O comprador de passados 

Limpar a memória: será que é possível? Descubra!

Por Leont Etiel

Ao cruzar os braços, já havia colocado na estante o livro que anunciava a venda de tempo pretérito, e ato contínuo, passou a pensar no seu inverso: a compra de passados. Coisa assim como aquelas lembranças que, de quando em quando, sucedem nos chegar colocando no presente momentos encantados pelo bom que foi vivê-los outrora. Tempo que passa, tempo que fica, poder-se-á dizer, conforme o modo de falar historiográfico que entende ser toda a história, na verdade, história do tempo presente. Mas coloquemos de parte estas elocubrações, porque aqui do que se trata é de adquirir passados.
Com este pensamento deambulando por sua mente, Ravi Sharma se colocou a pensar no que a memória seleciona e quais dispositivos ela aciona para selecionar, de uma maneira tal que, por vezes, mesmo quando se deseja esquecer algo, esse algo esquecido não é, pois, não raramente, se imagina o tal algo já no esquecimento, mas, de chofre, ele emerge das camadas mentais e adentra à consciência como que a questionando por qual razão ela pretende remetê-lo ao esquecimento. O facto é que, conjecturou o nosso comprador de tempos pretéritos, o passado guarda vivências e acontecimentos que se gostaria de tê-los novamente. Como também outros que não se gostaria. Mas, por cá e por agora, o que está em causa são as coisas que se gostaria de tê-las outra vez; porém, no máximo, o que se tem é um vislumbre da memória sobre elas, como que a acalentar o corpo com um toque do sentimento de recordação. Daí que, para equacionar essa questão do (ir)repetível que se gostou, estejamos a contar os planos de Ravi Sharma.
A sua estratégia consistia, primeiramente, em a pessoa nunca dizer das coisas do passado para outrem. Se fossem ditas, pelos cálculos de Ravi, era como se as lembranças passassem a constituir um mercado onde muitas outras pessoas passariam a desfrutá-las – algo similar ao exposto num romance, num filme ou numa telenovela. Isto posto, quer dizer, guardar de si para si o vivido que se gostou, o passo seguinte dizia respeito a uma negociação com a própria mente ou consciência, para outros, ou alma, para aqueles mais afeitos às coisas da metafísica. Isso pode até parecer algo de alta “complexidade”, mas só em aparência, asseverava Ravi.
Tal negociação, explicava ele, consistia em contrapartidas do comprador, que podem ser entendidas figurativamente como “moedas” para a aquisição de passados. Oferte-se à consciência à renúncia de sentimento de culpa, o que implica, por suposto, maturar o que se faz; oferte-se, também, a discrição e as medidas de proporção; oferte-se, ainda, senso de equilíbrio; oferte-se, ademais, perenidade de sentimento. Com essas contrapartidas, garantia Ravi, não só se compraria passados, não só se reviveria acontecimentos pretéritos, mas o próprio presente, o seu quotidiano, seria como que ancorado nas boas vivências de outrora, contribuindo para atenuar o peso da rotina e da monotonia do dia a dia.
Descruzando os braços, como que findando as conjecturas sobre a compra de passados, e olhando novamente em direção à estante, Ravi Sharma se viu tomado pela ideia que a insustentável leveza do ser lhe sugeria. Todos os gestos têm o peso de uma insustentável responsabilidade. O peso do quotidiano pode se tornar o fardo mais pesado. Esse fardo verga-nos, comprime-nos ao solo. Por outro lado, a ausência de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve que o ar, fá-lo voar, afasta-o do peso do dia a dia. Comprar passados é uma das formas de voar, concluiu Ravi.