[#OO1]: Contando os Passos
ALEXANDRIA, EGITO.
— Maldição. Olhe só, Cássio. Veja, veja! Olha como o céu está limpo. Que calor maldito!
Dizia Lúcio muito descontente com o clima seco e sem nuvens de Alexandria, embora adorasse o vento gélido da madrugada, nenhuma brisa noturna compensava aquele sol do meio dia.
— Lúcio, olha lá o Antônio! O que ele está fazendo?
Cássio, muito pelo contrário, parecia por demais satisfeito com o clima já que nunca abria a boca para esbravejar nenhuma espécie de reclamação desdenhosa. Lúcio sempre achou muito curioso, na verdade, sempre pensou ser inacreditável que alguém fosse tão tranquilo e paciente como Cássio, como se tivesse o hábito — talvez até mesmo inato para a gentileza e simpatia.
— Ih, rapaz... Penso que sei o que ele está fazendo!
Redarguiu animado, como se visse na desordem daquele homem ao horizonte uma oportunidade para o chiste do dia. Até mesmo se esqueceu de que estava com calor — ou talvez fosse dramático demais para lidar com o clima do Egito tal como ele, inda que adorasse aquele solo repleto de saberes e curiosidades. Tal como um raio que dispara do alto céu enraivecido, a ideia surgiu-lhe como relâmpago palpável. Então, o homem loiro manifestou-se em um tom de voz grosso e baixo, e em sussurros proferiu como se conservasse todos os segredos de estado na mente — e a malícia de um homem maldoso ao coração. Sugeriu, entre um suspiro e outro que lhe cortava a garganta entre os risos e soprados e inspirados.
— Cássio, eu tive uma ideia cá comigo. Veja só. Outro dia estava eu lá na biblioteca com o mestre revisando alguns rolos de papiros, e eis que de repente ele comentou comigo algo muito curioso.
— E o que era? — Cássio questionou, um tanto mais interessado do que surpreso. — Pois escute que vou lhe contar. Logo ali ao sul de Siena¹ diz-se que ao meio dia de solstício² de verão as sombras projetadas pela coluna do templo diminuem conforme o meio dia se aproxima.
— E é? Nunca percebi! — comentou Cássio em um tom de perplexidade.
— É claro que não percebeu. Mas tem mais, ouça! E perto do meio dia...
Lúcio fora interrompido por Cássio que elevou a mão destra ao peito com tamanha perplexidade, pois jamais ouvira ou percebera tal coisa semelhante. O que por um segundo muito passageiro até chegou a fazer sentido para alguém como ele — que não era um cientista, mas que adorava ouvir os professores lecionar sobre os segredos do universo.
— Não creio nisso! Ora, ora!
— Mas sim, HOI! Deixe-me terminar, homem! — continuou, e vez ou outra o olhar sorrateiro de soslaio vigiava os lados enquanto Antônio contava os passos a fio-de-prumo — Ao meio dia, ouça! Ao meio dia! Precisamente ao meio dia os raios solares escorregam pelas paredes cimentadas do poço e refletem a luz do sol lá em seu fundo.
— Sim, e daí?
— E daí que isso quer dizer que o Sol está exatamente a prumo; pois, só assim para iluminar as águas do poço e fazer com que as demais desapareçam, contudo, aqui em Alexandria as sombras são perfeitamente mensuráveis!
— E o que isso tem a ver com Antônio, Lúcio? — indagou, talvez um pouco até desorientado pela carga de informações; mas com a serenidade e a convicção de que em algum momento compreenderia.
— Tem a ver que para concluir o experimento no próximo solstício de verão ele precisa da distância de Alexandria até Siena! — completou, e tendo cerrado o punho encostou aos lábios o dorso pálido das finas falanges no intuito de conter o riso maquiavélico, que abafado pelas ideias maldosas o fazia dar de ombros inúmeras vezes. — Ouça, ouça. Ele pediu a Antônio que contasse os passos daqui até Siena! — Ah não! — retrucou animado — você percebeu que já é a terceira vez que ele começa a caminhar?
