Angústia

Se eu fumasse, hoje seria um excelente dia para acender um cigarro: manhã fria de uma segunda-feira nublada e chuvosa. Caminharia lentamente até a rampa de acesso da escola em que trabalho, me debruçaria na grade do hall que serve como parapeito, cruzaria a perna para trás, tragaria meu cigarro, e observaria distraída o caminhar dos transeuntes. Corpo presente, mente vagando perdida em meio ao caos interior.

Mas aqui estou. Dentro de um uno 97, com a cabeça escorada no vidro embaçado pela chuva e com uma enorme falta de ar, tamanha a angústia que sufoca minha alma. Uma mistura de tristeza e revolta. Uma sensação insuportável, como se tivesse uma faca atravessando de canto a canto o meu coração. A insônia da noite passada começa a me cobrar descanso, apesar de saber que ainda tenho um longo período de trabalho pela frente.

Desço do carro e o vento frio atinge meu rosto como um soco. Entra gelando tudo, dos poros até a alma. Sinto um calafrio sombrio. Por um momento a solidão andou ao meu lado naquela rua estreita de comércios antigos, tão antigos quanto a minha frustração. O som dos passos no asfalto molhado é ensurdecedor, fazendo o caminho até a padaria ficar mais longo. Entro, peço um café e sento numa mesinha num canto escondido, atrás da porta, como que me escondendo do frio e da solidão. Mais da solidão do que do frio. Talvez tentando me esconder de mim, dos meus fracassos e erros. Me esconder de uma vida medíocre de inutilidade.

Chega meu café, e o primeiro gole parece ser igual ao de um alcoólatra quando coloca a primeira dose de bebida na boca. Desce esquentando a garganta e saciando aquele vício pela cafeína que mantém a mente alerta - quem sabe agora eu acorde para a vida... - . Falho miseravelmente! Continuo com o aperto no peito, sensação que se intensifica quando o céu escurece ainda mais e começa a chover forte.

O vento frio me acha novamente. E de novo, sou atacada pelos meus pensamentos negativos. E antes que eu pudesse me entregar ou resistir a eles, o relógio me lembra que é chegada a hora de ir trabalhar. Pela fresta da porta entreaberta, calculo a forma mais rápida de chegar no prédio que trabalho sem me molhar tanto. E então eu vou, em passos largos e apressados, sentindo as gotas geladas tocarem meu rosto. O frio entra pela blusa como se não houvesse nada cobrindo meu corpo.

Atravesso para a calçada da escola, e quase alcançando sua entrada, uma pessoa passa apressadamente na direção oposta a minha, esbarrando em meu braço. Era um senhor, já nos seus setenta e tantos anos, de estatura menor que a minha. Pele alva, cansada e com cicatrizes. O susto foi tanto por estar distraída e esbarrar nele, quanto pela força com que nos trombamos. Quase caí.

Como que acordando de um transe na qual me encontrava tão absorta, dirigi minha atenção a ele para pedir-lhe desculpas, mas antes que eu pudesse, ele olhou nos meus olhos tão profundamente como nunca antes eu havia sentido e, disse com sua voz trêmula e rouca: "Cuidado, filha! Sua vida é muito importante, você tem um grande propósito!" Meu coração, por um momento se aqueceu.

De início achei meio tosco, claro, tipo aqueles papos de gente antiga que acreditam ter um sexto sentido aguçado, e que pode ser um profeta por conta disso. Mas depois pensei que em meio a tantas coisas ruins acontecendo, eu poderia usar aquelas palavras como pretexto para alegrar um pouco meu dia. Pelo menos eu usaria aquilo para contar como piada na hora do almoço para a turma da escola.

Sorri timidamente, pedi desculpas pelo ocorrido e agradeci por suas palavras tão gentis. Senti lá no fundo uma vontade de viver a vida de uma forma diferente, mais descolada, desprendida dessas bobeiras do dia a dia que tiram a nossa paz. Poderia ligar o botão do phod@-c por que um vovô me falou para aproveitar a vida. Pensar naquilo, numa vida sem ansiedades fúteis, foi como quando o tempo abre logo após uma chuva forte. A sensação de vitalidade que dá a terra molhada com sol e céu aberto. A ansiedade, a tristeza e a angústia de repente nem faziam mais tanto sentido assim.

Retomando meu caminho, pude notar que os sons deixaram de ser assustadores, agora podia ouvir a vida brotando nos cantos aleatórios da cidade: numa flor que fora plantada num canteiro de calçada; um pássaro que canta no telhado apesar da chuva; o Ipê que pinta de verde e lilás a fachada sem graça de um prédio. Sinto no peito aquela sensação de pós-choro, quando a alma está cansada, mas lavada. Penso em todas as pessoas que amo e se importam comigo. Sou consolada com a frase daquele senhor que eu nem conheço, mas que mudou o meu dia. Comecei a ver as coisas por um novo ângulo, outra perspectiva.

