Os segredos das paredes

 

Rene MAGRITTE | Golconde | Lithograph available for sale on www.kunzt.gallery
'A Queda' (René Magritte) 


Por Leont Etiel

 

Na rua, que era transversal, observava-se uma série de dizeres escritos nas paredes das casas. Paredes frontais externas, informe-se desde logo, para que dúvidas sejam evitadas quanto ao lado de que se está a falar.  As pessoas caminhavam e olhavam procurando entender o que cada frase dizia.
Casais saíam de casa, passavam a chave apressadamente à porta e, entreolhando-se, davam-se de ombros. Existiam aqueles que paravam analisando o que estava escrito nas paredes das suas próprias casas, como se quisessem fazer algum reparo; outros ainda, muito pelo contrário, nem sequer paravam para ver o que estava redigindo nas paredes de suas residências, demonstrando, supõe-se, convicção em relação ao que lá estava, e assim o que tinham em vista eram os dizeres das paredes dos vizinhos. Nestes momentos, contudo, esses vizinhos não estavam presentes, ou melhor será dizer, estavam, mas não estavam em frente das suas residências, e sim no interior delas.
Os dizeres pareciam expressar as opiniões e desejos dos residentes de cada casa. Ocupavam um espaço proporcional ao tamanho frontal de cada uma, chegando muitas vezes, percebia-se, até mesmo a ter frases invadindo paredes alheias. Quando isso se passava, quase sempre havia confusão, dado que os proprietários invadidos logo afirmavam que aquilo representava não apenas invasão de privacidade e propriedade, mas também apropriação subjetiva indébita, na medida em que, ao mesmo tempo que as paredes se viam ocupadas, eram transmitidos aos transeuntes dizeres e desejos como se fossem dos donos das casas das paredes invadidas. Não poucas vezes a resolução desses desentendimentos requeria a presença de autoridade policial.
Já é de supor que essa questão das opiniões e desejos nas paredes era bem mais complexa nos imóveis comerciais. À partida, havia uma questão, digamos, de natureza prática. Como os dizeres e desejos a serem expressos deveriam refletir o pensamento de quem frequentava o ambiente, é de se imaginar o imenso trabalho que teria de ser levado a cabo pelos donos de estabelecimentos, bem como ainda a insuficiência de espaço nas ditas paredes. Para equacionar esses impeditivos, uma solução inovadora veio a lume: primeiramente, colocar painéis sobre as paredes como que construindo andares sobre elas e, resolvido o problema do espaço, definir os dizeres e desejos a constar nas paredes-andares a partir de uma operação de média estatística, isto é, seriam sondados  os dizeres e desejos dos clientes e, ao fim de três dias, far-se-ia uma média ponderada deles para serem então escritos.
A ciência estatística, contudo, já foi dito, mutatis mutandis, é como se alguém colocasse a cabeça num freezer e os pés num forno, sendo que o que está a meio do corpo é a temperatura média. Por essa lógica, é que se interpõem aspectos que, na lógica invertida  de um escritor  brasileiro visitante da praia portuense da Foz, dito Dias Gomes, se colocam questões a  anunciar que, para toda “solucionática”, há uma problemática.
A problemática no caso era a Boate de Maria Bem-vinda, chamada Convidativa Discreta.  Não se tratava, claro está, da questão dos painéis, lembrando que isso significava os painéis-andares. Não. A questão não era essa. E nem poderia ser, pois o estabelecimento de Maria Bem-vinda tinha, reconheçamos, ares de uma certa suntuosidade, para o lugar, outorgada pela existência já de um primeiro piso, onde costumavam ficar os “clientes reservados” com as suas companhias. Portanto, seria descabido cogitar fazer um primeiro andar-parede com painéis.