Questionou, e como bom amigo que era sem nem mesmo perceber acabou entrando no espírito da troça. Pobre Antônio, pela terceira vez regressara ao estado primário de sua longa e calorosa jornada até Siena. Lúcio, que era amante de boas zombarias abraçou a oportunidade para o grande infortúnio de Antônio. Cássio antes mesmo de concordar já estava rindo desengonçadamente. Assim seguiram os dois amigos para perto de Antônio, cuja concentração encontrava no número 320 o conforto necessário para compensar todas as outras vezes em que havia se perdido na contagem dos passos. Lúcio se questionou — como em todas as vezes oportunas — o porquê de o homem não pegar um pedaço de papiro para marcar os passos e evitar de se perder. Antes mesmo que o trotar arrastado e empoeirado das sandálias dos dois rapazes que se esbarravam em um caminhar desengonçado chegassem próximo a Antônio, o rapaz de cabelos negros e olhos amêndoas brilhantes, revestido em tecido branco drapeado, e uma fina corda de ouro amarrada ao quadril arqueou o braço a altura como se os quisesse parar ali mesmo à medida que as íris cercavam o chão. Mas Cássio e Lúcio vestiam-se como egípcios (vez ou outra), de preferência igual aos que pareciam não ter nada a perder, assim era mais fácil de se misturar a ralé.
— Parem aí mesmo! — rosnou, como se fosse um profeta. Talvez fosse esse o motivo pelo qual já começara aquele caminho pela terceira vez.
— Mas nós nem fizemos nada! — replicaram na mesma medida e tom, dotados de um cinismo que pingava ao canto dos lábios de cada um dos dois em um meio sorriso matreiro.
— Ei, Antônio. Tu estás contando os passos por qual motivo, velho amigo? — Lúcio tomou a frente, questionando descaradamente como se não soubesse. Na verdade, sabia tão bem o motivo que era até vergonhoso fingir não ter o conhecimento acerca do responsável pela mazela do amigo.
— Como se tu não soubesses, hein! Fingido! Víbora pestilenta! — retrucou enraivecido, ainda observando o chão na auspiciosa tentativa de conseguir manter a concentração.
— Ei, Antônio. Quantos passos já contou? — questionou Cássio, em um cinismo detestável.
— 320 passos. Por quê? — franziu o cenho e imediatamente negou com a cabeça, pois sabia que se desse atenção se perderia mais uma vez. — Vão embora!
— Tem certeza, Antônio? Sabe, lá de longe eu contei 321! — proferiu a víbora
pestilenta com a maligna intenção de plantar a semente da dúvida.
— Impossível. Você contou errado, Lúcio! — retrucou, desesperado levou as mãos à cabeça e suspirou. — Você quer me confundir. Ô PESTE RUIM!
Lúcio e Cássio caíram na risada ao perceber o misto de desespero e raiva que assolavam o cansado espírito de Antônio, curvando o corpo como se a barriga doesse mais do que angústia que dava luz ao desespero do contratado ali a frente. Contudo Antônio, convicto de que era mais uma das inúmeras outras troças sem graça alguma dos velhos amigos, sacudiu a cabeça e seguiu em frente. Mas ali haviam dois ratos extremamente insistentes, e assim seguiram na companhia dele cantando uma sequência de números totalmente aleatórios cuja harmonia penetrava à mente do Contador de Passos desorientado. Fora muito resistente. E pela primeira vez, em um lapso de esperteza muito incomum para o jovem Antônio, fez-se do cérebro o uso necessário e marcou a areia com o indicador o número exato em que havia parado. 333 era o passo da vez.
— EI, ANTÔNIO! É 336, HOY! 337! — lá ia Cássio a bradar enquanto Lúcio se acabava de rir da situação conflituosa que propositalmente geraram na cabeça do amigo, cuja confiança depositara completamente no escrito tatuado a areia.
— Ô MALDIÇÃO! Que os Deuses os condenem por essa zombaria!
Uma pena Antônio não ter contado com o fato de que naquele momento o vento corria nervoso, e em metade de um minuto corria junto com o seu raciocínio. Lúcio e Cássio só não pereceram ao chão em tamanha zombaria — e com tamanho escárnio que ecoava entre os transeuntes que ali seguiam —, porque o jovem ao ter percebido que teria de recomeçar novamente sentiu-se impelido a punir os seus zombadores. Voltaram todos para o começo novamente, como crianças envelhecidas a cortar caminho entre um egípcio e outro. Seguiram todos, menos Antônio, que retornou à sua contagem inicial sem nenhum ânimo e determinação!
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NOTA: Antônio bem como Cássio são personagens fictícios; contudo, é sabido que Eratóstenes contratou alguém para calcular em passos a distância de Alexandria até Siena (800km). Se a sombra de Siena tem um comprimento e a de Alexandria tem o mesmo comprimento, faria sentido se a terra fosse plana. Logo, Eratóstenes se questionou como poderia não haver uma sombra em Siena, mas uma bem definida em Alexandria. A única resposta possível, era de que a superfície da terra era curva; portanto, quanto maior a curvatura, maior é a diferença do comprimento entre as sombras.
1. Siena (do antigo grego, Syena) atual Assuão.
2. Solstício: o dia mais longo do ano, 21 de junho.