QUANDO A PRISÃO NÃO TEM GRADES
Há dois meses que Miguel perambula pelas ruas, repetindo sem parar que é assassino; que matou os próprios pais e que precisa ser preso. Noite e dia é assim. Só consome algum tipo de alimento raramente, quando alguém, por ventura, lhe oferece, porque pedir ele não pede. Por isso está fraco e seu estado, tanto físico quanto mental, piora a cada dia.
Foi assim que os agentes da Assistência Social o encontraram: Um farrapo humano. E ele não aceitou ajuda. Para receber uma aplicação de soro, teve que ser sedado. Depois voltou para a rua.
Na delegacia, informaram que ele estivera lá há trinta dias, aproximadamente, dizendo que matara os pais, razão por que fora recolhido para averiguação. Duas horas depois, no entanto, já estava em liberdade, por ter sido constatado que seus pais morreram por complicações da covid-19.
A Assistência Social, interessada em fazer algo para ajudá-lo, localizou seus familiares e recebeu a seguinte informação: Miguel é o mais novo de três irmãos. Só ele morava com os pais, Sr. Antônio e Dona Rosa, e cursava a faculdade de direito, já no 5º período. Com o início da pandemia e as aulas presenciais suspensas, ele ficava em casa. Como a mãe ainda não o tivesse visto participar de nenhuma aula on-line, ligou para a universidade, preocupada e descobriu que o filho abandonara o curso ainda na segunda fase. A notícia foi um choque. Ela e o marido choraram de tristeza, mas reagiram, por fim e chamaram a atenção do “menino”, como se referiam ao caçula. Os irmãos, por outro lado, foram mais duros e ameaçam-no com expulsão de casa.
Miguel era impulsivo, ficou revoltado com a reprimenda, saiu batendo porta, estouvado, procurou os amigos e voltou tarde da noite, bêbado. Os irmãos o aguardavam. Foi outra briga e ele novamente ameaçado de expulsão.
Diante da possibilidade de ser jogado para fora de casa e sem ter para onde ir, Miguel desculpou-se, prometeu que se comportaria; que não sairia mais à noite; que não voltaria a se encontrar com os amigos e que, tão logo terminasse a pandemia, regularizaria sua situação na universidade. Jurou. Os irmãos aceitaram as desculpas, todavia reforçaram a intensão de pô-lo na rua, caso ele teimasse em colocar a saúde dos pais em risco.
Miguel não cumpriu a palavra. Na noite seguinte, depois que os genitores dormiram, saiu à sorrelfa e foi para a esbórnia com os amigos de sempre, sem a menor cuidado com as normas sanitárias. E assim passou a fazer, invariavelmente, todas as noites. Na volta, devorava o que houvesse de comestível na geladeira e deixava a louça na pia, para a mãe lavar, o que ela fazia com prazer, por acreditar que o caçula desmiolado apenas acordava durante a noite para comer.
Sr. Antônio tinha 87 anos e Dona Rosa, 80, ambos portadores de doenças preexistentes, de forma que os primeiros sintomas da doença não demoraram para aparecer, quase que simultaneamente nos dois. Hospitalizados, vieram a óbito; ela uma semana após a internação e ele resistiu por mais nove dias.
O laço fraterno entre os três irmãos, já debilitado, rompeu-se de vez. Miguel foi duramente responsabilizado pela morte dos pais e escorraçado da família, para nunca mais aparecer.
Consciente de que realmente era culpado, Miguel saiu desnorteado, com a certeza de que deveria pagar pelo crime imperdoável.
No início vagou, sem condições de tomar qualquer decisão a respeito. Num banco da pracinha sentou, depois deitou e ali permaneceu até o dia seguinte, quando, ainda no automático, dirigiu-se até à delegacia e apresentou-se como parricida.
A princípio, o agente de serviço relutou em acreditar na estranha história. O sujeito, visivelmente transtornado, não conseguia articular devidamente as palavras, como se estivesse sob o efeito de drogas. Diante, porém, da insistência, levou o caso ao conhecimento do delegado, que mandou recolher o indivíduo, para averiguação.
Descoberta a verdade, Miguel foi retirado da cela à força e mandado embora. Como não tivesse para onde ir, começou a perambular pelas ruas, onde permanece, sempre repetindo automaticamente que matou os pais e que precisa ser preso.
Ele não consegue entender que, embora longe das grades, continua na prisão, a mercê de um carcereiro implacável.