provou da carne que nas noites de trovoadas, quando o dono e ausenta o gato solta as unhas e sente que a carne não é tão insossa assim? Não havia como reputar a alegação como um simples mal-entendido…

Como na ocasião em que se decidiu sobre a vinda do sobrinho, o assunto surgiu do nada, Tenho de ir a Baturité, defender um cliente de última hora, substabelecido por um advogado que abandonou o processo por motivo imperioso. E quando vamos, tu não vais, desta feita. É tempo das chuvas e tua tia tem horror aos vendavais e se angustia à noite. Preciso de ti aqui. Carece nada, leva junto, Não, vou sozinho. Parto sexta-feira, no trem da tarde, chego noitinha, assim tenho tempo de ficar em estado de juri, no sábado e domingo, e fazer a defesa na segunda-feira. Fico mais sossegado, sabendo que tu vais ficar protegida. A depender do resultado, volto no meio da semana. Aviso, se houver qualquer empecilho. Rezem, mas preparem a galinhota da vitória… E não quero nada insosso, cuide bem de tua tia, quando voltar te cobro, viu, te cobro, viu?

Deixaram o prédio da Estação Central, erguido no Campo da Amélia, sobre os túmulos remanescentes do Cemitério de São Casimiro, depois de o tio embarcar numa das novidadeiras locomotivas mistas movimentadas a diesel que pelo bilhete o levaria, junto a uma irrequieta multidão, ao último ponto da linha.

Nem bem chegaram a casa, ouviu-se bem longe o martelar reboando, ainda, tímido, mas, com a aproximação da noite numa pressa incomum, parecia tão perto que se podia imaginar a vontade dos céus de rachar a casa, por fazer a madeira velha do piso e das portas rangerem como se estivesse irritadas ou assustadas com tamanho desassossego. No céu nublado, os deuses se desentenderam e os raios pareciam prever que algo estava prestes a se abater sobre a moradia. A escuridão que envolveu a todos com seu manto apavorante seria um presságio? A luz elétrica falhava de quando em quando, sendo preciso o socorro das velas se não quisessem passar a noite às escuras.

Terminada a refeição, socorreram-se nos quartos. Deixo a porta sem chaves, no caso de susto, apele, viu? Vou rogar à Santa Bárbara, pedindo arrego para dormir, se não conseguir, chamo…

Os raios coruscaram impiedosos, rasgando os céus com suas tiras de fogo, e um, juntamente com o trovão, caiu tão próximo que era quase como se tivessem partido, não só a casa, mas o mundo inteiro em dois. Com o clarão e o estrondo, até o protetor sentiu calafrios percorrendo a linha do espinhaço, e mesmo assim, pé ante pé, ganhou o corredor. Sob os efeitos de uma ansiedade estranha colou os sentidos na porta dos aposentos da protegida, situado poucos metros adiante dos seus. Viu pela fresta no batente que havia uma luz da vela tremulando lá dentro e ouviu as molas da cama rangerem, mas o esperado pedido não veio, ou o trovão que se seguiu abafara o chamado.

Voltando à cama, contou uma a uma as horas do relógio da sala, de ouvidos atentos… As descargas e os sons não pararam, e não esperou muito, a porta forçada se abriu e uma sombra invadiu o quarto. Na timidez das pontas dos pés, a tia avançou com um toco de vela às mãos. Não consigo dormir… Sem outra palavra, se arrumou no lado da cama de casal, onde dormia o sobrinho solteiro. Puxou uma banda do lençol, depois pediu para que ele se virasse, recolhendo-se no braço posto sobre os ombros. Assim, fico mais sossegada…

Mesmo com a força sísmica, lanceando as frestas de portas e janelas que gemiam sob as reverberações dos relâmpagos riscando os largos dos céus e os trovões rolando surdo, como peças de artilharia, sumira dela os pavores noturnos. O fragor da chuva trombando nas telhas, ritmicamente aumentando e diminuindo e que durara a noite inteira, só amenizou quase manhãzinha, quando a lavadeira se fez viva, até demais, e a encontrou já de pé, com ar de princesa no tempo de chuvisqueiro... Que novidade é essa? Quede o medo dos trovões e relâmpagos? E meu “cumpadi doutô”, cadê?

Nada de novidadeiro havia no acordar cedo da tia que de costume abria a casa, e era a primeira pessoa de quem ouvia os bons dias, quando desperto da canseira dos livros ou às vésperas dos exames. Era dela que, já formado, disputava com o tio o chamego do abraço de despedida, desejando uma boa sorte, que saía da boca carnosa a parecer nascida escancarada para os risos.

A comadre é maldosa, é língua de trapo, pode espalhar maledicências, viu como ficou desconfiada, fez perguntas, insinuou respostas sobre o que não é da conta dela… Cadê o lençol cheirando a brilhantina Royal Briar, este aqui tem perfume de mulher, quem viu disso na cama de um moço solteiro? Ouvi os resmungos dela desconfiada… A tia emitiu este juízo, depois de a “comadi” sair com a pulga atrás da orelha. Sozinhos, não disfarçaram a alegria, um, feliz pela proteção recebida, e outro, se regozijando por ter executado bem a tarefa que lhe fora recomendado…

À noite em que voltara do Café Richie chateado, soubera que o tio passara mal e às carreiras, hospitalizado na Santa Casa de Misericórdia. Ele já voltara da viagem com essa moleza… Se agravou, com o tempo, também nesse esquenta esfria, chove e faz sol, quem é velho se estupora todo… Parece que pegou mal de sereno, mas parecer está bem melhor, merecendo cuidados, amanhã ou depois volta pra gente. Ouviu o que se passara no Café Richie com indignação. Ordinários, bando de amancebados que vivem no fuxico.