Parei de me concentrar naquela angústia e foquei nas pequenas coisas prazerosas com que eu me deparava, como aquela criança que pulava nas poças d'água sem medo de ser feliz, ou o rapaz que abria a porta do carro com um guarda-chuva para sua amada não se molhar. Tudo se tornou poético. O céu se abriu e um arco-íris apareceu em uma dessas poças d'água para me lembrar que vai ficar tudo bem!

Chegando na porta da escola, olho novamente para a paisagem para garantir que não perdi nenhuma detalhe encantador. Fecho os olhos e respiro fundo afim de encher de vida meus pulmões e de esperança meu coração. Me sinto viva novamente e com a determinação de que aquele seria um bom dia, apesar da angústia de mais cedo, da chuva e do tempo feio.

Ajeitando meu casaco, olho adiante e com confiança sigo em... Droga! Um carro passou pela poça e me molhou todinha com aquela água suja com cheiro de esgoto. Bem na hora estava passando uma garota que estudou comigo no ensino médio e que vivia tirando sarro de mim, e pra completar molhou a tela do meu celular. Teria como esse dia ficar pior? Toda aquela alegria e pensamento positivo foi encharcado pela água e pela raiva. Estava eu, suja, molhada e fedida na porta da escola.

Me sinto a pessoa mais trouxa do mundo ao me deixar levar por aquela frase de traseira de caminhão! “Cuidado, filha! Sua vida é muito importante, você tem um grande propósito!” Ensopada, morrendo de frio e muito irritada eu dei meia volta e fui para minha casa. Avisei no serviço que estava com enxaqueca e que ficaria de molho. Tomaria um banho e um chocolate quente, ficaria debaixo das cobertas choraria o dia inteiro.

Seria o dia de bad perfeito se antes de chegar em casa meu pneu não tivesse furado, e para trocar eu precisasse me molhar todinha. A chuva piorou, o céu ficou mais escuro parecia quase noite. O vento frio meio que ultrapassava o vidro do carro. Me sentia sozinha, desamparada e com frio. Enfim consigo chegar! Guardo o carro na garagem e, como de costume confiro a caixinha de correio. Não sei porquê ainda faço isso, todas as contas chegam por email e ninguém mais manda carta. Mas, costume é costume. A surpresa é que dessa vez havia uma carta.

E ela não era igual as outras. O envelope era de um papel antigo, lacrado com aquelas ceras de lacre, tinha um brasão na cera, nunca tinha visto aquele brasão. Meu nome escrito na carta com letras bem desenhadas, como aquelas cartas que vemos em filmes. Fiquei tão assustada, porém tão curiosa. Do que se tratava aquela carta? Bom só vou saber se abrir. Removo cuidadosamente o lacre para não danificar o conteúdo da carta, mas também para preservar o papel. Eu sou daquelas pessoas que costumo guardar essas coisas para recordar em dias ruins.

Quando ia tirar a carta do envelope, ouço de fundo bem baixinho alguém chamar meu nome. Não era nenhuma voz conhecida e estava vindo de dentro de casa. Destrancando a porta da cozinha, coloco a carta na mesa, pego uma faca e vou atrás da voz misteriosa. Era uma voz sussurrada, feminina, quase não dava para ouvir nitidamente o que dizia, mas eu sabia que estava dizendo meu nome. Fui avançando cômodo por cômodo, conferindo sempre atrás da porta ou de algum móvel para ver se tinha alguém.

Chegando no guarda-roupas que fica em meu quarto, senti meu coração bater tão acelerado que meu peito doía, como se pudesse sentir que tinha alguém ali dentro do móvel. A voz estava ficando mais alta e mais próxima de mim. Estico lentamente a mão para abrir a porta do meio, sinto uma mão tocar meu ombro, me dando o maior susto de todos. Susto que tomei a ponto de gritar.

Quando vou me virar para descobrir quem é, sou acordada por uma garçonete da padaria. Ela me disse que eu dormi na mesa enquanto esperava o café! Realmente a insônia da noite passada me pegou de jeito. Nunca dormi assim antes, dentro de um estabelecimento, a ponto de até sonhar. E que história esquisita, embora ela não seja tão diferente do que realmente vivo: desastres cotidianos, angústia inexplicável e uma ansiedade fortíssima me viciando em café, na busca desesperada em me manter na realidade.

Daniela Borges Brunaikovics
Enviado por Daniela Borges Brunaikovics em 12/10/2021
Reeditado em 13/10/2021
Código do texto: T7361609
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