O que se passa é que Maria Bem-vinda era senhora conhecedora dos túneis da vida privada de homens casados e “solteiros de bem”, túneis estes que desembocavam no seu estabelecimento, onde os factos ocorridos - pelo carácter deles e honrando o sentido da designação Convidativa Discreta - dali não saíam. Desse modo, Bem-vinda colocava-se, por estranho que possa parecer, dada a natureza das suas actividades, em posição de equivalência com o padre local. Ambos conheciam profundos segredos do lugar. O padre como autoridade da instituição igreja, para onde os homens acorriam para se confessar, clamando absolvição pelas peripécias na Convidativa Discreta; Maria Bem-vinda, de sua parte,  de tudo sabia, como está evidente, por ser ela quem proporcionava as peripécias a serem consideradas, a posteriori, pelo reverendo a título de absolvição em troca de algumas penitências. Há de se admitir que o trabalho do padre geralmente era de monta crescente, visto que acontecia, em diversos  casos, de receber a mesma pessoa quatro vezes ao mês para a repetição do seu  labor pastoral. O que voltava a ocorrer no mês seguinte, no outro, no outro e nos que ainda restavam no ano. Como se percebe, Bem-vinda e o vigário eram como parceiros mutuamente excludentes na relação laboral interligada que levavam a efeito.
Convenhamos que não é necessário fazer correr mais tinta para se perceber que Maria Bem-vinda estava impossibilitada de realizar a operação de média estatística referida antes e, ao cabo sucessivo de cada três dias, então colocar na parede frontal da Convidativa Discreta os dizeres apurados entre os seus frequentadores. Bem-vinda assumia quase como um imperativo categórico honrar o ofício que exercia e a reputação estampada na denominação do seu estabelecimento.  
A essa altura onde os problemas estavam a se avolumar com rapidez, e complexamente, era no contexto da máfia. Formavam-se pequenos, medianos e grandes grupos de mafiosos, geralmente conduzidos por um estratega, que, no caso, nada mais era do que ‘U Patri Nostru’ de cada grupo, quer dizer, o pai de cada núcleo mafioso. Conjecturavam. Na condição de  famílias convencionais, que se encontravam  ligadas a outro Patri Nostru na escala delitiva,  confabulavam como manter as aparências, ou dito de outro modo, como poderiam escrever palavras nas paredes, formando frases, que tivessem o  típico médio/baixo  alcance intelectivo de segmentos da classe média.  Os líderes mafiosos deram então por sentado uma decisão: a convocação de uma assembleia da máfia para deliberar sobre a questão dos dizeres nas paredes frontais das residências de cada mafioso.
Considerando as peculiaridades que marcam as estruturas das máfias, mesmo quando estas estão disfarçadas, digamos, em instâncias institucionais, a “solucionática” da assembleia logo gerou uma problemática. E difícil de ser gerida. De facto soa incompreensível não se ter pensado na problemática, que a seguir se anuncia, no momento em que se decidiu pela realização do encontro. A questão se colocava nos seguintes termos: quem iria presidir a assembleia, conduzindo a  pauta de discussões  e comandando as deliberações?
As maltas mafiosas divergiam entre si. Quase que como numa guerra interna, cada grupo da máfia reivindicava o seu direito de eleger o líder do “conclave”, que cá, claro, com esta designação, não se está a sugerir equivalência com o evento da “infalibilidade romana”. Figura de linguagem tão somente. Um modo de resolver a questão foi logo à partida descartado: seria o comandante do rendez-vous o mafioso mais idoso. Não houve como essa hipótese prosperar porque existiam quatro chefões com a mesma idade exata: anos, meses, semanas, dias, horas – e se calhar minutos, mas isso não se apurou na altura.  E nenhum deles abdicou em favor do outro. Na área das máfias, entretanto, costuma-se ter um senso prático muito aguçado, e foi com este que se sobressaiu um mafioso de média idade. Ele propôs três quartos de hora de conversações entre os principais chefões, no sentido de lograr consenso na escolha.
Proposta aceita de pronto, ele próprio imediatamente passou a buscar apoio para ser o escolhido, utilizando o estratagema do capo di tutti capi colombiano Pablo Escobar. Ou seja, nas abordagens, o mafioso de meia idade repetia a receita do chefe de todos os chefes colombiano: “plata o plomo” - o modo direto de dizer em castelhano “dinheiro ou bala”.  Senso prático sem maiores rodeios:
- Se me apoias para coordenar a assembleia, terás um numerário correspondente a uma maleta 007 recheada com notas de 500 euros.
- E se não?, indagava o mafioso abordado. Serás plomeado com balas que não deixarão vestígios sequer de teus cabelos, para que seja feito o sepultamento.
