“As boas ideias e o precioso conhecimento, muita vez ficam perdidos em algum dos corredores estreitos e escuros da nossa memória; todavia, toda via iluminada que também em nossa memória se encontra, muita vez nos leva a arquivos seguros e bem guardados; deles, quando a serviço da perfídia, nossas próprias reminiscências podem revelar arraigadas em si, e para sempre conservadas, algumas impressões que por feitio próprio, são indeléveis; a ser assim, à luz, amiúde, para nos torturar em forma de lembranças, afloram algumas impressões que gostaríamos de esquecer para sempre*“.
Essa reflexão deixou constrangida a minha mente no dia de hoje, a propósito destas recordações:
Sou homem que do passado conheço muito, e pouco do futuro poderei alcançar, pois estou a principiar a minha oitava década de vida, por conseguinte em dias bem antes daquele que precedeu este de hoje, fui criança...
Ainda contava com os meus oito anos de idade, ou antes, para melhor localizar aquele distante passado, digo que estava dando meus últimos passos dentro da minha primeira década de vida, quando então, em um determinado momento, a minha mãe a servir o almoço aos seus filhos, nos apresentou uma iguaria até então desconhecida entre os seus descendentes; tratava-se da Taioba**. Ainda que fosse esta um maná, era-nos, por demais estranha, tanto pelo nome, quanto pelo fim a que se destinava. Em nosso prato, esse pasto ao aceitarmos, o que mais me lembra agora, é que apenas com os dentes incisivos, um tanto indeciso tolerei mastigá-la, logo, ficaram à mostra a iguaria e a intenção de não degluti-la; resguardando livre o maior espaço da minha boca, tudo fiz para engolir aquela massa  sem que a goela tomasse consciência daquele insulso ato; depois da peleja, aquela bucha de folhas foi parar no meu estômago, mas não sem antes, deixar na minha boca uma comichão; para justificar esse tão grande desconforto, penso que talvez, misturada às folhas da Taioba, houvesse uma ou outra das de Inhame***. Sobre tal desconforto, não falo pelos meus dois irmãos, pois, vagamente, me recordo de tê-los visto com más ou boas caras diante daquele prato; quanto à minha irmã, muito bem me lembro de sua insistência para comer o resto da minha porção que sobrara... De lá para cá, raramente dou de frente com a tal Taioba; quando isso acontece, às vezes, penso em comê-la, mas, ao me lembrar daquela má gustação, logo mudo a feição; a ser assim, até uma boa refeição dispenso... Ainda que bem administrado esse meu recalque, por vez, penso que a minha mãe, quando me ofereceu a tal Taioba, nada mais desejara além de me preparar para engolir outras indigestas iguarias... Se essa fora a sua intenção, naqueles meus dias infantis, não pude saboreá-la; mas, bem sei que de lá para cá, tenho engolido insípidos e agros pastos, quando não indigestos... Contudo, antes de semelhantes deglutições, mal posso contar com a falha vigilância da minha língua, pois inerente à sua natureza, ela dispõe de um recurso fisiológico, qual seja só através da sua porção posterior ela detecta o gosto amargo dos alimentos que de goela abaixo podem descer; assim, ainda que não sinta o doce do que por mim está a ser ingerido, ignoro quão estíptico isso possa ser, e tento engoli-lo, ainda que tenha que regurgitá-lo logo em seguida...      Não muito tempo depois de andar às voltas com aquela iguaria, entrei na adolescência comendo outras folhas; hoje, entre tantas coisas novas que ao meu alcance estão a ser sorvidas, à minha proteção, ainda me valho daquela experiência que em um passado tão distante ficou...
Esta pequenina história que aqui você está a acabar de ler, por mim, já fora contada outras vezes; toda vez que eu o fiz, em consequência da sua velha origem presa a um distante passado, alguma palavra a menos ou outra mais cindia a sua integridade, foi quando percebi que para reproduzi-la ipsis litteris teria que recorrer a outro modo e dispensar a minha destoante narrativa, assim para contá-la de forma mais fidedigna — e isto se aplica a quaisquer outros contos meus — hoje recorro à forma escrita; desta forma, penso que algum sucesso obtenho, pois, antes de levá-los ao prelo, os leio sem deixar de relê-los várias vezes; submeto-os ao jugo de outrem, sobretudo, ao dos gramáticos; estes, podem lhes tirar o excesso de mel quando muito adocicados estão, ou lhes deitar açúcar, se lhes faltarem doce, podem também lhes acrescentar sal, se os tomarem por insulsos; e ainda mais, sempre têm eles à mão uma ou mais especiarias que lhes dão habilidade tanto quanto liberdade para temperá-los a gosto;  também os confio aos verdadeiros amigos, pois estes não me querem ver exposto ao ridículo, e por desejarem o meu bem, preferem embolar algumas páginas minhas a ver-me de cara amarrotada; despois de toda essa prudência, posso tanto retocá-los que necessariamente, devem ser de novo, entregues aos críticos; finalmente, após todos os reparos possíveis, e sem nenhum receio, dar-lhes-ei à luz; a ser assim, meu caro leitor, por estar seguro de que não lhe causarei enfaro, asseguro-lhe, passei às suas mãos uma verídica e adstrita história. 
 
* — Apropriei-me indebitamente deste parágrafo; o subtrai de outro livro. Conheço bem o autor, logo, creio que ele não fará objeção, sobretudo, se considerarmos que este uso enquadra-se bem no contexto atual.
 
** — Taioba (Xanthosoma violaceum Erva da família das aráceas, originária da América tropical e muito cultivada como alimento, de folhas longamente pecioladas, e que, picadas e cozidas, servem como verdura.
 
*** — Erva também da família das aráceas, pertencente a mais de um gênero; caracteriza-se também por produzir tubérculos nutritivos. Suas folhas, ainda que cozidas, quando ingeridas, causam ao paladar, acentuado comichão.


















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Eugene Garrett
Enviado por Eugene Garrett em 26/02/2021
Reeditado em 27/02/2021
Código do texto: T7193934
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