Apesar dos cuidados, a saúde não se restabeleceu e, poucos dias depois, a cidade se quedou atordoada com o passamento a outra dimensão do causídico de categoria espiritual ímpar, medularmente infenso às materialidades e que tanto iluminou o direito cearense que, acompanhado de cortejo simples, virou semente de saber para os pósteros num jazigo vizinho ao de Mão de Gengibre, coincidentemente, falecido no mesmo dia.

Terminado o funeral, o testamento foi aberto e, como corre amiúde, a leitura provocou grande surpresa. Todo o legado ficara vinculado ao sobrinho, inclusive o escritório de advocacia, sendo-lhe imposta a obrigação de suprir a subsistência da tia, enquanto viva estivesse. Não se preocupe, não estou desapontada. Seu tio era pessoa discreta, e nada fazia sem critério ou motivo. A propósito, nunca houve júri em Baturité. O objetivo de seu desaparecimento por uns dias foi… indo a outro lugar, resolver este negócio do testamento… Sabia que sua vida já era por demais efêmera, seu estado crítico de saúde era conhecido e desde que Mão de Gengibre me faltou com respeito, conversamos… Não eram casados? Esta é uma história que não se conta num dia… Em suma, nunca fomos casados e há tempos havia separação de corpos, devido à idade. Desse modo, o legado tinha que ficar com os parentes… Quem melhor do que tu, que o amou na mais comovente fidelidade filial e deu tanto gosto na advocacia?

Ele era muito discreto e não tinha nenhum prazer pela humilhação, mas com a idade… Mas tu és nova, deverias encontrar alguém… Eu, e cair na boca do povo? Deitar com um imundo como o Mão de Gengibre ou outro da laia dele e depois de enjoada viver como teúda e manteúda, passando de mão e mão? Não tenho vocação pra quenga, antes morresse do medo que me levassem as ventanias… Não me contou sobre a inserção da condição de me manter a teu lado até morrer… E mesmo ao lado não quer dizer sob o mesmo teto…

Estava vendo a bibliotecária e pretendia falar sobre isso, mas… Veio a doença, a morte, e tudo foi ficando para depois. Cuidei dele por muitos anos, posso cuidar de vocês e de seus filhos, se não quiser que eu vá pra outro lugar… Não tenho parente ou aderente, mas posso viver numa casinha de eira e beira nas adjacências da chácara… Quer que fique, e o povo? Que fale, quem se importa? Convença a moça… Vamos dar uma chance para a comadre refazer seus conceitos, crio um gato ou um cachorro, eles tem medo da claridade e do barulho de raios e trovões, e as tempestades de verão são especialmente assustadoras para eles como são para mim… Então estamos de acordo, durmo nos aposentos onde teu tio dormia no período da doença, vocês ocupam os de cima, ao esquecimento as noites de furtivas subidas das escadas para as conversas confidenciais e à toa…

O sobrinho tornara-se discreto e acostumado ao tédio como fora o tio. Passou a amar o tédio das coisas funcionando na precisão dos relógios mecânicos, os vizinhos fuxicando, a justiça sendo avacalhada com tipos como o Mão de Gengibre, as mulheres sendo apenas mulheres e os homens, apenas, homens…

As duas pessoas mais importantes de sua vida assumiram-se nos ares de grandes amigas, tornando-se a Tia madrinha do filho que ela levava prazerosamente todos os dias, ao passeio, acompanhada pela sobrinha que a vida lhe dera... Se Mão de Gengibre fosse vivo, faria publicar num desses epigramas maldizentes que o casal mais insosso de nossa querida Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção é tão estranho que um casal normalmente de dois passou a ser de três... Maledicência, maledicência que sabem bem destilar, sabem bem destilar, diria repetindo o hábito da ênfase o tio de sua cripta do São João Batista, discutindo com Mão de Gengibre sobre aquele dia em que dera uma pisa com embira de boi, derrotando-o no Tribunal do Júri...

Quando vivo a carne era insossa, morto, os ossos não têm sal, estou muito bem acompanhado na eternidade... Cala-te corvo... Corvo, logo eu que nunca tive um sobrinho tão sortudo quanto o Escobar... Com tamanha proa, casmurrice e sabença não soubeste ou fingiste não reconhecer uma donzelinha das dúzias? Tal qual no sagrado piso do Tribunal do Júri, onde lhe ensinei direito, vou por vocação lhe ensinar sobre ornitologia no contexto social. Se o corvo põe ovos no ninho alheio, quantos filhos gerados e espalhados por esta Fortaleza de meu Deus serão realmente seus?

É… Parece que o tio deixara sobre a terra a sutileza e a discrição de que dispunha e que lhe caracterizaram tanto em vida…