- Desde o princípio, sempre tive comigo que eras a pessoa ideal para coordenar essa assembleia.
Ao cabo dos três quartos de hora pactuados, o mafioso de meia idade havia sido escolhido por unanimidade para conduzir o conclave, que começou duas horas depois num grande salão de sua própria casa, denominado sugestivamente de O Padrinho. Sentou-se numa cadeira alta que lhe dava a ele uma visão panorâmica de todos os outros mafiosos e, em tom imperativo, foi categórico ao reiterar que a assembleia teria ponto de pauta único, no caso, como sabemos, a questão dos dizeres nas paredes. Acrescentou que o assunto deveria ser tratado com discernimento, e principalmente tendo em conta as implicações decorrentes.
A reafirmação do ponto de pauta único sobre os dizeres foi uma espécie de antídoto, pois repentinamente passaram a circular rumores segundo os quais o bloco dos mafiosos ligados ao comércio de carne suína planeava inserir na pauta um ponto de discussão relativo ao aporte financeiro que eles faziam à organização. Tratava-se de uma questão que os Leitões, como eram conhecidos – por causa do ramo comercial ao qual eram ligados -, já haviam tentado colocar sobre a mesa anteriormente, mas sem êxito. Novamente, diante da ênfase do mafioso de meia idade que conduziria a assembleia, a ideia não prosperou. Ele disse que a palavra estava franqueada a quem desejasse dela fazer uso para tratar do tema em foco – colocou uma perceptível ênfase nesta última parte da frase.  Seguiu-se um imenso silêncio, só interrompido quando um mafioso que usava um grande chapéu, similar a um sombreiro mexicano, tomou a inciativa de começar o debate.
Afirmou que a situação era demasiado séria, e que os que ali se encontravam não pensassem que estavam em um convescote. O mafioso de chapéu grande assim falou mirando mafiosos do comércio de carne suína, os ditos Leitões, como já informado, que conversavam entre si com ar de riso enquanto comparavam o tamanho de charutos que iriam acender e logo davam grandes baforadas. Passavam a impressão que o interesse maior deles na assembleia incida na inclusão do ponto de discussão sobre o aporte financeiro que faziam à organização, confirmando então as suspeitas dos rumores que circulavam antes. As palavras do mafioso de chapéu grande surpreenderam os Leitões, sendo perceptível o constrangimento estampado em suas faces. Ato contínuo, ele passou a tratar da questão que era objeto da assembleia.
De sua parte afirmou que discordava da ideia de boicotar a inscrição de dizeres nas paredes frontais. Que, por óbvio, até compreendia as razões de Maria Bem-vinda, e que, no caso dela, se tratava de facto de manter a reputação da Convidativa Discreta. Mas que, quanto à máfia, se abster de uma tal manifestação de congregação comunitária soaria suspeito. Em tom provocativo, um mafioso do grupo dos leitões interrompeu-o com uma indagação:
- Quer dizer então que vamos denunciar-nos a nós mesmos expondo nossos desejos e o submundo criminal escrevendo dizeres nas paredes das nossas próprias casas?
O mafioso de meia idade, que coordenava os trabalhos, logo o repreendeu, lembrando que a assembleia seguia uma lógica de organização, e que nesta constava que, quando alguém estivesse a falar, não deveria ser interrompido. Do contrário, não chegar-se-ia a lado nenhum. O leitão apresentou as suas escusas. Ao devolver a palavra ao mafioso de chapéu grande, foi possível notar no mafioso de meia idade uma certa complacência com ele e com o que ele dizia. Outros mafiosos foram mais além: viram uma determinada cumplicidade ou talvez até mesmo uma articulação para os dois levarem a cabo um jogo de cartas marcadas na assembleia.
Ao fazer uso da palavra novamente, o mafioso de chapéu parecido com um sombreiro mexicano exibia um certo ar de ironia, e realçou que o básico já havia dito. Que a sua tese era que a máfia não poderia se abster da inscrição dos dizeres nas paredes. Toda a problemática, pensou um mafioso que observava a condução dos trabalhos, residia nisso, pois, no fundo, o que estava em causa era que cada grupo da máfia queria utilizar os dizeres nas paredes conforme os seus interesses. Havia um grupo que, a pretexto da abstenção, gostava de exercer o silêncio nas paredes, que o mesmo é dizer nada nelas escrever. Esse era um grupo que pregava a isenção, mas que, ao fim e ao cabo, a isenção significava uma estratégia de não se ser percebido para assegurar a continuidade dos negócios delitivos. Independente do tema em pauta, havia uma grande indisposição contra esse grupo, sobretudo da parte dos Leitões, pois tal grupo combatia o consumo de charutos e aparentava bom mocismo acobertado com louvores religiosos.
