As três vidas no som do silêncio 

 

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Todo ser humano tem três vidas: a pública, a privada e a secreta (Gabriel García Márquez) 

 

Por Leont Etiel 

 

Olhou aos lados, com vagar, e nada viu à sua beira. Seguiu avante. Caminhava a pensar nos tipos de vida. Não se tratava, desde logo esclarece o narrador a quem o relato que ora se inicia foi confiado, de tipos de vida no sentido de estilo ou de modos de existência forjados para as cenas da vida social. Ou o teatro cotidiano. Podia até haver, admitamos,  alguma filigrana dessa modalidade de vivência, mas os tipos de vida que Ravi Sharma tinha em mente, claro está, iam muito além disso. 
Não que queiramos nos antecipar às revelações de Ravi através de sua própria voz, mas, de quaisquer dos modos, faria mais sentido conjecturar sobre os ditos tipos de vida trazendo a lume as palavras de Herman Hesse sobre o verão, a floresta, a morte e o outono. Isto é o mesmo que dizer que, enquanto o verão resiste à morte, a floresta resiste ao outono. E assim também se defende o ser humano, no declínio de seu verão, contra a debilidade da morte e contra o frio final do universo onde ele está imerso.  Contudo, isso não anula o incessante espetáculo da vida. Para conhecer o seu significado e vivê-lo, é preciso decisão pessoal, destemor e o sábio espírito de iniciativa. 
Repetindo de si para si que os tipos de vida têm vasos comunicantes, Ravi Sharma deu-se conta que os conteúdos dessas comunicações ora ficam no plano da percepção individual, ora tornam-se públicos, ora abrigam-se em nuvens mentais secretas. O lado “não eu do eu” que somos como persona pública, disse em voz baixa o nosso caminhante, sob a inspiração de Júlio Dinis advinda do seu Uma Família Inglesa. Os seus passos cadenciados eram ritmados pelas palavras que um insistente pensamento o fazia pronunciar: há uma parte oculta do nosso mundo interior que é inacessível aos olhos dos outros. Nela refugiam-se muitos segredos do ‘eu para o eu’, e para os outros. Por vezes, quem os detém deles se aproxima mediante raciocínios breves, não sendo raro suceder de, quando tais segredos são avistados, logo se forçar os raciocínios a tomarem outras paragens, afinal há perfumes tão sutis que, uma vez abertos os seus vasos, quase instantaneamente eles se dissipam pela atmosfera. 
Foi um dia de longo percurso, murmurou Ravi. Com pausas para breves descansos e alimentação, sendo que devemos contabilizar também, para os efeitos do devido registro, os momentos de quase-pausa em que ele esteve a caminhar a passos reduzidos em decorrência dos exercícios mentais que levava a cabo resultantes das conjecturas sobre os tipos de vida. 
Os primeiros sinais do crepúsculo já eram vistos. Tendo chegado a um cimo onde existia apenas uma residência, onde ele foi acolhido, avistava um imenso vale. Escutava o som do silêncio. Na nua luz crepuscular sobre o vale, viu dez mil pessoas, talvez mais, falando sem conversar. Ouvindo sem escutar umas às outras. Ravi falou-lhes em voz alta, mas as suas palavras caíram como gotas silenciosas de chuva. Ecoaram nos poços do silêncio. Por quê?, indagou-se. O silêncio soprou-lhe Gabriel García Márquez: Todo ser humano tem três vidas: a pública, a privada e a secreta. Talvez as pessoas estejam com as suas cabeças fechadas nas “verdades” dos seus diferentes tipos de vida. 
Já se fazia noite. Ravi sentou-se à beira do cimo, e disse: ‘olá, escuridão, minha velha amiga. Eu vim para conversar contigo novamente. A visão que foi plantada em minha mente ainda permanece no som do silêncio’. 

 

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The sound of silence/O som do silêncio (Simon & Grafunkel): https://youtu.be/pT2bzRkMfAE