A NECESSIDADE DO SOM DO SILÊNCIO
 
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Por Leont Etiel
 
Antes mesmo de o trem chegar à estação da pequenina vila, o velho principiou a arrumar sua bagagem, para ser um dos primeiros a desembarcar. Ao mesmo tempo que escutava o apito acionado pelo maquinista, avistava o pontilhão que anunciava a chegada ao destino.
Ao adentrar na estação, viu que ainda restavam evidências da presença dos ingleses que por ali estiveram entre fins do século XIX e começos do século XX tratando da implantação dos caminhos de ferro: Great Werstern, pode ver escrito o senhor no que restava duma placa aposta ao lado da bilheteira. Outra placa logo avistou ao cruzar os trilhos para o lado oposto, onde lia ‘Pare, olhe, escute’. A recomendação remeteu-lhe, de imediato, a reminiscências, para, sem demoras, em seguida, voltar ao momento em que estava, chegado àquela pequenina vila de priscas lembranças.  Mas isso sucedeu assomando-se ao seu pensamento o senso poético nostálgico de Goethe com a ideia de ‘puberdade repetida’ e ‘atividade ininterrupta até a morte’: A crença em nossa imortalidade vem do conceito de atividade, pois se eu me conservo ativo ininterruptamente até a morte, a natureza vê-se obrigada a conceder-me uma nova forma de existência logo que o meu espírito não possa suportar mais a minha atual forma corpórea.
Talvez, conjecturou o senhor, talvez, repetiu uma e outra vez, acentuando o tom de dúvida, ao passo que se aproximava do casarão de estilo imitativo neoclássico onde viveu em tempos distantes, e que agora seria novamente, em reencontro, porto de abrigo, o último, do seu longo percurso existencial, antes da viagem derradeira ao abraço da natureza, à imersão no indecifrável que a terra carrega, que é soprado pelo ar, que transpassa as florestas, que sussurra no vento do alto das montanhas, que se move no movimento das águas, que sucede de ser cinza para ser terra novamente quando o fogo diz de si.
Tudo isso pensado com o velho já ali, bagagem arriada, de bruços sobre a janela, observando o lugar onde outrora, dum lado, ocorria de se aglomerarem os tropeiros, e, do outro, os caixeiros viajantes. Tudo isso pensado também enquanto o senhor desviou o olhar em direção à igreja de uma torre só, pequenina, que os olhos alcançam, ao fundo da vila, logo que nela se adentra. Tudo  isso pensado para imaginar, como possibilidade, que o espírito livre e independente  não morre para si e para os outros, e que este tanto mais se elava quando não considera a morte uma assombração enigmática, mas sim como uma forma entre outras da natureza.
Era um tempo de fim de verão e de início do outono. As folhas das árvores em frente ao casarão começavam a vir abaixo. Se a primavera é o tempo do emergir e o verão das intensas manifestações, o inverno e o outono são tempos distintos, da contenção. Taciturnos, pode ser dito.  Anunciadores de uma lição: a necessidade do som do silêncio. Do valor da discrição e mesmo do anonimato.  Convicção que se reforça na fase última da vida, afirmou o velho de si para si. Sentiu uma grande paz e serenidade. Tomado pelo conforto da tranquilidade, acomodou-se numa rede e iniciou a leitura de ‘uma defesa do anonimato’, do poeta e contista mexicano José Emilio Pacheco:

Não sei por que escrevemos, George
e às vezes me pergunto por que mais tarde
publicamos o escrito.
Quer dizer, lançamos
uma garrafa ao mar, que está repleto
de lixo e de garrafas com mensagens.
Nunca saberemos
a quem nem onde as arrojarão as marés.
O mais provável
é que sucumba na tempestade e no abismo,
na areia do fundo que é a morte.
e no entanto
não é inteiramente inútil este trejeito de náufrago.
Porque num domingo
liga-me você de Estes Park, no Colorado,
e diz-me que leu o que está na garrafa
(suplantados os mares: as nossas duas línguas).
E quer fazer-me uma entrevista.
Como explicar-lhe que jamais dei
uma entrevista,
que a minha ambição é ser lido e não «célebre»,
que importa o texto e não o autor do texto,
que descreio do circo literário.
Logo recebo um imenso telegrama
(o horror que se há-de ter gastado ao enviá-lo).
Não posso responder-lhe nem deixá-lo em silêncio.
E ocorrem-me estes versos. Não é um poema.
Não aspira ao privilégio da poesia
(não é voluntária).
Vou antes usar, como o faziam os antigos,
o verso como instrumento de tudo aquilo
(relato, carta, drama, história, manual agrícola)
que hoje dizemos em prosa.
Para começar a não responder-lhe direi:
Não tenho nada que acrescentar ao que está nos meus poemas
não me interessa comentá-los, não me preocupa
(se algum tenho) o meu lugar «na história»
(tarde ou cedo a todos ceifa o naufrágio).
Escrevo e isso é tudo. Escrevo: dou a metade do poema.
Poesia não é sinais negros na página em branco.
Chamo poesia a esse lugar do encontro
com a experiência alheia. O leitor, a leitora
farão ou não, o poema que tão somente esbocei.
Não lemos a outros: lemo-nos neles.
Parece-me um milagre
que alguém que desconheço possa ver-se no meu espelho.
Se há um mérito nisto — disse-o Pessoa —
cabe aos versos, não ao autor dos versos.
Se por casualidade é um grande poeta
deixará quatro ou cinco poemas válidos
rodeados de fracassos e borrões.
As suas opiniões
são de verdade muito pouco interessantes.
Estranho mundo o nosso: cada dia
lhe interessam mais os poetas;
a poesia cada vez menos.
O poeta deixou de ser a voz de sua tribo,
aquele que fala pelos que não falam.
Evaporou-se em nada ou é mais outro entertainer.
As suas bebedeiras, as suas fornicações, a sua história
clínica,
as suas alianças ou picardias com os demais palhaços do circo,
com o trapezista e o domador de elefantes,
têm assegurado o amplo público
a quem já não faz falta ler poemas.
Continuo pensando
que é outra coisa a poesia:
uma forma de amor que só existe em silêncio,
num pacto secreto entre duas pessoas,
de dois desconhecidos quase sempre.
Acaso leu você que Juan Ramón Jiménez
pensou faz meio século editar uma revista.
Ia chamar-se Anonimato.
Publicaria textos, não assinaturas,
e far-se-ia com poemas, não com poetas.
Eu gostaria como o mestre espanhol
que a poesia fosse anônima já que é coletiva
(a isso tendem os meus poemas e versões).
Possivelmente você dar-me-á razão.
Você que me leu e não me conhece.
Não nos veremos nunca mas o nosso laço é firme.
Se lhe agradaram os meus versos
que importa o serem meus/ de outros/ de ninguém.
Na realidade, os poemas que leu são seus:
Você, o seu autor, que os engendra ao lê-los.