A máfia dos bois era que não estava a gostar nada disso. Pois, para ela, um boi grande ou pequeno, sempre poderia ser representado por seus cornos, simbolizados como representação na pintura, sendo a mesma coisa que dizer desenhar os cornos dos bois nas paredes como obra de arte, que isso não despertaria desconfiança nenhuma do ato delitivo, valorizando-se ademais, em tempo paralelo, o produto principal que movia os negócios dos Touros, como era conhecido esse ramo da máfia. Dito de maneiras outras, era como se a máfia bovina quisesse lançar mão de um artifício refinado como estratagema  de marketing oculto para promover o seu “criminal business”.
Veja-se, por esse pequeno relato, que temos uma diversidade de interesses no contexto da máfia. Os Leitões, os Touros, o mafioso de meia idade, o outro mafioso, aquele com chapéu parecido com um sombreiro mexicano, todos eles, reunidos no salão chamado O Padrinho, estavam ali, pois não poderiam estar noutro lado em tal conjuntura, estavam ali, reiteremos, aparentemente para tratar dos dizeres nas paredes, mas o que buscavam, na verdade, era defender os seus interesses e promover os seus negócios.
Nestas circunstâncias, alianças começavam a ser esboçadas. Tudo sob a percepção do mafioso de meia idade, que já não disfarçava o seu alinhamento com o mafioso que trazia na cabeça um chapéu parecido com um sombreiro mexicano. O estrategema não deixava mais  margens a dúvidas, e o que estava em causa, para eles,  era  constituir um bloco para esmagar os Leitões, os Touros, os isentões  e outros ramos mafiosos. Tudo isso, claro está,  utilizando a questão dos dizeres nas paredes.
O estratagema dos dois mafiosos, o de meia idade e o do chapéu parecido com um sombreiro mexicano, saiu do plano das conjecturas e pulou para o plano dos factos quando eles, em conjunto, quase que falando ao mesmo tempo e dizendo as mesmas palavras, numa situação típica de coincidências que coincidências não são, quando eles, dizíamos nós, anunciaram que tinham uma forma de equacionar a questão dos dizeres nas paredes. Um imenso silêncio se fez, enquanto alguns Leitões e Touros entrecruzavam olhares. Quase que sem permitir tempo a um respiro, passaram a tratar do plano que, agora sabemos, desde o princípio tinham em mente.
Disseram que era um plano inspirado em Tony Soprano e nos patos. Um dos isentões, desrespeitando as normas da assembleia, interrompe-os:
- Difícil acreditar que uma família mafiosa, como Os Sopranos, liderada por Tony, um mafioso que caiu em depressão porque os patos do seu jardim voaram e não mais voltaram, possa oferecer algum aporte ou inspiração para resolver o problema dos dizeres nas paredes. Incrível que a ficção de uma série televisiva seja invocada nesse momento.
Era perceptível a irritação do mafioso de meia idade com a interrupção do mafioso do bloco dos isentos. Ele não só o repreendeu por desrespeitar as regras da assembleia, com a interrupção, como afirmou enfaticamente que a solução contida no plano que ele e o mafioso com chapéu parecido com um sombreiro mexicano estavam a apresentar passava, sim, pelos patos que, ao  voarem do jardim de Tony Soprano, lhe produziram a imensidão de vazio de um deserto e o levaram à depressão.  E que nada importava que a questão fosse resolvida sob inspiração de um mafioso deprimido. Dado por sentado isso, passou ao detalhamento da operacionalização do plano.
