O trânsito das cartografias do vivido: o lugar para onde se vai e as retas do infinito

Assombrado: Os Pentagramas do Cazaquistão

Por Leont Etiel
 
Não se tratava, pensou Ravi Sharma, de buscar uma compensação, mais ou menos, poder-se-á dizer, como se fosse uma aposta financeira, do tipo um investimento feito agora para ser resgatado no futuro. Fazei o bem, não pela promessa de um futuro céu, mas para que a vida terrena seja melhor – esta foi uma insígnia soada em tom de originalidade, porém, deve-se estar ciente, já tem sido repetida cá e algures.
O facto era que, com cartas sobre a mesa, sendo o mesmo que dizer com possibilidades consideradas, umas com potencial real de efetivação, outras nem por isso, a questão em última instância, e sem máscaras, dizia respeito ao jeito de ser e de estar no mundo. Foi o que Ravi pensou. Desde logo, não se veja aí nenhuma dicotomia, quase que impondo que se opte por isso ou por aquilo, pois, desse modo, as margens para experimentar a vida ficam tão reduzidas a ponto de se indagar se o vivido é realmente vida, e, em sendo assim, mais parecendo que ela, a vida, é um bailado onde os passos nunca variam.
Ravi Sharma observou um horizonte nublado, não obstante a estação da vez ser o verão, que, diferente das expectativas, não marcava temperaturas elevadas. Ele avistava um imenso campo, com grandes vales e colinas, como que portando mensagens inacessíveis à percepção imediata, embora eles, os vales e colinas, geralmente falem explicitamente já por existirem, de modo silencioso, como sendo uma forma de expressão cósmica na Terra, a dizer que tudo é conexão, que tudo está relacionado, mas nem todos entendem que esse tudo é parte do todo universal. Ressoou novamente aos ouvidos de Ravi: Fazei o bem, não pela promessa de um futuro céu, mas para que a vida terrena seja melhor.
- Por que pensas que assim deve ser?,  de chofre, foi indagado Ravi por uma surpreendente presença.
- E quais os fundamentos para não o ser?, foi a resposta questionadora que lhe calhou pronunciar.
- Fundamentos, fundamentos mesmo, isso não os tenho, limitou-se a dizer o inquiridor.
- Pois eu me movo sobre a tua falta de fundamentos, ou melhor, a minha convicção se fortalece pela ausência de evidência do que tu afirmas, enfatizou Ravi.
- Mesmo assim continuo pensando como me habituei a pensar, retorquiu o inquiridor.
- Sim. Sem fundamentos, disse em tom incisivo e definitivo Ravi.
Talvez, para muitos, o véu do desconhecimento seja uma lente pela qual se vislumbra e se encontra conforto para o modo de existir. Mas, não ver como as coisas são, será mesmo uma forma de efetivar a potencialidade da existência?, questionou-se Ravi.
Diante de si, surgiu uma multidão. Pessoas de idades variadas, mas uniformizadas na forma de se portarem, tão iguais nas expressões, tão similares na maneira  como repetiam as mesmas palavras, tão semelhantes no fervor que as demonstravam, que mais pareciam ter nascido no mesmo dia e horário. Indistintas. Um só corpo com bocas diversas emitindo vozes que diziam as mesmas coisas.
- O que se passa?, sondou Ravi junto a um jovem exaltado.
- Não está a saber ou não é de cá?, foi o que obteve como resposta.
- As duas coisas. Não sou de cá e se calhar por isso não estou a saber.
- Uma raridade então!
- De raridades também a vida é feita, ou melhor, de diferenças em relação ao que é habitual.
- Pode ser, mas não deixa de ser estranho!
- Não percebo. Enfim, o que está a ter lugar?
- Senhor, é bastante inusual que, mesmo um forâneo em estadia por estas paragens, desconheça uma manifestação da verdade do plano vindouro e do bem que ele trará.
- Mas, como? Escuto as pessoas pronunciarem palavras de guerra! De eliminação. Não entendo como de árvore contaminada bom fruto possa nascer...
Fervorosamente o jovem reagiu levantando o dedo indicador a Ravi, a essa altura já tendo a companhia de manifestantes de maior idade, sendo dois homens e uma mulher, que num só brado foram retumbantes:
- Inimigo em toda parte, cegos da verdade vindoura, descomprometidos com o bom plano da redenção, uma só ação: esmagar!
Ao redor de Ravi, uma aglomeração barulhenta aumentava, fazendo-o perceber que, perante a turba, o despertar da razão é coisa rara ou talvez até mesmo algo inalcançável. Deu por encerrado o que pretendia ser uma mera cavaqueira sem maiores pretensões, e observou como as pessoas tendem a se regozijar com pretensas verdades que elas próprias criam e das quais se tornam dependentes. É como se, indo a lugares diferentes, apenas viajassem em círculo por seu próprio interior. Por assim dizer, as ideias oriundas dessas pretensas verdades, ao colonizarem mentes, passam a possuir as pessoas, e não o inverso.
Fazei o bem, não pela promessa de um futuro céu, mas para que a vida terrena seja melhor – foi como se isso fosse anunciado pelo crepúsculo que principiava e informava que o dia estava prestes a terminar. Se calhar é impróprio associar o lúgubre ao noturno, com isso querendo dizer que o tempo-noite é de obscuridade e de fenecimento do acalento que o crepúsculo evidencia. É provável, imaginou Ravi Sharma, que o noturno propicie possibilidade, na calma da ausência de barulho, para maturar e germinar no dia seguinte as atitudes que, em potência, a sinceridade da nostalgia crepuscular reflete nos sentimentos que desperta.
Forâneo, assim fui definido, pensou Ravi. De facto, isso o sou, murmurou ele. De todas as partes e de nenhuma. Sentou-se no chão, desdobrou um mapa, observando-o por ângulos diferentes, e não viu nenhum país, nenhum estado, nenhuma cidade. Deu-se conta que, de facto, ninguém foge de si mesmo e que o lugar para onde se vai está dentro de cada um. A localização é simbólica.  Viagem para o encontro consigo mesmo. Fez uns riscos no centro do mapa, em forma similar a um pentagrama, e em seguida o guardou.
Ao levantar-se do chão, Ravi Sharma viu que, passada a manifestação dos fervorosos da verdade vindoura, o cenário que se apresentava tinha semelhança com o rabisco que acabara de fazer no mapa. Era constituído por cinco retas ligadas a um núcleo comum, e cujo horizonte de cada uma era o infinito. Pensou no significado de um pentagrama dentro de outro pentagrama e caminhou em direção ao núcleo das cinco retas. O sentido das coisas, para quem quiser compreender o enigma da vida, conjecturou.