Que, primeiro, o plano consistiria na formação de  uma comissão técnica, coordenada por ele e pelo  mafioso de chapéu equivalente a um sombreiro mexicano, comissão constituída por engenheiros e empresários da construção civil, e que a coordenação seria deles dois por terem negócios nesse ramo e assim deterem expertise na área – facto este que ainda não havíamos dado conta aqui. Depois fariam estudos detalhados para construção de jardins suspensos sobre as casas, ancorados em paredes e com espaço reservado para gansos que, na verdade, são patos diferentes, mais avolumados, mas ambos da mesma família:  Anatidade.  Formar-se-ia então um consórcio da máfia, onde cada grupo mafioso aportaria um volume determinado de capital inicial, seguindo-se a oferta do serviço de construção de jardins suspensos, onde, nas paredes, os moradores escreveriam os dizeres-desejos que quisessem, ficando as paredes e os jardins, para evitar intrusos, sob a guarda dos gansos, aves das mais aptas ao ofício da vigilância.
O consórcio mafioso dos jardins suspensos, foi esclarecido, oferecia os seus serviços nos seguintes termos: construção dos jardins e oferta de gansos. Nesse caso, dos gansos, era como se fossem mão de obra de uma empresa de segurança, pelo que o consórcio mafioso dos jardins suspensos, ao equacionar a questão dos dizeres nas paredes, teria negócios em duas frentes, isto é, ao construir os jardins e ao ofertar gansos convertidos em mão de obra para os vigiar. Quanto aos dizeres a serem postos nas paredes-ancoras dos jardins, haveria um direcionamento de orientação: frases de valorização do meio ambiente. Mas isso, reconhecia-se, era uma orientação. Provavelmente, moradores continuariam escrevendo os seus desejos nas paredes. Até mesmo de maneira velada, pois, desde que o mundo é mundo, ou desde o momento  que as primeiras construções foram erguidas, que as paredes guardam segredos.
Ao cabo da exposição do mafioso de meia idade e do outro mafioso, o do chapéu parecido com um sombreiro mexicano, eram percebidos murmúrios de aprovação diante de tamanha engenhosidade. Tratava-se de uma solução que não só livrava as famílias mafiosas da dificuldade, e mesmo do constrangimento, de escrever dizeres e os seus desejos nas paredes, como também representava uma oportunidade inovadora de business. A única questão que surgiu foi se não haveria possibilidade de os gansos, tal qual os patos de Tony Soprano, levantarem voo e não mais voltarem. De pronto, o mafioso de meia idade respondeu de forma categórica:
- Hipótese nula, já encomendei estudos a respeito. O ganso tem propensão a vigiar, o pato não. Lamento que o Tony Soprano não tenha sido precavido quanto a isso. Se tivesse gansos, ao invés de patos em seu jardim, ele não teria caído em depressão.
Com essa última explicação, deu-se por encerrada a assembleia da máfia. A amenidade como ela foi concluída não tinha comparação com o clima de tensão do seu início. Os Leitões mediam comparativamente os seus charutos e davam grandes baforadas em direção aos Touros. De sua parte, os antes isentões já estavam de calculadoras, lápis e papel em mãos fazendo projeções a respeito dos empreendimentos e lucros que estavam por vir com a construção dos jardins e a oferta de gansos como mão de obra a ser usada nos serviços de vigilância.
Já se fazia noite, e era possível avistar o começo de movimento em direção ao estabelecimento de Maria Bem-vinda. Quase que buscando disfarçar, alguns adentravam à Convidativa Discreta. No seu interior, já corria solta a notícia segundo a qual um grupo inovador de empreendedores, homens de negócio do mais alto calibre, honrados e com visão de futuro sustentável, estavam ultimando procedimentos para levar a cabo a construção de jardins suspensos vigiados por gansos. E que se incentivaria que, nas paredes-ancoras, fossem escritas frases sobre meio ambiente, ao invés daquelas que traduzem o que está guardado nas paredes interiores de cada um.
- Algo muito importante para o progresso do lugar e para a promoção da célula familiar através da valorização arquitetônica das residências com a construção dos jardins, murmurou alguém que acabara de chegar à Convidativa Discreta. Sob entusiasmo, do balcão, ecoou uma voz propondo um brinde à novidade. Várias taças tiniram. Com ar sarcástico, Maria Bem-vinda riu contidamente.  
Algures, um transeunte, enquanto lia os dizeres escritos numa casa de esquina, se perguntava quantas paredes existem no interior de cada pessoa.